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A Páscoa. Tempo de mistagogia

Viver plenamente a Páscoa significa, para cada cristão, redescobrir a realidade do Mistério de Deus em que somos introduzidos pela liturgia deste tempo de graça e de experiência sacramental.

Irmã Carolina Blázquez OSA-31 de março de 2024-Tempo de leitura: 9 acta

Começa o tempo pascal, que na Igreja antiga era chamado o tempo da mistagogia. Era o objetivo de todo o catecumenato, que marcava o ritmo das comunidades cristãs que se preparavam em cada Quaresma, de forma especial, para receber novos membros.

A Páscoa, portanto, na Igreja dos séculos IV e V, era simultaneamente o cume do caminho de preparação dos candidatos à entrada na comunidade dos salvos e a fonte de renovação constante das próprias comunidades.

Eram realmente percebidas como um ventre materno. Neles, o mistério de Maria era constantemente reavivado: gerando, gestando e dando à luz a vida dos novos filhos de Deus, os neófitos, que, ao mesmo tempo, vivificavam e renovavam a vida daqueles que já eram crentes.

É o cumprimento das palavras de Jesus a Nicodemos, a quem convidou a nascer de novo, embora já fosse velho (cf. Jo 3,3-7). 

Evolução histórica

Após o Édito de Milão e, finalmente, com o reconhecimento do cristianismo como religião oficial do Império Romano, as conversões à fé cristã aumentaram consideravelmente.

Embora já estivesse a tomar forma, isto significa que o processo de incorporação no cristianismo foi institucionalizado com alguns passos muito definidos. Com a consciência de que "os cristãos não nascem, fazem-se" (Tertuliano, Apologia contra os gentios18,4), o processo de catecumenato era longo e podia durar vários anos em alguns casos. 

No entanto, como a entrada na economia da graça é o bem maior, estes processos de preparação foram encurtados para que a espera prolongada não conduzisse a um sentido elitista da fé, confundindo uma boa preparação com uma certa dignidade pessoal para receber os sacramentos.

Poder-se-ia assim esquecer o verdadeiro sentido da palavra que a Igreja nos convida a dizer imediatamente antes de receber a comunhão eucarística: "Senhor, não sou digno de que entres em minha casa, mas basta uma palavra tua para me curar" (cf. Mt 8, 8).

Por outro lado, como os já baptizados desejavam partilhar a graça com os seus filhos, o batismo infantil foi imposto até que o batismo dos adultos praticamente desapareceu. 

Daí o esquecimento de todo este itinerário catequético e mistagógico de incorporação na Igreja que, desde o Concílio Vaticano II, estamos a tentar recuperar de forma criativa e actualizada como proposta de revitalização da fé dos crentes e de evangelização e incorporação na Igreja de novos fiéis.

De facto, algumas realidades eclesiais nascidas da renovação conciliar assumiram etapas ou o itinerário, mais ou menos completo, de todo este processo catecumenal em que se integram de forma equilibrada a experiência pessoal do encontro com Cristo - o despertar na fé -, a inserção eclesial através do caminho litúrgico-sacramental e o processo existencial da conversão. 

Há aqui algo de chave para este momento da Igreja em que vivemos. É-nos oferecido um quadro ou guia para todos os nossos projectos educativos ou catequéticos na fé, que correm sempre o risco de se moverem nos esforços algo infrutíferos de uma intensa educação externa, uma vez que, em muitos casos, a fé não foi despertada porque o encontro pessoal com Cristo não aconteceu ou, por outro lado, na promoção de propostas de despertar na fé que, sem um cuidadoso itinerário catequético e formativo subsequente a todos os níveis e, especialmente, a todos os níveis de educação, correm sempre o risco de se moverem nos esforços algo infrutíferos de uma intensa educação externa, por outro lado, na promoção de propostas de despertar na fé que, sem um cuidadoso itinerário catequético e formativo posterior a todos os níveis e, sobretudo, litúrgico e sacramental, são muitas vezes experiências eminentemente subjectivas que correm o risco de se extinguirem rapidamente, ao ritmo das emoções. 

O Papa Francisco recordou-nos estes dois perigos em Desiderio Desideravi O Papa Francisco, ao fazer a ligação com o seu magistério anterior, pediu-nos repetidamente para estarmos atentos e cuidadosos para evitar as tendências neo-pelagianas ou, pelo contrário, neo-gnósticas na Igreja (cf. DD 17).  

Para alcançar esta vitalidade litúrgica, a chave está na proposta formativa através da catequese litúrgica ou mistagógica, retomando a prática da Igreja antiga e readaptando-a às necessidades do presente na fidelidade criativa que caracteriza sempre os passos de renovação da Igreja. Já em Sacrosanctum Concilium Fomos convidados a trabalhar nesta direção (cf. SC 36), mas também Evangelii Gaudium aborda o tema da catequese mistagógica (cf. EG 163-168) e o Novo Diretório da Catequese para o ano 2020 retoma esta questão (nn. 61-65; 73-78).

Parto contínuo

O processo é explicado em pormenor no RCIA, o Ritual para o Catecumenato de Adultos, escrito em 1972. Em 2022 celebramos o 50º aniversário da sua publicação e, apesar de terem passado tantos anos e de ser um dos frutos significativos da reforma litúrgica conciliar, continua a ser um documento pouco conhecido e pouco apreciado, embora possa ser um magnífico instrumento para desenvolver processos de formação catequética e litúrgica que ajudem a aprofundar a vida cristã daqueles que já são crentes. 

O aprofundamento do processo catecumenal ajuda a viver na memória que o cristão é sempre um pecador perdoado, experimentando assim que a alegria da salvação brota, não das nossas realizações ou da nossa perfeição pessoal, mas do acolhimento constante da misericórdia de Deus.

Esta posição de verdade e de humildade diante de Deus liberta-nos da tentação de nos considerarmos o filho mais velho em oposição ao filho pródigo (cf. Lc 15,29-32) ou o fariseu em oposição ao publicano (cf. Lc 18,9-14). Vivemos num processo de conversão ininterrupto, sendo continuamente gerados na fé até que Cristo seja formado em nós (cf. Gl 4,19).

Após o período querigmático, em que se anuncia o coração do Evangelho, que corresponderia aos métodos actuais de evangelização ou primeiro anúncio, para aqueles que, após a conversão à fé, manifestavam o desejo de iniciar um processo de incorporação na Igreja, era proposto o ingresso no catecumenato.

Este foi concebido como um longo período de tempo acompanhado por alguns cristãos, os catequistas, que deviam introduzir, pouco a pouco, no conhecimento da fé e na experiência da oração com a consequente conversão dos costumes que isso trazia consigo.

Fundamental no itinerário era a oração e a familiarização com a Palavra de Deus, a tarefa educativa na doutrina e na fé da Igreja, bem como a conversão dos costumes, que para muitos poderia significar uma mudança significativa de hábitos de vida, de mentalidade e de critérios, até mesmo de profissão....

Santo Agostinho, por exemplo, abandonou a sua profissão de orador após a sua conversão. Envergonhava-se de viver vendendo mentiras disfarçadas de verdade só porque eram bem contadas, procurando, além disso, ser estimado e gozar de prestígio. Perante a verdade de Cristo, caíram as máscaras com que se tinha escondido de si próprio durante anos (Cf. Confissões IX, II, 2).

Este processo catecumenal era intensificado na última Quaresma antes do momento do batismo, que era sempre recebido no contexto da Páscoa, nomeadamente na Vigília Pascal. Esta última Quaresma era chamada de tempo de purificação ou iluminação e era um tempo absolutamente único e especial.

Cada semana, marcada pelo domingo, estava ligada a um passo ou a um gesto extremamente belo e expressivo: a escolha ou a inscrição do nome, os escrutínios ou os momentos de discernimento sobre a verdade da própria vida à luz da Palavra, os exorcismos, a profissão de fé, o Pai-Nosso, as unções, o rito da Effetá... Neste tempo, todos os gestos e rituais da Igreja exprimem a gestação, a preparação para o novo nascimento que encontrará a sua expressão definitiva na noite da Páscoa, a grande noite batismal. 

Na Páscoa, a recordação quaresmal da misericórdia de Deus transforma-se em recordação agradecida da salvação perante a última e definitiva das mirabilia DeiA ressurreição de Cristo de entre os mortos. Esta graça da ressurreição durante a Páscoa não é apenas proclamada, ela realiza-se em nós através dos sacramentos que nos incorporam no Corpo glorioso de Cristo, a sua vida entra na nossa. 

É um caminho de transformação em Cristo, de tal modo que o caminho de toda uma vida cristã, de anos de seguimento e de conformação progressiva a Cristo, nos é dado na noite de Páscoa, sobretudo na Quinquagésima Páscoa e, como prolongamento desta, em cada Eucaristia quotidiana, que é penhor do que já somos e do que somos chamados a ser. 

Na tua Luz vemos a luz

Porque somos limitados, porque precisamos de tempo para absorver, para acolher, para compreender esta claridade oferecida pelo Mistério de Deus em Cristo, a Igreja mãe utiliza a mistagogia.

O tempo que se segue à celebração do Tríduo Pascal, a quinquagésima Páscoa, tem este sentido pedagógico de ruminação para melhor assimilar e aprofundar a consciência do dom já recebido. 

A vida cristã de cada um de nós pode ser entendida como um tempo prolongado de mistagogia até à entrada plena no Mistério na vida do Céu.

Muitos de nós, baptizados na infância, precisam deste tempo para compreender o que celebramos, o que acreditamos e, em última análise, o que somos. Estamos a assimilar o que recebemos como nossa identidade através da fé e dos sacramentos.

Por isso, é necessário desenvolver processos mistagógicos, como faziam os Padres do século IV com os neófitos que participavam pela primeira vez nas celebrações sacramentais. Uma vez que tinham recebido os sacramentos da iniciação numa única noite, durante a Vigília, tinham então necessidade de aprofundar a compreensão do que tinham experimentado para, conhecendo-o melhor, se configurarem segundo esta nova condição recebida à imagem de Cristo. 

Há um novo modo de perceber a realidade como portadora do Mistério de Deus, no qual estamos a ser introduzidos pela ação litúrgica, e a Páscoa é o tempo propício para isso. Nela, a dimensão mistagógica é acentuada e valorizada porque é o tempo da plenitude, do cumprimento, onde tudo volta à sua realidade primeira e última, à sua referencialidade criada e à sua verdade em Deus revelada em Cristo ressuscitado. 

Esta mistagogia litúrgica pascal tem, nomeadamente, várias dimensões ou níveis: 

Mistagogia criativa

Na Páscoa, os sinais litúrgicos ligam-nos à criação: o Fogo que purifica e ilumina a partir de dentro, a luz do círio pascal e a cera pura das abelhas, a água batismal, o óleo do santo crisma, o vento do Espírito, a vida que desperta misteriosamente da sua letargia invernal na primavera e irrompe no Templo através das decorações florais, o branco e o dourado dos tecidos... 

Estas dimensões cósmicas da liturgia requerem uma explicação cuidadosa. Não são meros elementos decorativos. Através delas, a Igreja exprime a dimensão criadora do acontecimento da ressurreição, superando qualquer subjetivismo ou reducionismo emotivista da fé.

Cristo ressuscitado encheu a realidade de luz a partir do seu interior. Isto é, o véu rasgado do templo, o chão rasgado pelos terramotos e as lápides deslocadas, como nos dizem os evangelistas no momento da morte e da ressurreição (cf. Mt 27,51-54.28,2).

O nó das relações vitais: com Deus, connosco, com os outros e com a criação, foi desatado. A partir deste momento, tudo é transcendido por Deus e portador de Deus, como se o mistério de Maria se realizasse em cada criatura, tudo se abre ao Espírito e o antagonismo carne-pneuma é reconciliado, a vida da graça é iluminada através da carne deste mundo.

Na liturgia, nada é opaco, fechado em si mesmo ou separado do resto. Tudo se transfigura, irradiando claridade e vida. O pão e o vinho tornam-se totalmente dóceis à Palavra de Deus e à ação do Espírito.

Esta, que se realiza na liturgia, ultrapassa os muros da igreja e, através do olhar sacramental do crente transformado pela celebração em que participa, toca a sua realidade quotidiana, tornando-a um espaço e um tempo sacramentais.

mistagogia histórico-salvífica

O cristão, ao longo de toda a sua vida, como se toda a história de Israel se actualizasse na sua própria história, é convidado a passar da escravidão à liberdade, da noite à luz, do deserto à terra prometida, da dor à festa, da fome ao banquete nupcial, da morte à vida, entrando com Cristo, no último mar vermelho da vida, da morte e da sepultura, para ressuscitar com Ele para uma vida nova, participando na sua própria vida ressuscitada.

Para viver esta experiência, é fundamental a familiaridade com a História Sagrada através da Palavra de Deus lida, proclamada e celebrada na liturgia. A Vigília Pascal é a mestra desta tarefa mistagógica.  

A sua viagem pelo Antigo Testamento, através dos livros históricos, proféticos e sapienciais, exprime os medos, os anseios, os limites, a sede do coração do homem, constantemente salvo pela mão poderosa de Deus.

Toda esta pedagogia de Deus com o povo encontra o seu cumprimento no Novo Testamento, com o acontecimento de Cristo e a sua Ressurreição.

É necessário deter-se nas leituras de cada celebração, iluminar o seu significado em Cristo e existencialmente para os homens de hoje, confiar no poder performativo da Palavra que encontra a sua máxima expressão no quadro sacramental. Ela faz o que diz. 

Mistagogia sacramental

A Páscoa é, por excelência, o tempo dos sacramentos. A força salvadora que brotava do Corpo de Cristo passou para a sua Igreja e, graças à sua ação, toda a existência do homem é abençoada e salva.

Os sacramentos ligam-nos a Cristo ressuscitado, são a ocasião de um encontro com a sua carne gloriosa. Assim, somos incorporados nele em primeiro lugar pela comunhão eucarística, que realiza a comunhão inaugurada no batismo: Cristo em nós, nós nele, em sentido esponsal: unidos numa só carne, a Carne oferecida por Cristo para a vida do mundo.

Esta comunhão alimenta-nos, transforma-nos e move-nos a viver tudo o que é humano a partir desta dimensão de ressurreição. Na Páscoa celebram-se os sacramentos da iniciação e, como graça que deles decorre, é também o momento oportuno para a celebração dos sacramentos da vocação: o matrimónio e a Ordem, bem como a consagração das virgens.

É o tempo em que o humano, com o seu mistério de crescimento, de amor, de missão e de limite, pode desenvolver-se sem medo, numa fecundidade cujo fruto é a presença do Reino, a santidade.

Que nós, ministros, religiosos, catequistas, catequizandos, responsáveis pela pastoral, sejamos capazes de implantar uma ação mistagógica criativa nas nossas celebrações, nas nossas tarefas catequéticas, nas nossas homilias, para que sejamos verdadeiramente transformados pelo que recebemos e no que recebemos.

Trata-se de uma tarefa de conhecimento no sentido judaico da palavra: um conhecimento que é comunhão e amor, que abraça todas as dimensões da pessoa a ponto de tocar as profundezas do ser, a ponto de comover o coração, a ponto de entrar na intimidade, a ponto de iluminar a existência segundo Cristo. 

Esta é a ação própria do Espírito Santo, o grande mistagogo, e é por isso que a Páscoa, o tempo da mistagogia, é o tempo do Espírito, de facto, a sua meta é o Pentecostes.

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