Esta reflexão deriva da crítica do Papa Francisco ao clericalismo, uma mentalidade e atitude viciosa que é a causa de não pequena quantidade de maldade. O Papa Francisco referiu-se a esta mentalidade deformada em várias ocasiões e em diferentes contextos, alguns deles muito tristes, tais como o da Carta ao Povo de Deus de 20 de Agosto de 2018.
Estes problemas não serão discutidos aqui, nem se pretende uma exegese das palavras do Papa. Foram apenas a ocasião para reflectir sobre um problema mais vasto do qual o clericalismo é apenas uma parte. Na minha opinião, a raiz mais profunda do clericalismo - e de outros fenómenos relacionados ou semelhantes - é a incompreensão do valor da liberdade ou, talvez, a subordinação do seu valor a outros que parecem mais importantes ou mais urgentes, como, por exemplo, a segurança e a igualdade. O fenómeno não está apenas, e talvez nem sequer primariamente, na esfera eclesiástica, mas tem múltiplas manifestações na esfera civil.
A liberdade é uma realidade difícil de apreender e que tem muitos aspectos misteriosos. Duas questões de importância fundamental são particularmente complexas: a liberdade da criação e a criação da liberdade; ou seja, se o acto criador de Deus é inteiramente livre e se é possível criar uma verdadeira liberdade. Aqui vou tratar apenas da segunda questão.
Deus criou o homem livre
Não é fácil compreender como Deus pode criar liberdade genuína. A Igreja tem ensinado isto incansavelmente. Assim, por exemplo, a Constituição Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II afirma que "A verdadeira liberdade é um sinal eminente da imagem divina no homem. Deus quis deixar o homem à sua própria decisão, para que ele possa espontaneamente procurar o seu Criador e, aderindo livremente a ele, alcançar a perfeição plena e abençoada". (n. 17)
Contudo, muitos pensam que, enquadrados nos planos gerais da providência divina e do governo, muito pouco depende realmente da liberdade humana. Afinal, como diz o ditado, Deus é capaz de escrever a direito com linhas tortas. Isto é, mesmo que os homens façam mal, Deus consegue corrigir tudo e o resultado é bom. Por outro lado, de um ponto de vista teórico, não é fácil conceber como definitivo um poder de escolha e acção que é causado ou dado por outro.
Os debates sobre o concurso e predestinação divina, bem como a famosa controvérsia de auxiliissão uma ilustração suficiente. De uma perspectiva filosófica diferente, a mesma dificuldade fez Kant pensar que a autonomia humana é incompatível com qualquer tipo de presença de Deus e da sua lei no comportamento moral humano. Na minha opinião, a teologia cristã da criação deveria levar-nos a ver as coisas de forma diferente.
Ao criar o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, Deus cumpre o desígnio de colocar perante si verdadeiros parceiros, capazes de partilhar na bondade e plenitude divina. Para isso, tinham de ser verdadeiramente livres, ou seja, capazes de reconhecer e afirmar autonomamente o bem porque é bom (o que implica inevitavelmente a possibilidade de negar o bem e de afirmar o mal). As estrelas nos céus já lá estão para obedecer às leis cósmicas que manifestam a grandeza e o poder de Deus com total exactidão; só com liberdade aparecem a imagem e semelhança divina, cujo valor é muito superior ao das forças do universo.
De facto, a livre adesão do homem a Deus vale mais do que o céu estrelado. Tanto assim que Deus prefere aceitar o risco do uso indevido da liberdade pelo homem em vez de o privar dela. Certamente, a supressão da liberdade impediria a possibilidade do mal (e, com ele, de todo o sofrimento); contudo, tornaria também impossível o bem mais valioso, o único que reflecte verdadeiramente a bondade divina.
É por isso que Deus assume a liberdade humana com todos os seus riscos. A literatura de sabedoria do Antigo Testamento exprime isto maravilhosamente: "Foi ele que inicialmente fez o homem, e o deixou por sua livre vontade. Se quiseres, guardarás os mandamentos, para que possas permanecer fiel ao seu bom prazer. Ele pôs diante de si fogo e água, onde quer que queira, pode levar a sua mão. Antes que o homem seja vida ou morte, o que cada um preferir, ser-lhe-á dado". (Sirach 15, 14-17). O homem é livre de preferir a vida ou a morte, mas o que preferir ser-lhe-á dado.
Livre, com todas as consequências
Porque Deus cria a verdadeira liberdade e assume os seus riscos, não é claro que Ele quis dar ao homem uma rede de segurança - como a que protege os andarilhos de corda bamba no circo - para neutralizar as graves consequências do seu possível mau uso. É verdade que Deus cuida de nós através da sua providência, mas fá-lo concedendo-nos uma participação activa na mesma. Com a nossa inteligência somos capazes de conhecer cada vez melhor a realidade em que vivemos e distinguir o que é bom para nós do que é mau para nós. Com a liberdade vem a capacidade e a obrigação de cada um de nós de prover a si próprio, e a nossa provisão é respeitada.
Para ser mais preciso - e no que diz respeito à culpa moral e não tanto às penas que têm a sua origem - a misericórdia de Deus deu-nos uma certa rede de segurança: a redenção. De facto, a forma muito dolorosa como foi realizada, através do sangue de Cristo (cf. Efésios 1:7-8), torna claro que não se trata simplesmente de uma "tábua limpa". Pelo contrário, o Criador leva a liberdade do homem radicalmente a sério. Não é um jogo, e portanto Deus não impede o desdobramento das consequências das nossas acções na sua ligação com as dos outros e com as leis que regem o mundo material, o equilíbrio psicológico e moral, e a ordem social e económica. É verdade que a benevolência e a graça de Deus nos ajudam, mas pressupõem a livre decisão humana de cooperar com eles. Como lemos na Carta aos Romanos: "Todas as coisas trabalham em conjunto para o bem daqueles que amam a Deus". (Romanos 8, 28).
Por muito difícil que seja compreender de um ponto de vista teórico, a liberdade humana representa um ponto verdadeiramente absoluto, enquadrado num contexto relativo e dependente de Deus. É devido à minha liberdade que algumas coisas não existem que poderiam ter existido se eu tivesse feito uma escolha diferente. E é também devido à minha liberdade que existem algumas coisas que poderiam não ter existido se a minha decisão tivesse sido diferente.
Nem pode a sociabilidade natural do homem servir de álibi para obscurecer o valor da liberdade. A sociedade humana é uma sociedade de seres grátis. No que diz respeito à solidariedade, a teologia da criação sublinha que todas as pessoas são iguais perante Deus. São igualmente seus filhos e, portanto, irmãos e irmãs um do outro. Particularmente no Novo Testamento, a solidariedade é reforçada e ultrapassada pela caridade, que está no cerne da mensagem moral de Cristo. Contudo, duas observações devem ser feitas para mostrar que a interpretação da solidariedade e da caridade não pode ser feita em detrimento da liberdade e da responsabilidade, o que implica a obrigação de prover a si próprio, a menos que circunstâncias como doença, velhice, etc. o impeçam. A primeira é que a caridade para com os necessitados não pode ser entendida como uma licença para uns viverem voluntariamente à custa de outros. St. Paul coloca-o em termos inequívocos: "Porque mesmo quando estávamos consigo, demos-lhe esta regra: se alguém não estiver disposto a trabalhar, não o deixe comer. [...] Nós vos mandamos e vos exortamos no Senhor Jesus Cristo a comer o vosso próprio pão, trabalhando em silêncio". (2 Tessalonicenses 3, 10.12).
A segunda é que a caridade cristã pressupõe o ensino de Cristo sobre a distinção entre a ordem política e a ordem religiosa: dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (cf. Mateus 22,21). Uma fusão nesta área impediria a existência da caridade que, pela sua própria essência, é um acto livre. A parábola do rico Epulon e do pobre Lázaro contém uma dura condenação daqueles que fazem um uso egoísta e sem escrúpulos dos seus bens, não cumprindo a sua grave obrigação de ajudar os necessitados. No entanto, não diz - nem sugere - que a força coerciva do Estado deva ser utilizada para privar os afortunados dos seus bens, para que a autoridade pública possa depois redistribuí-los. Cristo ensina, em suma, que devemos estar dispostos a ajudar voluntariamente os necessitados. Nenhuma passagem do Novo Testamento autoriza a supressão violenta da liberdade legítima em nome da solidariedade ou da caridade.
Clericalismo
Isto leva-nos à questão que abriu estas páginas. O dicionário da Real Academia Espanhola tem três significados da palavra "clericalismo": 1) influência excessiva do clero nos assuntos políticos; 2) intervenção excessiva do clero na vida da Igreja, o que impede o exercício dos direitos dos outros membros do povo de Deus; 3) afecto e submissão marcados ao clero e às suas directivas. Estes significados dão uma ideia suficiente do fenómeno, mas precisariam de ser actualizados. Não parece que hoje em dia o clero possa influenciar em grande medida os assuntos políticos. Nem sequer quer fazê-lo, até porque estes assuntos assumiram uma complexidade demasiado grande e demasiado pesada para aqueles que não são políticos por profissão.
Mais significativa, porém, é a palavra utilizada para descrever intervenção clerical: intervenções "excessivas". E o excesso não é essencialmente uma questão de quantidade ou de amplitude, mas de direcção. O clericalismo é excessivo porque é iliberal: invade e sobrepõe-se à legítima liberdade de outras pessoas ou instituições, na esfera civil ou eclesiástica. Assim, em vez de tornar possível o exercício da liberdade pessoal, tenta direccioná-la de forma quase forçada para o que é considerado - talvez por boas razões - melhor, mais verdadeiro e mais desejável. Foi por isso que disse no início que, na minha opinião, o clericalismo pressupõe uma compreensão deficiente da teologia da liberdade (do seu valor aos olhos de Deus), e consequentemente da teologia da criação.
Se devo ser justo, devo deixar claro que nos meus mais de 40 anos de sacerdócio raramente tenho visto a mentalidade clerical entre sacerdotes que, devido aos seus deveres pastorais, estão em estreito contacto com os fiéis. É mais fácil encontrá-lo entre aqueles que, por uma razão ou outra, vivem entre livros ou papéis, e têm poucas oportunidades de apreciar a competência humana e a sabedoria cristã frequentemente demonstrada pelos fiéis leigos. No que se segue, vou referir-me a alguns aspectos do clericalismo; um tratamento completo do assunto exigiria, evidentemente, muito mais espaço.
Algumas expressões de clericalismo
A primeira expressão, que já apareceu nestas páginas, é o baixo valor atribuído à liberdade humana. Pode ser considerado um bem, um presente de Deus, mas não é certamente o mais importante. Na sua relação com o bem, a liberdade contém um paradoxo: sem o bem, a liberdade é vazia ou mesmo prejudicial; sem liberdade, nenhum bem é possível. humano. A mentalidade clerical sempre aponta o equilíbrio a favor do bem, e em casos extremos está pronta a sacrificar a liberdade no altar do bem. Desta forma, parece esquecer que a lógica de Deus é diferente, pois Ele não queria suprimir a nossa liberdade para evitar o seu uso indevido. Há uma tendência para ver a liberdade como um problema, quando na realidade é o pré-requisito para resolver bem qualquer conflito.
A subestimação da liberdade é seguida por uma subestimação do pecado. E isto não se deve a uma crença na compaixão divina (que, graças a Deus, é muito grande, e com a qual o escritor destas páginas está comprometido), mas porque não se percebe que o respeito de Deus por nós não permite que Ele nos trate como crianças inconscientes. Se assim fosse, os homens ofenderiam, matariam, destruiriam... mas depois o pai viria para reparar o que foi destruído, e o jogo acabaria bem para todos, tanto para as vítimas como para os criminosos. O Novo Testamento não nos permite pensar dessa forma. Basta ler a passagem do capítulo 25 de Mateus sobre o julgamento final. Precisamente porque ele nos criou realmente Deus não nos trata nem como crianças nem como marionetas irresponsáveis. A atitude que criticamos não tem nada a ver com o "viagem espiritual da infância". que santos como Therese de Lisieux ou Josemaría Escrivá falam, e que se situa no contexto muito diferente da teologia espiritual. Este "caminho" nada tem a ver com suavidade ou irresponsabilidade superficial, e é perfeitamente compatível - como mostram as vidas destes dois santos - com uma afirmação radical da liberdade humana.
Terceiro, a subavaliação da liberdade também ocorre na esfera civil. Para alguns, os cidadãos seriam incapazes de ser paupers a quem o Estado deveria dar protecção universal, tão ampla quanto possível, sem sequer lhes perguntar se precisam ou querem. Com tal protecção, é aparentemente dada sem custos A omnipresença e invasividade do estado é descrita por Tocqueville como omnipresente e invasiva. O estado omnipresente e invasivo é descrito por Tocqueville como "Um poder imenso e tutelar que se encarrega apenas de garantir as alegrias dos cidadãos e de zelar pelo seu destino. Absoluto, meticuloso, regular, cuidadoso e benigno, assemelhar-se-ia ao poder paternal, se o seu objectivo fosse preparar os homens para a masculinidade; mas, pelo contrário, procura apenas fixá-los irrevogavelmente na infância e quer que os cidadãos se divirtam, desde que pensem apenas em divertir-se [...]. Desta forma, torna cada vez menos útil e cada vez mais rara a utilização do livre arbítrio, encerra a acção da liberdade num espaço mais estreito, e pouco a pouco retira a cada cidadão até o uso de si próprio". (Democracia na América, III, IV, 6). Isto não é uma imagem do passado. Ainda hoje é demasiado comum os partidos procurarem realizar os seus próprios ideais políticos, espezinhando a liberdade daqueles que pensam de forma diferente, por vezes até ao ponto de os eliminar. O respeito pela liberdade dos opositores políticos é uma pedra preciosa que raramente se encontra no mundo de hoje.
O meu último ponto diz respeito à ideia de que, em virtude das nossas boas intenções, Deus irá parar as consequências dos processos naturais que livremente desencadeamos. É como se a caridade nos pudesse poupar o conhecimento das leis e vontades das coisas criadas - e, em particular, da sociedade humana - a que o Concílio Vaticano II se referiu com a expressão "justa autonomia das realidades terrenas". De acordo com Gaudium et spes: "Pela própria natureza da criação, todas as coisas são dotadas da sua própria consistência, verdade e bondade e da sua própria ordem regulada, que o homem deve respeitar com o reconhecimento da metodologia particular de cada ciência ou arte". (n. 36). A mentalidade clerical, por outro lado, fala de coisas terrenas sem conhecer bem a sua génese, a sua consistência e o seu desenvolvimento; aplica princípios a estas realidades que correspondem a outras áreas da realidade e, assim, propõe medidas que acabam por produzir o oposto do que se pretendia. Um exemplo deste último pode ser visto quando se passa do plano religioso para o plano político - e do plano religioso para o plano político - com espantosa facilidade. Tenta-se resolver problemas políticos ou económicos sem ter em conta princípios básicos de política ou realidade económica, violando assim a realidade das coisas.
A isto acresce a tendência para explicar tudo apenas pelas suas causas finais. Se abrir um livro sobre a história mundial, verá que tem havido muitas guerras. Ao afirmar que todos eles são causados por malícia humana ou pecado original, diz-se algo verdadeiro, mas que, ao explicar tudo, acaba por não explicar nada (pelo menos, se estivermos interessados em compreender o que aconteceu e em prevenir conflitos futuros). Por uma razão semelhante, a língua é composta por palavras de significado vago, como por exemplo "dignidade humana", que estabelecem consensos vazios. Para continuar com o exemplo da dignidade, acontece que todos o defendem, mas os diferentes sujeitos (ou grupos) fazem-no para defender comportamentos que são contraditórios entre si. Desta forma, um acordo nominal sobre dignidade pode ser alcançado, mas é em última análise um falso consenso entre pessoas que, na realidade, não concordam em quase nada. O resultado é que, no final, o discurso público é reduzido a pura retórica.
Queria apenas apontar algumas consequências do clericalismo. O suficiente para perceber que é necessária uma reflexão séria sobre estes problemas. Isto será para o bem de todos, e acima de tudo para a Igreja. De facto, a reivindicação da liberdade, na qual a imagem de Deus no homem se reflecte, só pode significar um impulso para o Povo de Deus e para todos nós que dele fazemos parte. Felizmente, existe agora um conjunto de circunstâncias que nos permitem esperar que tal reflexão tenha lugar.
Professor de Teologia Moral Fundamental
Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma)