Vaticano

Papa na Missa Crismal: "A Cruz não é negociável".

O Santo Padre Francisco presidiu à Missa Crismal na Quinta-feira Santa, onde recordou que "o Senhor abraçou a Cruz em toda a sua integridade".

David Fernández Alonso-1 de Abril de 2021-Tempo de leitura: 8 acta
papa francisco de massa chrismal

Foto: ©2021 Catholic News Service / U.S. Conference of Catholic Bishops.

Às 10:00 da manhã de Quinta-feira Santa, o Santo Padre Francisco presidiu ao Altar da Cátedra na Basílica de São Pedro para a Missa Crismal, uma liturgia celebrada em todas as igrejas da catedral. Contudo, a missa da noite não foi presidida por Francisco, como inicialmente previsto, mas pelo Cardeal Giovanni Battista Re, Prefeito Emérito da Congregação para os Bispos e Presidente Emérito da Pontifícia Comissão para a América Latina.

A Missa Crismal foi presidida pelo Santo Padre e concelebrada por alguns Cardeais e Bispos, com os Superiores da Secretaria de Estado e os membros do Conselho Presbiteral da Diocese de Roma. Durante a Celebração Eucarística, os sacerdotes renovaram as promessas feitas no momento da sua ordenação.

Seguiu-se a bênção do óleo dos doentes, do óleo dos catecúmenos e do crisma.
Publicamos abaixo a homilia do Papa após a proclamação do Santo Evangelho:

"O Evangelho mostra-nos uma mudança nos sentimentos do povo que escuta o Senhor. A mudança é dramática e mostra-nos o quanto a perseguição e a Cruz estão ligadas à proclamação do Evangelho. A maravilha das palavras graciosas que saíram da boca de Jesus foi de curta duração na mente do povo de Nazaré. Uma frase que alguém murmurou em voz baixa foi insidiosamente "viral": "Não é este o filho de José?

É uma daquelas frases ambíguas que são deixadas cair de passagem. Poder-se-ia usá-lo para expressar com alegria: "Que maravilha que alguém de origens tão humildes fale com tanta autoridade". E outro poderia usá-lo para dizer com desprezo: "E de onde é que ele veio, quem é que ele pensa que é? Se olharmos para
Bem, a frase é repetida quando os apóstolos, no dia de Pentecostes, cheios do Espírito Santo, começam a pregar o Evangelho. Alguém disse: "Não são todos estes que estão a falar galileus?" (Actos 2,7). E enquanto alguns receberam a palavra, outros entregaram-nos como bêbados.

Formalmente, parece que uma opção foi deixada em aberto, mas se nos atentarmos aos frutos, nesse contexto particular, estas palavras continham um germe de violência que foi desencadeado contra Jesus. É uma "frase motivadora", como quando um diz: "Isto é demais!" e ataca o outro ou sai.

O Senhor, que por vezes se calava ou ia para o outro lado, desta vez não deixou passar o comentário, mas desmascarou a lógica maléfica escondida sob o disfarce de simples mexericos de aldeia. "Dir-me-eis este ditado: "Médico, cura-te a ti mesmo! Deve fazer aqui na sua própria terra as mesmas coisas que ouvimos que fez em Cafarnaum" (Lc 4,23). "Cura-te a ti mesmo...". "Deixe-o salvar-se". Aí está o veneno! É a mesma frase que seguirá o Senhor até à Cruz: "Ele salvou os outros! Que Ele se salve a si mesmo" (cf. Lc 23,35); "e que Ele nos salve", um dos dois ladrões acrescentará (cf. v. 39). O Senhor, como sempre, não dialoga com o espírito mau, mas apenas responde com a Escritura.

Nem os profetas Elias e Eliseu foram aceites pelos seus compatriotas, mas foram aceites por uma viúva fenícia e uma síria que sofria de lepra: dois estrangeiros, duas pessoas de outra religião. Os factos são convincentes e provocam o efeito que Simeão, aquele velho carismático, tinha profetizado: que Jesus seria um "sinal de contradição" (antilegómeno semeion) (Lc 2,34).

A palavra de Jesus tem o poder de trazer à luz o que cada um tem no seu coração, que é frequentemente misturado, como o trigo e o joio. E isto provoca uma luta espiritual. Vendo os gestos transbordantes de misericórdia do Senhor e ouvindo as suas bem-aventuranças e o "ai de vós" do Evangelho, vê-se obrigado a discernir e a fazer uma escolha. Neste caso, a sua palavra não foi aceite e isto fez com que a multidão furiosa tentasse pôr fim à sua vida. Mas não era "a hora" e o Senhor, diz-nos o Evangelho, "passou pelo meio deles e seguiu o seu caminho" (Lc 4,30).

Não foi o momento, mas a velocidade com que a fúria e a ferocidade da fúria foi desencadeada, capaz de assassinar o Senhor naquele preciso momento, mostra-nos que é sempre o momento. E isto é o que gostaria de partilhar convosco hoje, caros sacerdotes: que a hora da proclamação
A hora da perseguição e a hora da Cruz andam juntas.

A proclamação do Evangelho está sempre ligada ao abraço de alguma cruz concreta. A suave luz da Palavra gera clareza nos corações bem dispostos e confusão e rejeição naqueles que não o são. Vemos isto constantemente no Evangelho. A boa semente semeada no campo dá frutos - o centésimo, o sessenta, o trigésimo - mas também desperta a inveja do inimigo que se põe compulsivamente a semear o joio durante a noite (cf. Mt 13:24-30,36-43).

A ternura do pai misericordioso atrai irresistivelmente o filho pródigo para regressar a casa, mas também suscita a indignação e ressentimento do filho mais velho (cf. Lc 15,11-32).

A generosidade do proprietário da vinha é motivo de gratidão para os trabalhadores da última hora, mas é também motivo de comentários azedos nos primeiros, que se sentem ofendidos porque o seu dono é bom (cf. Mt 20,1-16). A proximidade de Jesus que vai comer com os pecadores ganha corações como o de Zaqueu, o de Mateus, o da mulher samaritana..., mas também suscita sentimentos de desprezo naqueles que pensam ter um bom mestre (cf. Mt 20,1-16).
justo.

A magnanimidade do rei que envia o seu filho pensando que ele será respeitado pelos vinhateiros, contudo, desencadeia neles uma ferocidade desmedida: somos confrontados com o mistério da iniquidade, que leva à matança do Justo (cf. Mt 21,33-46). Tudo isto faz-nos ver que a proclamação da Boa Nova está misteriosamente ligada à perseguição e à Cruz.

Santo Inácio de Loyola, na contemplação da Natividade, expressa esta verdade evangélica quando nos faz olhar e considerar o que São José e Nossa Senhora fazem: "como é andar e trabalhar, para que o Senhor nasça em grande pobreza, e depois de tantos trabalhos, fome, sede, calor e frio, insultos e insultos, para morrer na cruz; e tudo isto por minha causa. Então", acrescenta Inácio, "sobre a reflexão, para tirar algum proveito espiritual" (Exercícios Espirituais, 116). Que reflexão podemos fazer para tirar proveito para a nossa vida sacerdotal ao contemplarmos esta presença precoce da Cruz - de incompreensão, de rejeição, de perseguição - no início e no próprio coração da pregação do Evangelho? Duas reflexões vêm-me à mente.

Primeiro, estamos surpreendidos por ver que a Cruz está presente na vida do Senhor no início do seu ministério e mesmo antes do seu nascimento. Está presente já na primeira confusão de Maria no anúncio do Anjo; está presente na insónia de José quando este se sente obrigado a abandonar a sua esposa desposada; está presente na perseguição de Herodes e nas dificuldades sofridas pela Sagrada Família, como as de tantas famílias que têm de se exilar da sua pátria.

Esta realidade abre-nos ao mistério da Cruz vivida de antemão. Leva-nos a compreender que a Cruz não é um acontecimento ocasional, um acontecimento posterior, o produto de uma junção na vida do Senhor. É verdade que todos os crucificadores da história fazem a Cruz aparecer como se fosse um dano colateral, mas não é assim: a Cruz não depende das circunstâncias.

Porque é que o Senhor abraçou a Cruz na sua totalidade? Porque é que Jesus abraçou toda a paixão, abraçou a traição e o abandono dos seus amigos logo na Última Ceia, aceitou a prisão ilegal, o julgamento sumário, a sentença inconsciente, o mal desnecessário das bofetadas gratuitas e do cuspir...? Se a circunstância tivesse afectado o poder salvífico da Cruz, o Senhor não teria abraçado tudo. Mas quando era a Sua hora, Ele abraçou a Cruz inteira, porque na Cruz não há ambiguidade! A Cruz não é negociável.

A segunda reflexão é a seguinte. É verdade que há algo na Cruz que é parte integrante da nossa condição humana, de limite e fragilidade. Mas também é verdade que há algo que acontece na Cruz que não é inerente à nossa fragilidade, mas é a mordida da serpente, que, vendo o crucificado indefeso, o morde, e procura envenenar e refutar todo o seu trabalho. É uma mordidela que procura escandalizar, imobilizar e tornar estéril e insignificante todo o serviço e sacrifício de amor pelos outros. É o veneno do maligno que continua a insistir: salve-se a si mesmo. E nesta mordida cruel e dolorosa, que finge ser mortal, aparece finalmente o triunfo de Deus.

S. Máximo o Confessor mostrou-nos que com Jesus crucificado as coisas estavam ao contrário: ao morder a Carne do Senhor, o diabo não O envenenou - só encontrou Nele infinita doçura e obediência à vontade do Pai - mas, pelo contrário, juntamente com o gancho da Cruz, engoliu a Carne do Senhor, que era veneno para ele e se tornou para nós o antídoto que neutraliza o poder do Maligno.

Estas são as reflexões. Peçamos ao Senhor a graça de aproveitar este ensinamento: há uma cruz na proclamação do Evangelho, é verdade, mas é uma cruz que salva. É uma Cruz com a força da vitória de Cristo que vence o mal, que nos liberta do Maligno. Abraçá-lo com Jesus e, como Ele, "antes" de sair para pregar, permite-nos discernir e rejeitar o veneno do escândalo com que o diabo nos quererá envenenar quando uma cruz entrar inesperadamente nas nossas vidas.

"Mas nós não somos daqueles que se encolhem (hipótoles)" (Heb 10,39) é o conselho que nos foi dado pelo autor da Carta aos Hebreus. Não estamos escandalizados, porque Jesus não foi escandalizado ao ver que a sua alegre proclamação de salvação aos pobres não ressoava pura, mas no meio dos gritos e ameaças daqueles que não queriam ouvir a sua Palavra.

Não estamos escandalizados porque Jesus não foi escandalizado por ter de curar os doentes e libertar os prisioneiros no meio de discussões moralistas, legalistas, clericais e controversas que surgiram sempre que ele fez o bem. Não estamos escandalizados porque Jesus não foi escandalizado por ter de dar vista aos cegos no meio de pessoas que fecharam os olhos para não ver ou olhar para o outro lado.

Não estamos escandalizados porque Jesus não foi escandalizado porque a sua proclamação do ano do favor do Senhor - um ano que é toda a história - provocou um escândalo público no que hoje ocuparia apenas a terceira página de um jornal provincial. E não estamos escandalizados porque a proclamação do Evangelho não recebe a sua eficácia das nossas palavras eloquentes, mas sim do poder da Cruz (cf. 1 Cor 1,17).

Da forma como abraçamos a Cruz na proclamação do Evangelho - por actos e, se necessário, por palavras - duas coisas se tornam claras: que os sofrimentos que vêm por causa do Evangelho não são nossos, mas "os sofrimentos de Cristo em nós" (2 Cor 1,5), e que "não nos proclamamos a nós mesmos, mas a Jesus como Cristo e Senhor" e que somos "servos por amor de Jesus" (2 Cor 4,5).

Quero terminar com uma memória. Uma vez, num momento muito escuro da minha vida, estava a pedir ao Senhor uma graça, para me libertar de uma situação dura e difícil. Fui pregar os Exercícios Espirituais a algumas freiras e no último dia, como era habitual nessa altura, elas foram confessar-se. Uma irmã muito velha veio, com olhos claros, realmente luminosa.

Ela era uma mulher de Deus. No final, senti o desejo de lhe pedir por mim e disse-lhe: "Irmã, como penitência, reza por mim, porque preciso de uma graça. Se o pedirdes ao Senhor, Ele certamente mo dará". Ela fez uma longa pausa, como se rezasse, e depois disse-me o seguinte: "Certamente o Senhor dar-te-á a graça, mas não te enganes: Ele dar-ta-á à sua maneira divina. Isto fez-me muito bem: sentir que o Senhor nos dá sempre aquilo que pedimos, mas Ele fá-lo à sua maneira divina. Este caminho envolve a cruz. Não por masoquismo, mas por amor, por amor até ao fim".

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