Vaticano

"A Igreja é chamada a cultivar o dom da unidade".

O Papa Francisco presidiu à celebração da Paixão do Senhor nos serviços da Sexta-feira Santa. O Cardeal Cantalamessa, que pregou a homilia, alertou para a causa mais comum de divisão entre os católicos: a escolha política.

David Fernández Alonso-2 de Abril de 2021-Tempo de leitura: 6 acta
bom papa de sexta

Foto: ©2021 Catholic News Service / U.S. Conference of Catholic Bishops.

O silêncio e o vazio voltaram a dominar a atmosfera na imensa Basílica de São Pedro, nesta noite de Sexta-feira Santa. Às seis horas da noite, o Papa Francisco presidiu ao altar da Cátedra na Basílica de São Pedro para a celebração dos ofícios da Paixão do Senhor.

Após a procissão inicial, o Papa prostrou-se sob os degraus do presbitério, deixando uma imagem icónica, como a que veríamos mais tarde quando beijou a Cruz. A tríplice revelação da Cruz precedeu o acto de adoração e, depois de adorar a Cruz, o Santo Padre apresentou-a à adoração silenciosa da pequena assembleia. Durante a Liturgia da Palavra, foi lido o relato da Paixão segundo São João, e a homilia foi feita pelo Pregador do Lar Pontifício, Padre Raniero Cantalamessa, O.F.M. Cap:

"A 3 de Outubro passado, no túmulo de São Francisco em Assis, o Santo Padre assinou a sua encíclica sobre a fraternidade "Fratres omnes". Em pouco tempo, a sua escrita despertou em muitos corações a aspiração por este valor universal, evidenciou as muitas feridas contra ele no mundo de hoje, indicou formas de chegar a uma verdadeira e justa fraternidade humana e exortou todos - indivíduos e instituições - a trabalhar por ela.

A encíclica é idealmente dirigida a um público muito vasto, dentro e fora da Igreja: na prática, a toda a humanidade. Abrange muitas áreas da vida: do privado ao público, do religioso ao social e ao político. Dado o seu horizonte universal, evita, com razão, restringir o discurso ao que é próprio e exclusivo dos cristãos. No entanto, no final da encíclica, há um parágrafo onde o fundamento evangélico da fraternidade é resumido em poucas mas vibrantes palavras. Lê-se:

Outros bebem de outras fontes. Para nós, esta fonte de dignidade humana e de fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota "para o pensamento cristão e para a acção da Igreja o primado dado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com toda a humanidade como a vocação de todos" (FO 277).

O mistério da cruz que estamos a celebrar obriga-nos a concentrar-nos precisamente nesta fundação cristológica da fraternidade, que foi inaugurada precisamente na morte de Cristo.

No Novo Testamento, "irmão" (adelphos) significa, no sentido primário, uma pessoa nascida do mesmo pai e da mesma mãe. Em segundo lugar, "irmãos" significa membros do mesmo povo e da mesma nação. Assim Paulo diz que está disposto a tornar-se anátema, separado de Cristo, por causa dos seus irmãos segundo a carne, que são os israelitas (cf. Rm 9,3). É evidente que nestes contextos, como noutros casos, "irmãos" indicam homens e mulheres, irmãos e irmãs.

Neste alargamento do horizonte, passamos a chamar a cada ser humano um irmão, só porque ele é um ser humano. Irmão é o que a Bíblia chama de "vizinho". "Quem não ama o seu irmão..." (1 Jo 2,9) significa: quem não ama o seu próximo. Quando Jesus diz: "O que quer que tenhais feito a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim me fizestes" (Mt 25,40), ele refere-se a qualquer pessoa humana que precise de ajuda.

Mas a par de todos estes significados, no Novo Testamento a palavra "irmão" indica cada vez mais claramente uma categoria particular de pessoas. Os irmãos entre si são os discípulos de Jesus, aqueles que abraçam os seus ensinamentos. "Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos? [Quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Mt 12,48-50).

Neste sentido, a Páscoa marca uma nova e decisiva etapa. Através dela, Cristo torna-se "o primogénito entre muitos irmãos" (Rm 8,29). Os discípulos tornam-se irmãos num sentido novo e muito profundo: partilham não só os ensinamentos de Jesus, mas também o seu Espírito, a sua nova vida como o Ressuscitado.

É significativo que só depois da sua ressurreição, pela primeira vez, Jesus chama "irmãos" aos seus discípulos: "Ide ter com os meus irmãos", diz ele a Maria Madalena, "e dizei-lhes: 'Ascendo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus'" (Jo 20,17). Na mesma linha, a Carta aos Hebreus escreve: "Aquele que santifica e os que são santificados são todos de uma só origem; por esta razão [Cristo] não se envergonha de lhes chamar irmãos" (Heb 2,11).

Depois da Páscoa, este é o uso mais comum do termo irmão; indica um irmão na fé, um membro da comunidade cristã. Irmãos "por sangue" também neste caso, mas do sangue de Cristo! Isto torna a irmandade de Cristo única e transcendente, em comparação com qualquer outro tipo de irmandade, e deve-se ao facto de Cristo ser também Deus.

Esta nova fraternidade não substitui outros tipos de fraternidade baseados na família, nação ou raça, mas coroa-os. Todos os seres humanos são irmãos e irmãs como criaturas do mesmo Deus e Pai. A isto, a fé cristã acrescenta uma segunda razão decisiva. Somos irmãos não só em termos de criação, mas também em termos de redenção; não só porque todos temos o mesmo Pai, mas porque todos temos o mesmo irmão, Cristo, "o primogénito entre muitos irmãos".

À luz de tudo isto, temos agora de fazer algumas reflexões contemporâneas. A fraternidade é construída exactamente como a paz é construída, ou seja, começando do zero, para nós, não com grandes esquemas, com objectivos ambiciosos e abstractos. Isto significa que a fraternidade universal começa para nós com a fraternidade na Igreja Católica. Também deixo de lado, por uma vez, o segundo círculo que é a fraternidade entre todos os crentes em Cristo, ou seja, o ecumenismo.

A irmandade católica está ferida! O manto de Cristo tem sido rasgado pelas divisões entre as Igrejas; mas - o que é pior - cada peça do manto é frequentemente dividida, por sua vez, em outras peças. Falo, evidentemente, do elemento humano da mesma, pois o verdadeiro manto de Cristo, o Seu corpo místico animado pelo Espírito Santo, nunca ninguém o poderá ferir. Aos olhos de Deus, a Igreja é "una, santa, católica e apostólica", e continuará a sê-lo até ao fim do mundo. Isto, contudo, não desculpa as nossas divisões, mas torna-as ainda mais culpáveis e deve impelir-nos a todos com mais força para as curar.

Qual é a causa mais comum de divisões entre os católicos? Não é dogma, não são os sacramentos e ministérios: todas as coisas que, pela graça singular de Deus, mantemos inteiras e indivisas. É a opção política, quando tira partido da opção religiosa e eclesial e defende uma ideologia, esquecendo completamente o sentido e o dever da obediência na Igreja.

Este, em muitas partes do mundo, é o verdadeiro factor de divisão, mesmo que seja silenciosamente ou desdenhosamente negado. Isto é pecado no sentido mais estrito do termo. Isto significa que "o reino deste mundo" se tornou mais importante, no próprio coração, do que o Reino de Deus.

Creio que todos somos chamados a fazer um exame sério das nossas consciências sobre este assunto e a convertermo-nos. Esta é, por excelência, a obra daquele cujo nome é "diabolos", isto é, o divisor, o inimigo que semeia joio, como Jesus o define na sua parábola (cf. Mt 13,25).

Temos de aprender com o Evangelho e o exemplo de Jesus. Havia uma forte polarização política à sua volta. Havia quatro partidos: os Fariseus, os Saduceus, os Herodianos e os Zelotes. Jesus não se alinhou com nenhum deles e resistiu fortemente à tentativa de o arrastar para um lado ou para o outro.

A comunidade cristã primitiva seguiu-o fielmente nesta escolha. Este é um exemplo especialmente para os pastores que devem ser pastores de todo o rebanho e não apenas de uma parte do mesmo. Portanto, são os primeiros a ter de fazer um exame de consciência sério e a perguntar-se para onde levam o seu rebanho: se para o seu lado, ou para o lado de Jesus.

O Concílio Vaticano II confia aos leigos, em particular, a tarefa de pôr em prática os ensinamentos sociais, económicos e políticos do Evangelho em várias situações históricas. Estas podem ser traduzidas em diferentes escolhas, mesmo que sejam respeitosas dos outros e pacíficas.

Se existe um carisma ou dom especial que a Igreja Católica é chamada a cultivar para todas as Igrejas cristãs, ele é a unidade. A recente viagem do Santo Padre ao Iraque deu-nos uma noção em primeira mão do que significa para aqueles que são oprimidos ou que sobreviveram à guerra e à perseguição sentir-se parte de um corpo universal, com alguém que pode fazer o resto do mundo ouvir o seu grito e reavivar a esperança. Uma vez mais a ordem de Cristo a Pedro foi cumprida: "Confirmai os vossos irmãos" (Lc 22,32).

Àquele que morreu na cruz "para reunir os filhos de Deus dispersos" (Jo 11,52) elevamos, neste dia, "com coração contrito e espírito humilde", a oração que a Igreja Lhe dirige em cada Missa antes da Comunhão:

Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos apóstolos: "Deixo convosco a paz, a minha paz vos dou". Não olhai para os nossos pecados, mas para a fé da vossa Igreja, e de acordo com a vossa palavra concedei-lhe paz e unidade, vós que viveis e reinais pelos séculos dos séculos. Ámen.

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