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A minha experiência de um aspecto da vida do Arcebispo Romero

A canonização de Monsenhor Romero está muito próxima. O Cardeal Rosa Chávez, Bispo Auxiliar de San Salvador, teve a oportunidade e o prazer de partilhar momentos da sua vida com o padre salvadorenho. Documenta alguns aspectos da vida de Óscar Romero, com base no seu conhecimento pessoal e numa fonte de grande riqueza, ainda por explorar: as notas que Romero tomou durante os seus retiros espirituais.

Cardeal Gregorio Rosa Chávez-11 de Outubro de 2018-Tempo de leitura: 7 acta

Pensei várias vezes se seria interessante partilhar a minha experiência com Monsenhor Romero sobre um ponto em particular: a sua relação com o Opus Dei.

Pretendo oferecer apenas alguns trechos e detalhes que só eu conheço, e penso que vale a pena partilhá-los na véspera da sua canonização. Para o fazer, utilizarei também uma fonte quase inédita: as suas notas de retiros espirituais desde antes de se tornar bispo até um mês antes do seu assassinato.

Monsenhor Romero e Don Fernando

O Padre Óscar Romero, como todos os bispos do país nessa altura, recebeu a visita do então Padre Fernando Sáenz Lacalle - Don Fernando - para lhe pedir que pusesse por escrito o seu apoio à canonização do fundador do Opus Dei. O texto laudatório escrito pelo futuro arcebispo de San Salvador é bem conhecido. A propósito, quando foi nomeado bispo de Santiago de Maria, subscreveu todos os padres desta pequena diocese para a revista Palavra.

Quando era seminarista, acompanhei o Padre Romero algumas vezes à Residência Doble Vía em San Salvador, onde viviam estudantes universitários, na sua maioria oriundos da parte oriental do país, dirigidos pela Obra. Era muito próximo da Obra e tinha um sacerdote do Opus Dei como director espiritual. Creio que este último foi Don Fernando, que o consultou antes de aceitar a eleição como bispo auxiliar de San Salvador. Fica registado que ele pediu conselhos a Dom Fernando a respeito do arcebispo na altura, Luis Chávez y González e, sobretudo, do seu auxiliar Arturo Rivera Damas. E, por seu lado, a Nunciatura confiou-lhe que estivesse atento às acções destes prelados e que informasse atempadamente o Vaticano se notasse algo na linha pastoral destas hierarquias que não estivesse de acordo com as normas da Igreja.

Anos mais tarde, quando Monsenhor Romero sucedeu a Monsenhor Chávez na sede arquiepiscopal, entrámos num cenário muito diferente: Monsenhor Romero, na sua carta pastoral programática A Igreja da Páscoa (Abril de 1977), elogia muito bem o seu antecessor quando afirma que está ao leme do navio arquiepiscopal "com o respeito e a doçura de quem sente ter recebido uma herança inestimável para continuar a carregá-la e cultivá-la em horizontes novos e difíceis". (p. 5).

Na mesma carta pastoral, mesmo no meio do texto, descreve a sua utopia da Igreja, retirando-a dos documentos de Medellín: "Que o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente empenhada na libertação de todo o homem e de todos os homens e mulheres se torne cada vez mais claro". (Juventude, 15). A palavra "paschal" aparece em letras maiúsculas no texto. Estamos no início do seu ministério arquiepiscopal e ele já teve de recolher o corpo do primeiro sacerdote a ser assassinado, o Padre Rutilio Grande.
Ele fez dessa utopia uma realidade, assinando-a com o seu sangue: deixou-nos uma Igreja martirial, livre de todo o poder e totalmente comprometida com os pobres e os que sofrem. Monsenhor Romero foi, como afirma a bula de beatificação, "pastor segundo o coração de Cristo, evangelizador e pai dos pobres, testemunha heróica do Reino de Deus".

O próprio Papa Francisco completou esta bela descrição da testemunha de Cristo no dia seguinte, à hora do Regina Coeliao afirmar que "Este pastor diligente, seguindo o exemplo de Jesus, escolheu estar no meio do seu povo, especialmente os pobres e os oprimidos, mesmo à custa da sua vida". (24 de Maio de 2015).

Estamos no início de três anos dramáticos marcados por uma profunda polarização mesmo dentro da Igreja. Em El Salvador, as "releituras" de Medellín abundaram; é bom recordar isto, pois acabamos de celebrar o cinquentenário deste grande evento para a Igreja na América Latina. E é oportuno sublinhar que só neste continente houve uma "recepção" oficial dos documentos conciliares. Era uma época em que as nuances quase não existiam: "Tem de se definir a si próprio"disseram os apóstolos mais radicais da libertação, "ou está com o povo oprimido ou está com os opressores"..

Foi com esta realidade que o venerável pastor teve de lutar. E, neste contexto, confidenciou-me que estava a ser fortemente pressionado para forçar o Opus Dei a ter plenamente em conta estas abordagens, que alguns consideravam ser "a linha arquidiocesana".. Apesar de tudo, Monsenhor Romero manteve a sua amizade e as suas relações com os membros da Obra, escutando atentamente as suas observações e sugestões. Prova disso é que no dia da sua morte tinha passado a manhã inteira, a convite de Don Fernando, que veio buscá-lo ao arcebispado junto ao mar. Foram acompanhados por vários sacerdotes e passaram a maior parte do tempo a estudar documentos relacionados com a formação sacerdotal. No seu regresso da viagem, Monsenhor Romero foi à casa dos jesuítas em Santa Tecla e foi confessar-se. Isto é atestado por várias testemunhas, sendo a mais fiável a do seu confessor, o jesuíta Segundo Azcue. Uma hora mais tarde teve lugar o assassinato sacrílego.

O Opus Dei reapareceu em cena quando, após a morte inesperada de Monsenhor Arturo Rivera Damas, o sucessor imediato de Romero, Monsenhor Fernando Sáenz Lacalle, que nasceu em Espanha mas acabara de ser ordenado sacerdote em El Salvador, foi eleito Arcebispo de San Salvador. Deve-se recordar que a primeira reacção de muitas pessoas não foi favorável a Monsenhor Sáenz. Neste contexto, a revista Palavra publicou uma breve nota de Rutilio Silvestri na qual argumentava que era óbvio que a acusação recaía precisamente sobre um dos melhores amigos do pastor assassinado, uma vez que durante muito tempo ele tinha sido seu confidente e até seu director espiritual. Seria interessante explorar criticamente esta faceta do padre e bispo Oscar Romero, assim como a sua relação com a Obra nos três anos do seu intenso e difícil pastoreio desta porção da Igreja de Deus.

A espiritualidade do Opus Dei nos escritos espirituais de Monsenhor Romero

Como contribuição inicial recorrerei a uma fonte praticamente inédita: as suas notas de retiro espiritual, que cobrem o período desde 1966, quando ele ainda não era bispo, ao retiro que fez um mês antes da sua morte em Fevereiro de 1980. Estas notas estão agora disponíveis ao público, embora ainda de forma selectiva. Totalizam 324 páginas. Em cada página encontramos as notas escritas à sua própria mão e, no topo, a transcrição em letras maiúsculas para facilitar a leitura do texto escrito à mão.

No retiro que fez junto ao lago em Ilopango em Setembro de 1968 - no ano anterior tinha celebrado o seu jubileu de prata como sacerdote - houve várias alusões a Caminho, o famoso livrinho de São Josemaría. Na meditação sobre o pecado, ele regista estas resoluções:
"Mais vida interior, mais serviço aos outros". Negativamente: estratégia. Afastar-se do perigo (Caminho). Plano de vida. Combater o pecado venial: ser perfeito. Anseio de reparação e penitência (The Way). Tempo para a espiritualidade (...). Eu vou morrer. Outono... Serei uma folha morta (O Caminho). Humildade. O mundo vai continuar. Ninguém se lembra daqueles que passaram". E quando ele examina a sua consciência, observa: "O mais importante, um acto de amor (Camino)".

Nestas notas detalhadas, encontramos no final várias referências à revista Palavrauma quando se medita no Evangelho de Marta e Maria (O Caminho: o tabernáculo em Betânia). Na parte final ele transcreve esta citação de uma carta do Prelado escrita em 1950: "Cada um deve santificar a sua profissão, santificar-se na sua profissão, santificar-se com a sua profissão".. Há até espaço para uma anedota de São Josemaría, que ele contou numa conversa quando soube que a sua mãe tinha acabado de morrer: "A mãe do sacerdote deve morrer três horas após o filho"..

De 10 a 14 de Novembro de 1969, participou no retiro pregado pelo Padre Juan Izquierdo do Opus Dei. Na altura, Romero era Secretário-Geral da Conferência Episcopal de El Salvador e só podia estar presente intermitentemente porque tinha de desempenhar tarefas que lhe foram confiadas por Monsenhor Pedro Arnoldo Aparício, Presidente do Episcopado. No entanto, está desapontado por não existir um clima adequado para um encontro com Deus: "Falta de recordação. A 'mancha brava' quebrou definitivamente o silêncio... Interrompi o meu retiro no dia 11, que dediquei à preparação da agenda [...]. No dia 12, acordei novamente em Apulo. Farei o que puder nestes três dias".. E

n a página seguinte, escreva brevemente: "26 de Janeiro (1970). Confissão com o Padre Xavier"..
Algumas linhas abaixo encontramos esta frase, escrita a 21 de Abril de 1970: "O Núncio notifica-me da vontade do Papa. Tenho de responder amanhã. Consulta com o Padre Fernando".. No dia seguinte escreve o que este último lhe diz; vale a pena transcrevê-lo na íntegra: "Elementos positivos: linha de direcção espiritual. a) Face ao problema básico: tomá-lo como sacrifício, expiação e levar a sério a emenda: fuga de ocasiões, vida intensa de oração e mortificação. b) Face à tentação do triunfalismo: vê-lo como uma responsabilidade séria, um serviço que não é fácil, um trabalho na presença de Deus. c) Face à tentação da pusilanimidade: vê-lo como trabalho perante Deus, serviço e orientação a milhões de almas. O Bom Pastor dá a sua vida pelas suas ovelhas"..

Depois, com data de 8 de Junho de 1970 (Colegio Belén), escreve: "No dia 21 de Abril (tinha de ser dia 21!) por volta das 18 horas, o Núncio notificou-me da minha nomeação como bispo auxiliar do Arcebispo Arcebispo. Ia responder no dia seguinte. Consultei o P. Sáenz, Dr. Dárdano, P. Navarrete".. O que se segue é um breve resumo do que cada um dos inquiridos lhe diz.

Um guia seguro no meio da tempestade

O que ele escreveu abaixo marcou o bispo noviço com fogo: "A Assembleia Plenária do Episcopado da América Central e Panamá em Antígua Guatemala: 27 de Maio - 2 de Junho. Assembleia Plenária do Episcopado da América Central e Panamá em Antígua Guatemala. Uma verdadeira graça da primeira ordem: a convivência com tantos bons bispos, a reflexão de D. (Eduardo) Pironio, a liturgia, o meu trabalho..."..

O amado bispo argentino, cuja causa de canonização foi introduzida há vários anos, pregou o retiro no Vaticano em 1974, a convite de Paulo VI. Repetiu o mesmo retiro no ano seguinte, em Julho, perante os bispos do Istmo centro-americano em Antígua Guatemala. Monsenhor Romero era nessa altura secretário adjunto do SEDAC (Secretariado Episcopal da América Central) e tomou notas detalhadas de cada uma das doze meditações pregadas por Pironio.

Foi aí que Monsenhor Romero compreendeu o verdadeiro significado de Medellín como um acontecimento salvífico que encarnou os ensinamentos do Concílio Vaticano II na dramática realidade da América Latina. E foi aí que foi reforçada uma amizade que faria do bispo argentino o seu conselheiro, o seu confidente, e mesmo as suas lágrimas em cada uma das visitas do arcebispo mártir ao Vaticano. Isto aparece muito claramente no Diário de Monsenhor Romero e é conhecido de todos.

Que estas linhas sirvam para compreender melhor o primeiro santo salvadorenho. Que o cheiro da sua santidade - o rosmaninho é uma planta aromática - se espalhe por todo o lado.

O autorCardeal Gregorio Rosa Chávez

Bispo auxiliar de San Salvador

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