Cultura

José Tolentino Mendonça ou as condições de existência

Apesar de nenhuma editora espanhola ter publicado até à data uma amostra mínima da poesia de Tolentino Mendonça, este é uma das vozes mais representativas da poesia lírica portuguesa mais recente, a par dos mais prestigiados poetas de língua portuguesa. Em Espanha, é conhecido pelos seus ensaios, alguns dos quais foram publicados em várias edições.

Carmelo Guillén-30 de abril de 2024-Tempo de leitura: 5 acta

"Não teorizo: observo. Não imagino: descrevo. Não escolho: escuto".Esta abordagem constitui o ponto de partida para a poesia de Tolentino Mendonçaque aborda, nas suas próprias palavras, ".as condições de existência".. Defendo, assim, a sua poesia lírica que, de base culta, surpreende pelo estilo eloquente e preciso, pela utilização de imagens visuais e pela capacidade de integrar nas suas composições elementos de fontes muito diversas, bem como pela incorporação de aspectos da sua própria vida, sem que o nome de Deus - que é o que muitas vezes se espera quando se conhece a sua biografia - apareça ou dê azo a que se possa considerar que se trata de um poeta manifestamente religioso, muito menos com fins moralizantes. 

Além disso, quando lhe perguntaram porque é que quase não há referências explícitas à divindade nos seus versos - que há, há -, respondeu: "... não há referências explícitas à divindade nos seus versos.Acredito que Deus está em todo o lado. Quanto mais material, mais espiritual. Prefiro sempre uma linguagem aberta, mesmo correndo o risco de ambiguidade, a uma linguagem estreita, incapaz de exprimir a complexidade. Confesso que, por vezes, a minha maior dificuldade é encontrar um traço de Deus nos discursos espirituais tipificados. Tudo o que tenta domesticar Deus afasta-se de ele". Por isso, se tivesse de definir a sua poesia, diria que é a expressão humanista de um credo poético singular, iluminado pela leitura dos seus ensaios, nos quais, como num palimpsesto, se sobrepõem múltiplas camadas culturais e com as quais dialoga constantemente, razão pela qual é tão sugestiva de possibilidades interpretativas.

Como uma única chama

Este mundo intertextual é uma ferramenta retórica sobre a qual ele elabora uma poética baseada no barulho da vida quotidiana, com uma ".atenção à realidade, uma atenção incessante, sensível ao visível e ao invisível, ao audível e ao inominável".Em suma, a sua obra lírica é um olhar profundo sobre os enigmas, as cicatrizes e as esperanças da intrincada existência do homem. É por isso que, ao lermos os seus poemas, sabemos que eles falam de temas cruciais relacionados com a condição humana e que abarcam o material e o espiritual em completa inter-relação, mostrando assim que a poesia é um espaço onde não há fronteiras e onde cabem o sublime e o humilde, o natural e o artificial, o que foi e o que é: "...".O poema pode conter: coisas certas, coisas erradas, venenos a manter fora do alcance / excursões pelo campo [...] / uma guerra civil / um disco dos Smiths / correntes oceânicas em vez de correntes literárias".escreve em Grafiteum exemplo, entre muitos outros, em que Tolentino Mendonça dá visibilidade ao seu modo de proceder quando empreende um poema. 

O mesmo título da sua coletânea de poesia, A noite abre-me os olhosrefere-se à amplitude de visão oferecida pela criação poética; um título que, como o próprio poeta afirmou, reflecte a sua "dialeto transfronteiriço, porque mistura uma referência a uma canção dos The Smiths [Tolentino Mendonça está, sem dúvida, a referir-se à canção Há uma luz que nunca se apagaHá uma luz que nunca se apaga"]. com uma clara evocação da teologia da "Noite Escura" de São João da Cruz. O profano e o sagrado erguem-se como uma única chama".

Um viajante imóvel

Para esta incursão literária, o poeta madeirense apresenta-se como um viajante estacionário: "Parados, fazemos as grandes viagens".. No entanto, embora escreva a sua poesia a partir da quietude, demonstra uma apurada capacidade de discernir o que acaba por se desvanecer com o tempo: "...a poesia do poeta é um poema da mesma qualidade.De repente deixamos de perceber / as profundezas dos campos / os grandes mistérios / as verdades que jurámos preservar". daquilo que deixa uma impressão indelével na alma: "Mas são precisos anos / para esquecer alguém / que acabou de olhar para nós".Isto permite que a sua atividade poética seja entendida como uma procura do eu, decididamente enriquecida pela interação com os outros na construção da sua própria identidade. 

Esta interação envolve o olhar do outro, que não só olha mas também é outro. Neste sentido, manifesta-se como um meio de partilhar, confrontar e compreender a experiência humana, ao mesmo tempo que contribui para a co-criação do universo dos seus poemas, acrescentando camadas de escuridão e beleza. É, sem dúvida, uma ideia capital, que ilumina muitas das suas composições, muito semelhante à do falecido Papa Bento XVI quando afirmou que: "...o poema não é um poema, é um poema.Apenas o serviço aos outros abrir os olhos [sublinhado do autor do artigo]. para o que Deus está a fazer por mim e o quanto me ama".embora Tolentino Mendonça a apresente de forma mais subtil, entrelaçada na retórica dos versos e usando "a noite" como sujeito da frase gramatical.

Viver o corpo

Em todo o caso, se a poesia é para ele uma procura que exige quietude - e dou, ainda que muito brevemente, mais um passo no desenvolvimento da sua poética -, essa procura só é possível a partir do corpo. Ou dito de outro modo: o corpo é o lugar ou a situação em que cada um está mais próximo de si. Embora não sejamos apenas o corpo, Tolentino Mendonça acredita que nele e através dele "... somos o corpo.vivemos, movemo-nos e existimos".além disso: "Os sentidos do nosso corpo abrem-nos à experiência de Deus neste mundo", ou como ele anuncia no poema O que um corpo pode: "Vivemos o corpo, coincidimos / em cada um dos seus poderes: mexemos as mãos / sentimos frio, vemos o branco das bétulas / ouvimos na outra margem / ou por cima das aveleiras / o grasnar dos corvos".. Esta consciência corporal sublinha a importância de estar totalmente ligado às sensações e experiências somáticas, quer através da respiração, quer simplesmente tomando consciência das sensações internas. São muitas as composições que abundam neste sentido, especialmente na sua coleção de poemas Teoria das fronteiras (2017), onde afirma: "O corpo sabe ler o que não está escrito". o "O corpo é o estado em que cada um / respira mais perto de si".

Escola do silêncio

Mas este não é o fim do seu universo lírico. Tal como o corpo, o silêncio é outro dos seus grandes temas. De facto, na coleção de poemas A papoila e o monge (2013) dedica-lhe mesmo uma série de pequenos textos intitulados Escola do silêncio. O documento afirma: "Silenciar para fazer dizer". o "Que o vosso silêncio seja tal / que nem sequer se pense nele".demonstrando assim que há mais mundos para além da ditadura do ruído e que o silêncio é uma forma de resistência à agitação da vida, "um lugar de luta, de procura e de espera.diz ele num dos seus ensaios. "Pouco a pouco, juntamo-nos à possibilidade de dar espaço, de abrir a nossa vida ao outro, de nos deixarmos habitar pela revelação da alteridade". E é aí, na alteridade, que converge toda a sua obra lírica, quer do silêncio, quer do corpo, quer da quietude, quer da intertextualidade cultural em que se move esta poesia, tão necessitada de uma tradução imediata para espanhol.

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