Cultura

Circe Maia, a poetisa doméstica

Pouco conhecida em Espanha, o recente Prémio Internacional de Poesia Federico García Lorca deu à escritora uruguaia Circe Maia um merecido reconhecimento pela sua capacidade de fazer da criação poética um meio de clarificar a realidade, baseada na experiência doméstica, através de uma linguagem precisa.

Carmelo Guillén-13 de fevereiro de 2024-Tempo de leitura: 5 acta
Circe Maia

São numerosos os poetas que, graças à adaptação musical dos seus poemas por cantores que os popularizaram, alcançaram um vasto público. Em Espanha, os casos mais conhecidos são os de António Machado y Miguel HernándezOs poemas eram interpretados por Serrat, que facilitava a absorção da riqueza expressiva da palavra pelo ouvinte através de suas canções. No Uruguai, a poesia de Circe Maia sofreu o mesmo destino. Textos como "Por detrás de mi voz" ou "Versos de lluvia", para citar alguns exemplos, fazem parte da memória colectiva do seu país.

Nos últimos meses, por ocasião do prémio atribuído pela cidade de Granada (Prémio Internacional Federico García Lorca), a voz desta intelectual, mãe de uma família numerosa, tornou-se mais próxima e vibrante para o leitor que procura na sua obra lírica uma forma de se reconhecer através de um "...uma forma de se reconhecer através de um "...uma forma de se ver...".linguagem direta, sóbria e aberta, que não exija uma mudança de tom na conversa".como a própria Maia refere na sua primeira coleção de poemas, Em tempo (1958). Ao que acrescenta: "A missão desta linguagem é descobrir e não cobrir, revelar os valores, os significados presentes na existência e não mergulhar-nos num mundo poético exclusivo e fechado"..

Fiel a estes princípios poéticos, a sua escrita tem vindo a ganhar adeptos não só pelo imaginário variado que apresenta do quotidiano, através de objectos, de pessoas que lhe são próximas ou inspirado na memória de entes queridos já falecidos, mas também pela difícil simplicidade dos seus versos, tão cheios de luminosidade. 

Primeira atividade

Surpreendentemente, embora aos 92 anos seja conhecida e elogiada pela sua produção poética, desde há muito que esta foi (e é) a sua ocupação secundária, como confessou em algumas entrevistas e como afirma no poema "Segunda atividade": "...".Já este sentar-se / para pegar num papel, é um sair / - para onde, onde? / Porque alguém corre ou chama e tu estás parado, / ou melhor, não estás lá porque foste para onde, onde? / É quase embaraçoso. No entanto, a última coisa que queremos é ir embora. [...] Andar às voltas com sons, com ritmos / enquanto à volta tremem, germinam vozes, seres e coisas reais"..

O marido, a educação dos filhos - um dos quais morreu num acidente de viação quando ela tinha 18 anos - e a dedicação aos dez netos são a sua principal fonte de atenção. Nem - propositadamente - os grandes temas habituais, nem abordagens que ultrapassem a dimensão terrena do homem, mas sim as mais simples situações biográficas comuns com que uma mulher, mãe e avó tem de lidar no seu dia a dia, dão razão à sua lírica.

De facto, justifica-o em "Esta mujer", uma das suas composições mais célebres: "Esta mulher é acordada por um grito: / Levanta-se meio adormecida / Prepara um leite em silêncio / Cortado por pequenos ruídos de cozinha / Vejam como ela envolve o seu tempo e nele esta vida / As suas horas / bem tecidas / são feitas de fibras fortes / como coisas reais: pão, aveia, / roupa lavada, lã tecida / Cada coisa germina outras horas e todas são degraus / que ela sobe e ressoa / Sai e entra e move-se / e o seu fazer ilumina-a".

A professora e escritora argentina Lara Segade exprime com inteligente lucidez a libras esterlinas da riqueza da sua poesia: "Quando se passa muito tempo dentro de casa, começa-se a reparar nas pequenas variações das coisas do dia a dia. A forma como a luz se move sobre os objectos, por exemplo. O crescimento das plantas ou das crianças. Começamos a perceber a transformação contínua de tudo, até do que parecia parado, estável ou permanente. Esse é o olhar que Circe Maia desdobra em seus poemas"..

A palavra essencial no tempo

Na obra poética deste poeta uruguaio, mais do que o que se lê, predomina a experiência vivida, atitude que encontra uma justificação categórica em entendê-la como "...".uma resposta animada ao contacto com o mundo".que Circe Maia assimila do seu mestre, António Machado, e que lhe serve para estabelecer um diálogo constante e profícuo com o que a rodeia, como quadro de expressão lírica. Assim, para ela, a vida é vida no tempo, conversa com e no tempo, nunca monólogo.

O ser humano - como ele nos deixa ver - é feito, como tudo o que é apreensível, de tempo. Assim, ele revive o passado ("Por detrás da minha voz / - escutai, escutai - / outra voz canta / vem de trás, de longe; / vem de bocas enterradas / e canta / dizem que não estão mortos / - escutai, escutai - / enquanto se levanta a voz / que os recorda e canta".) ou aproxima um futuro inevitável do presente ("...").outro Thomas, inglês, Sir Thomas More, / sonha com a sua fantástica Utopia / enquanto o machado do carrasco está a ser afiado".). 

Em "Vários relógios", o seu poema-chave sobre o tema, desenvolve estas considerações e conclui que o tempo não só é abrangente, como assume várias formas. Vale a pena reproduzi-lo na íntegra: "Vários relógios invisíveis medem / a passagem de tempos diferentes. Tempo lento: as pedras / viram areia e leito / do rio / Tempo / de trechos: lento, invisível / o relógio vegetal dá a hora verde / a hora vermelha e dourada, a roxa / a cinza / Tudo em ritmo, silencioso, / ou com um som escuro, que não se ouve. / Apoiado ao mesmo tempo na pedra e na árvore / Um ser de cintilações e batidas / Um ser feito de pó de memória / Está parado ali / E quer penetrar sorrateiramente / Num outro ritmo, num outro tempo / Alienígena"..

Como tudo é provisório, é fácil perceber que a poesia de Circe Maia, embora baseada em assuntos domésticos ou familiares, consegue, pela sua própria força poética, levar o leitor a uma busca pelo inapreensível, pelo desconhecido, por aquilo que ultrapassa a mera e vulgar realidade visível, tornando-se, pelo seu enorme lirismo, um meio de conhecimento da existência e das suas dimensões menos tangíveis. 

Exatidão qualitativa 

Lembro-me de a ouvir dizer num programa de rádio que, enquanto a ciência procura a precisão quantitativa, os poetas procuram uma certa precisão qualitativa. Precisamente, a palavra "precisão" aparece no comunicado pelo qual foi galardoada com o Prémio Internacional García Lorca; uma palavra que impulsiona o seu trabalho poético e que se percebe na sua extraordinária capacidade de selecionar os adjectivos adequados que revelam a realidade de cada um dos seus poemas.

Ao contrário de muita da poesia atual em que o olhar, contemplativo ou não, é o ponto de partida da escrita, a poesia de Circe Maia é gerada de uma forma brusca, como um flashesbaseada em sensações, principalmente de natureza acústica ("Chamam por nós. Chamam de todos os lados / vozes, tarefas / De pátios, ruas, janelas / vozes se levantam / agitadas, dispersas".) ou tátil ("Por vezes, sim, é possível / abrir portas fechadas para dias distantes".).

São estas as sensações que movem os seus versos. Nem explosões, nem versos apaixonados ao modo do romantismo exaltado, nem o traço aparente da mais ardente emoção. Da subtileza, da contenção, até mesmo do invólucro dos silêncios, emergem os seus textos, capazes de encerrar imagens poderosas, habitáveis, transitivas, acessíveis a qualquer leitor que as olhe. Experimentá-los vale, sem dúvida, a pena, porque, como ela própria prossegue na sua atividade poética, facilita a criação de pontes humanas, sempre tão necessárias: "Num gesto trivial, numa saudação, / no simples olhar, dirigido / em voo, para outros olhos, / constrói-se uma ponte dourada, frágil, / basta apenas isso, / nem que seja por um instante".Assim, a poesia torna-se um lugar de encontro, de revelação e de enriquecimento para aqueles que a integram na sua vida.

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