Gregorio Luri (Navarra, 1955) é um dos filósofos e pedagogos mais procurados da actualidade. Não precisa de introdução. E com aviso prévio, apanhámo-lo no AVE, vindo de Barcelona para Madrid, pelo menos uma semana antes da guerra na Ucrânia. Ele responde a partir da plataforma de uma carruagem, o que é muito apreciado. A sua conta no twitter @gregorioluri é bem visitado, e pode encontrar aí, e claro nas suas numerosas publicações, os seus pensamentos, sempre fortes e cheios de ideias frescas, algumas das quais são certamente surpreendentes.
Há algumas semanas, Gregorio Luri falou numa colóquio apresentação do Mestrado no Christianity and Contemporary Culture, que está a ser lançado pela Universidade de Navarra, e que será lançado no próximo ano académico 2022-2023. Teve lugar no Campus de Madrid, juntamente com Lupe de la Vallina, fotógrafa, e Ricardo Piñero, Professor de Estética e conferencista do curso de Mestrado. Foi assistida por mais de 400 pessoas, tanto pessoalmente como em linha, e foi aí que iniciámos esta conversa.
Falemos do mestrado que o senhor e os seus colegas apresentaram em Madrid. O que destacaria?
- Poucas coisas são hoje mais urgentes do que aumentar o valor do que é humano. E para valorizar o humano de um ponto de vista humanista, o que para mim significa a afirmação da natureza humana. O homem não é apenas história, ele é também natureza. Ou, por outras palavras, que existem componentes ahistóricas na historicidade humana.
A sensação que tenho, pelo menos, é que hoje parece que o homem se cansou de si próprio, como se ao percebermos que as promessas que fizemos a nós próprios durante o Iluminismo não foram cumpridas, estivéssemos a optar por uma modificação tecnológica. Sinto que é basicamente uma questão de higiene no nosso tempo valorizar a natureza humana. Foi por isso que participei entusiasticamente na apresentação deste mestrado. Creio que há poucas coisas mais essenciais do que recuperar a nobreza do que é humano.
No início do seu discurso, citou algumas palavras de São João Paulo II aos jovens no Chile. E falou de medo, e do amor de Deus, algo que me surpreendeu, logo no início.
- Vejamos. Cada um vê o presente do seu próprio ponto de vista. De um ponto de vista pedagógico, o que vejo é que hoje, mesmo as crianças em idade escolar estão a ser educadas com medo do futuro. Toda a ideologia progressista desenvolvida ao longo do século XIX parece ter-se desviado para o pessimismo. O que vai ser do mundo? O que vai ser de nós? Há, por assim dizer, um certo impulso catastrófico no presente. Por outras palavras, existe uma atmosfera de pré-apocalipse. O que é que vai acontecer ao mundo, o que é que vai acontecer a tudo?
Bem, face a esta situação, face ao medo do futuro, penso que o cristão tem algo importante a dizer, não tanto aos outros, mas a si próprio. É o que diz a Epístola de São João: Conhecemos o amor de Deus. O amor de Deus precede-nos. Antes. Não é uma promessa para o futuro. É algo que já experimentámos. Deus ama-nos. E portanto, se isto é um reconhecimento, se conhecemos o amor de Deus, porque devemos ter medo dele?
Falou também no final, e outros apanharam-no à mesa, sobre a beleza. Como podemos mostrar melhor a nossa fé? E concordou, através da beleza e do amor.
- Se leres os Evangelhos de uma forma ingénua, que penso que é como tens de os ler, e te deparares com o Nascimento de Jesus, haverá uma história mais bonita do que essa? O facto de não se ir ajoelhar perante uma ideologia, mas perante uma criança recém-nascida parece-me ser profundamente belo. Por outro lado, a tradição cristã é complexa, e há momentos de que é difícil orgulhar-se. Mas se considerarmos o que tem sido permanente na tradição cristã, essa abordagem à beleza parece-me essencial.
Se me permitem uma anedota, aqui vai ela. Resume um pouco do que eu quero dizer. Tenho uma fraqueza especial por professores de religião. Quando me chamam, eu tento sempre ir. Em primeiro lugar, porque estão a passar um mau bocado. E, em segundo lugar, porque precisam de saber que há pessoas dispostas a ajudá-los. E uma vez, num lugar, vou omitir o nome, onde ia estar com professores de religião de uma comunidade, eu disse: Olha, o poder que temos é extraordinário. Vou convocar Deus agora mesmo e Ele vai aparecer aqui mesmo. Pode imaginar a surpresa que isto provocou. Porque eu vou dizer: o Senhor manifesta-se, e ele vai manifestar-se. Foi criada uma grande expectativa.
Eu já tinha preparado o seguinte com outra pessoa. Quando eu disse: "Senhor, manifesta-te", o Locus Istepor Bruckner. Aquela beleza de Bruckner quando ele diz, que lugar é este? É o lugar onde Deus se manifesta. Essa beleza, quando a ouvimos, é impossível não nos deixarmos comover por isso. E nesse momento, Bento XVI tinha acabado de dizer algo em que eu acredito totalmente. Se há algo divino na beleza, é porque é uma manifestação de Deus. Penso que é impossível não ser movido pela beleza. E nessa emoção há um gosto de algo que vai para além do objecto. E que o gosto residual de algo que vai para além do objecto é transcendência.
Vou dar-lhe um pouco de choque, Don Gregorio, com duas questões.
- Vejamos.
Em primeiro lugar. Há anos que testemunhamos ideologias como a ideologia do género, ou esta cultura do cancelamento, 'acordada', de que Rémi Brague falou em Madrid. Como podemos enfrentar estes fenómenos de antagonismos sociais, de confrontação...?
- As ideologias modernas visam uma redução radical da complexidade do mundo da vida, do mundo em que vivemos, onde manifestamos as várias dimensões do humano.
As ideologias reduzem o mundo da vida ao que, de acordo com os seus princípios, as coisas devem ser. E o que não se encaixa nestes esquemas, nos seus esquemas, é considerado perverso. Por isso, quando uma pessoa comum lhe diz: Eu acredito que..., eles dizem: não, não, você não acredita que, você acredita noutra coisa, o que acontece é que você é uma pessoa alienada, e por isso deve pensar como eu lhe digo.
Creio que hoje em dia as coisas elementares no mundo da vida estão em perigo. E isso significa que a sanidade do homem comum está em perigo. É por isso que acho cada vez mais revolucionária a afirmação de Chesterton sobre o riso, o casamento e a cerveja.
Defender o riso, o casamento e a cerveja hoje é, creio eu, o principal argumento contra tal reducionismo ideológico. Temos de defender o riso, o casamento e a cerveja, e temos de defender o bom senso da pessoa comum.
Também digo, e repito e insisto, que uma família normal é uma pechincha psicológica. Como está. Estou absolutamente convencido. Embora encontre tantas pessoas prontas a criticar a família por não ser perfeita, penso que temos de afirmar que esta família normal, com as suas imperfeições, é claro, é uma pechincha psicológica.
No entanto, por vezes nós, cristãos, não o tornamos fácil. O abuso de menores, o prejuízo para a reputação dos padres, e da própria Igreja.
- Penso que tudo o que se pode dizer sobre abusos, Jesus disse numa frase: "Ai de quem os escandalizar! Penso que não há necessidade de acrescentar mais nada.
Diz na sua conta do Twitter que o perdedor num diálogo é aquele que ganha. Explique-me isso, porque agora todos queremos estar certos, não é verdade?
- O que perde é o único que aprendeu alguma coisa no diálogo. Se vai defender a tese A, e no final do diálogo mantém a tese A, o que aprendeu? Não aprendeu nada. Pode ter tido sucesso, e depois há a vanglória do ego. Agora, se vai defender a tese A, e no decurso do diálogo descobre que esta tese tem de ser reescrita, é você quem aprendeu. Num diálogo, parece-me elementar. Quem ganha é quem perde, ou se quiser, quem perdeu é quem ganhou. Isso parece-me essencial. Os cristãos são os perdedores que continuam a ganhar.
Reclama memória. Não parece estar muito na moda. Como educador, o que pode dizer?
- As modas, como o nome sugere, são questões sazonais. Havia um grupo filosófico maravilhoso em Soria, que infelizmente já não existe, e a primeira vez que me convidaram, disseram-me: só estamos interessados no eterno. Fiquei comovido com essas palavras. A questão, para mim, é: as modas são importantes, mas não se pode avaliá-las se não as vir de fora da moda. Para julgar uma moda é preciso vê-la de fora, com uma certa distância, não é verdade?
O que tem tudo isto a ver com a memória? Em primeiro lugar, sem memória não há interioridade. Porque a memória é o grande refúgio que lhe permite isolar-se um pouco do seu ambiente, ser capaz de pensar, ruminar, tudo o que leva consigo, mesmo a consciência das partes escuras que sempre carregamos consigo.
Em segundo lugar, estou convencido de que o que não está na memória não foi aprendido. Se leu Dom Quixote e não ficou absolutamente nada na sua memória, não o leu. No final, o que reteve de Dom Quixote é o que ficou na sua memória.
Em terceiro lugar, não se pode pensar no conhecimento que está ausente. Portanto, quando encorajamos as crianças a que o importante é relacionar-se, pensar, ser crítico, eu digo: sim, mas se não sabe algo que lhe permita pensar, em que diabos está a pensar?
E finalmente, nunca conheci ninguém na minha vida que quisesse ter menos memória do que eles. Além disso, o que vejo é que as pessoas de uma certa idade que começam a perder a memória experimentam-no como um drama. Portanto, se a perda de memória é um drama, o ganho de memória é uma celebração.
Não se ouve falar disto.
- Isso não me preocupa nada. Estou interessado, como disse antes, nas pessoas que perdem, ganham.
Uma palavra sobre educação. Temos uma nova lei da educação (LOMLOE). Diga-me um aspecto que redireccionaria, se possível.
- Traria tudo de volta aos eixos. Penso que um regresso à sanidade é absolutamente urgente. A sanidade é, para mim, a capacidade de aprender com a sua própria experiência. Vejamos o que fazemos bem, e vamos aprender com isso. E vamos ver o que fazemos de errado, e vamos melhorá-lo. O que não faz sentido é aplicar ao nosso sistema educativo os critérios, por exemplo, da Agenda 2030, e transformá-los em competências e tentar adequar a nossa realidade a esses critérios.
Porque, sabe qual é o problema com aqueles que querem sempre começar do zero? Eles não podem aprender com a sua experiência. Porque, como têm sempre de aprender do zero, se há uma coisa de que estou convencido, é que é muito mais útil aprender um pouco com a sua experiência do que tentar limpar a ardósia.
Por outro lado, com o LOMLOE estamos a assistir a um espectáculo muito hipócrita. Porque no Ministério da Educação actuam como se governassem, quando os que governam são os Ministérios Regionais da Educação das Comunidades Autónomas. Mas na prática também não estão a governar, porque estamos a assistir a uma extraordinária anarquia metodológica. Precisamente porque esta anarquia metodológica é real, e cada centro faz o que considera apropriado ou conveniente, a liberdade de escolha é essencial.
Uma liberdade de escolha que é dificultada, não é?
- Mas vejamos, se dermos autonomia aos centros, para que cada um possa ser o que pensa que deve ser, e eu não tenho escolha, e tenho de levar o meu filho à escola do meu bairro, de que me serve essa autonomia? Se todas as lojas em Madrid vendessem exactamente a mesma coisa, não seria necessária autonomia. Se cada loja vende produtos diferentes, quero ter a possibilidade de escolher onde quero comprar...
Terminamos a conversa com Gregorio Luri. Pedimos-lhe que recomende um par de livros que considere interessantes, e ele responde: "Nunca faço isto. Não gosto de recomendar livros. A biografia de leitura de cada pessoa é sagrada. Cada um tem de construir o seu próprio caminho de leitura, o seu próprio processo de leitura. Prefiro não dizer nada. E isto apesar de eu ter acabado de montar uma editora de ensaios em Barcelona".
Vamos ignorá-lo, e dar-lhe-emos a ligação: Rosameronembora Gregorio Luri declare: "Eu nem sequer recomendo a minha própria. O leitor tem de construir a sua própria história de leitura, a sua própria memória de leitura. A cultura não vive nos livros, vive na subjectivização do que está nos livros, na televisão, na Internet, etc. Cabe a cada indivíduo construir o seu próprio caminho de leitura. Porque todos os livros interessantes irão encaminhá-lo para outros livros".
Continuaríamos a conversar durante muito tempo com o professor, mas isso não é possível. Bon voyage.