A hierarquia chinesa nunca aceitou muito bem as viagens de altos hierarcas do Vaticano. O último a deslocar-se à China foi o então Cardeal Theodore McCarrick, há oito anos. McCarrick foi mais tarde desonrado pelo escândalo de abusos em que estava envolvido e foi obrigado a demitir-se do estado clerical. Mas continuou a ser, apesar de tudo, o último cardeal a chegar à China.
Entretanto, muita coisa mudou. Em 2018, o Papa Francisco assinou um acordo provisório com a China para a nomeação de bispos. O acordo durou dois anos e foi renovado em 2020 e 2022. Este acordo levou à nomeação de seis bispos com a dupla aprovação de Roma e Pequim, embora alguns deles já estivessem em processo de aprovação antes do acordo. Mas, recentemente, registou-se uma súbita aceleração do lado chinês, o que pôs em risco o acordo recentemente renovado.
A missão do Cardeal Zuppi à China servirá para reforçar o acordo sino-vaticano, ou será de outro tipo?
O Dragão Vermelho e o impacto geopolítico
O envio do Cardeal Zuppi à China como enviado do Papa seria a quarta expedição num curto espaço de tempo para o presidente da Conferência Episcopal Italiana. O Papa tinha-o nomeado primeiro seu enviado especial para a Ucrânia e, nessa qualidade, Zuppi foi primeiro a Kiev, onde se encontrou com o Presidente Volodyimir Zelensky, e depois a Moscovo, onde também se encontrou com Yury Ushakov, conselheiro do Presidente Vladimir Putin.
A missão de Zuppi não era uma missão de paz, mas de construção de pontes de diálogo. E a primeira forma de diálogo era o empenhamento humanitário. Assim, o cardeal centrou-se na questão das crianças ucranianas levadas para o outro lado da fronteira. Segundo os ucranianos, foram deportadas, arrancadas às suas famílias. De acordo com os russos, foram levadas para casa. No entanto, ninguém sabe o número exato. Em muitos casos, são crianças sem família ou não acompanhadas, pelo que é difícil ter um número exato.
Parece que se chegou finalmente a um acordo sobre uma troca de listas entre a Ucrânia e a Rússia que poderá levar ao regresso destas crianças. Mas este acordo terá de ser objeto de mais trabalho.
No âmbito da missão, o Cardeal Zuppi deslocou-se aos Estados Unidos, onde também se encontrou com o Presidente Joe Biden. Também aí foi dada prioridade às questões humanitárias.
Porquê, então, a China? Porque a Santa Sé, ou pelo menos o Papa, olha com interesse para a mediação chinesa no conflito ucraniano. E aqui a Comunidade de Sant'Egidio, à qual pertence o Cardeal Zuppi, pode ser um bom ponto de contacto. Dado que Sant'Egidio tem sido um dos principais promotores do diálogo com a China, está entre aqueles que vêem o acordo sobre a nomeação dos bispos de forma mais positiva e pode, portanto, servir de ponte, ainda que interpretativa, com a China.
O acordo sobre a nomeação dos bispos
Embora haja ceticismo do lado chinês quanto à possibilidade de a visita do Cardeal Zuppi ser efetivamente autorizada, há algumas indicações de que seria a altura certa para considerar essa visita.
Após a segunda renovação do acordo sobre a nomeação dos bispos, dois factos vieram azedar as relações sino-vaticanas.
Anteriormente, as autoridades chinesas tinham nomeado o bispo de Yujiang, John Peng Weizhao, auxiliar da diocese de Jainxi, que, aliás, não é reconhecida pela Santa Sé. A Santa Sé protestou, sublinhando que esta decisão, tomada sem qualquer informação, violava o espírito do acordo.
Por esta razão, as autoridades chinesas transferiram unilateralmente o bispo Joseph Shen Bin de Haimen para Xangai, instalando-o sem qualquer nomeação pontifícia. Uma irregularidade que o Papa Francisco remediou ao fim de vários meses, fazendo a nomeação, mas sobre a qual o Cardeal Pietro Parolin também quis fazer uma declaração oficial.
Uma via de dois sentidos entre a China e a Santa Sé?
De facto, a entrevista oficial do Cardeal Parolin, após a nomeação do Bispo Shen Bin pelo Papa Francisco, parecia assinalar uma via de dois sentidos nas relações com a China.
Por um lado, o Papa Francisco está determinado a seguir o caminho do diálogo, mesmo pragmático, sanando quaisquer irregularidades, se puderem ser sanadas, e prosseguindo neste terreno acidentado. Por outro lado, há uma escola de pensamento do Vaticano que, embora desejando manter um diálogo com a China, quer que esse diálogo se baseie na reciprocidade.
As últimas decisões chinesas resultam de uma interpretação restritiva do acordo sobre a nomeação de bispos. O acordo, dizem, não abrange as dioceses e, por isso, a China pode decidir transferir bispos para dioceses, mesmo que estas não sejam reconhecidas pela Santa Sé, tendo mesmo o direito de criar a sua própria diocese. E o acordo, diz-se, não fala de transferências, embora os chineses não contemplem a ideia de que mesmo uma transferência de uma diocese para outra implica uma nomeação papal e uma decisão papal.
Mas, de facto, o acordo de trabalho deve basear-se na compreensão mútua, e esse é o desafio mais difícil. Do lado da Santa Sé, o objetivo é que, mais cedo ou mais tarde, o acordo seja publicado, tornando-se definitivo, porque isso deverá estabelecer uma via segura, ou pelo menos pública, à qual se possa fazer referência. Não será de imediato, mas é a solução mais lógica.
Foi em 2005 que o então Secretário para as Relações com os Estados, Monsenhor Giovanni Lajolo (atualmente cardeal), decidiu que o diálogo com a China deveria, entretanto, basear-se numa questão específica, que era a nomeação de bispos. E, de facto, depois da carta de Bento XVI aos católicos chineses, em 2007, houve nomeações que mereceram a dupla aprovação de Roma e de Pequim. Mas, mesmo nessa altura, as decisões de Pequim eram flutuantes, criando bastantes dificuldades ao diálogo.
Para que é que serve a viagem de Zuppi?
É incerto se a viagem de Zuppi servirá para criar um clima de confiança que permita também que o acordo avance dentro do prazo. Mas esse não será certamente o objetivo. A viagem ajudaria certamente a China a ganhar maior legitimidade na cena internacional, o que se crê ser um elemento-chave para o sucesso final da missão.
Se a Santa Sé ajudar o Dragão Vermelho, e se for bem sucedida, poderá haver desenvolvimentos. Mas a que custo, e como é que a Santa Sé equilibraria os interesses chineses, russos e ocidentais? O risco é parecer demasiado desequilibrado em relação a um dos lados da história, abandonando a clássica moderação do Vaticano em nome de um certo pragmatismo.
A eventual missão do Cardeal Zuppi tem a ver com este equilíbrio. Os desafios que permanecem em segundo plano dizem respeito à liberdade religiosa, à capacidade da Igreja de exercer a sua missão, à própria liberdade da Igreja. Mas também dizem respeito à posição da Igreja neste tempo de mudança.
Assim, a dupla via da diplomacia do Vaticano traz também consigo desafios não negligenciáveis. Os enviados especiais sempre fizeram parte do esforço diplomático. O importante é não abusar deles, sob pena de se tornarem missões personalistas. A missão chinesa do Cardeal Zuppi também terá de ter este facto em conta.