Espanha

Natalia PeiroOs principais pontos de acção da Cáritas são as pessoas".

A Cáritas Española tem 75 anos de idade. Desde 1947, muito mudou na sociedade espanhola em termos das suas necessidades e estrutura social. No entanto, como sublinha a sua secretária-geral, Natalia Peiro, nesta entrevista com a Omnes, o coração da Cáritas permanece inalterado. 

Maria José Atienza-24 de Fevereiro de 2022-Tempo de leitura: 8 acta
Caritas Natalia Peiro

Entrevista com o Secretário-Geral da Cáritas Española.

Cáritas Española é, segundo o seu nome oficial, a confederação oficial de organizações de caridade e acção social da Igreja Católica em Espanha, estabelecida pela Conferência Episcopal. Mas, para além da sua definição estrutural, Cáritas poderia ser chamada, como lhe chama o seu Secretário-Geral, "Cáritas Española", "A carícia de Deus". 

Hoje, e durante três quartos de século, a Cáritas tem sido o braço caritativo de centenas de milhares de pessoas que encontram acompanhamento, ajuda, uma saída ou formação para o emprego através das várias caritas diocesanas e paroquiais e dos vários projectos.

Há um ano atrás, a Comissão Permanente da Conferência Episcopal Espanhola renovou Manuel Bretón como presidente da Cáritas Española e Natalia Peiro como secretária-geral, tarefa que ela tinha desempenhado desde 2017, para um novo mandato de três anos. Esta equipa dos Serviços Gerais experimentou a crise socioeconómica resultante da pandemia, bem como a emergência de novas lacunas de exclusão social. Uma mudança na sociedade que torna ainda mais essencial o ministério da caridade encarnado pelos voluntários e trabalhadores da Cáritas. 

A Cáritas prepara-se para celebrar 75 anos de vida em Espanha. O que mudou e o que resta desde o seu nascimento?  

-Reserva a raiz. Os nossos pés são fundados no Evangelho, na comunidade cristã. A Cáritas é uma expressão dessa comunidade cristã e isso continua a ser o caso em todos os países do mundo. 

O que resta? O espírito que nos anima e a experiência de Deus que temos no nosso trabalho na Cáritas. Na Cáritas há um cuidado especial pela formação dos corações das pessoas que dela fazem parte. O nosso trabalho decompõe estas disjunções entre a acção e a contemplação, entre a justiça e a vida espiritual. 

Resta aquela razão de ser que nos diz que a nossa tarefa é uma expressão da nossa fé. E permanece, sempre, ao serviço de todos, sem excepção, sem perguntar de onde vem ou como é que eles são. 

A organização e as actividades mudaram muito, porque a realidade social mudou. Do leite americano que foi distribuído quando a Cáritas nasceu para os projectos de emprego e reciclagem... muitas coisas mudaram. A vida mudou. 

O que torna a Cáritas diferente de qualquer outra ONG, mesmo uma constituída por católicos? 

-A diferença chave é a nossa organização, que é indivisível da Igreja. Em cada diocese os nossos presidentes são os bispos, e a nossa organização local são as paróquias. Nós somos a Igreja. Somos o ministério de caridade da Igreja, um dos três ministérios ao lado da Liturgia e da Palavra. 

Esta identificação dá-nos, para além do significado, essa permeabilidade, a possibilidade de alcançar todos os lugares, todos os cantos. Ser Igreja dá-nos uma universalidade que outras ONG, nem sequer internacionais, não têm. Ao pertencer à Igreja universal, temos uma capilaridade diferente, uma visão do mundo como uma única família humana. 

Nestes 75 anos, a Cáritas assistiu à evolução da sociedade espanhola e evoluiu com ela. Quais são os pontos-chave do trabalho da Cáritas hoje?

-Penso que a Cáritas faz um enorme esforço para tentar apoiar e acompanhar as pessoas no seu caminho para uma vida plena e integrada. Pergunta-me quais são os pontos-chave do trabalho da Cáritas: os pontos-chave são as pessoas. 

Não somos uma organização que tenha um conjunto de prioridades, por exemplo no campo da saúde ou da educação, mas acompanhamos as pessoas pelo caminho. 

Se hoje tivesse de destacar alguns desafios diferentes, penso que, neste momento, trabalhamos com algumas situações de marginalização mais extrema: pessoas traficadas ou pessoas sem abrigo. Este trabalho tem desafios muito diferentes, se pensarmos na vida que podemos dar a estas pessoas. Outro grande desafio é a solidão e o isolamento. Isto é especialmente evidente nas pessoas idosas ou, por exemplo, nos migrantes. Estamos numa sociedade mais individualista e o acompanhamento está a mudar. 

Neste sentido, vemos com grande preocupação a transmissão intergeracional da pobreza e o perigo da ruptura do Estado-providência. Quando apresentámos o relatório FOESSA sobre as consequências da pandemia em Espanha, este falava da ruptura do contrato social com os jovens. Por outras palavras, se não transferirmos o melhor que pudermos para as gerações presentes e futuras, se não ajudarmos os mais fracos, estamos a caminhar para uma sociedade que nada tem a ver com o Estado de direito ou a coesão social. 

Temos de nos perguntar em que sociedade queremos viver: num estado em que aqueles que não têm papéis são obrigados a viver e até a morrer na rua, ou num lugar onde haja coesão social e solidariedade que nos permita viver em paz e justiça? O nosso acompanhamento conduziu a um trabalho de denúncia profética que enquadramos no Evangelho.

Estes dois anos da pandemia foram sem dúvida um desafio para toda a organização da Caritas Española. Como viveu estes momentos a partir do interior e no seu trabalho?

-Tem sido um choque A diferença entre a Cáritas e a Igreja é muito forte para a Igreja e, especialmente, para uma instituição como a Cáritas, onde a diferença reside no ser e ser. Estamos habituados a estar muito próximos das pessoas e, portanto, esta situação tem violado a nossa forma de trabalhar, a forma como os nossos voluntários estão, etc. Um impacto muito grande para toda a sociedade espanhola e especialmente forte nos grupos, paróquias ou comunidades de bairro... que estão enraizados nas relações humanas do dia-a-dia. 

A primeira transformação que tivemos de fazer foi centrada em como continuar a estar perto sem poder estar fisicamente perto. Energia permanecer aberto ter de fechar. 

A nossa campanha ao longo dos últimos anos tem salientado que "a caridade não fecha", e tem sido esse o caso. Toda a Cáritas, diocesana e paroquial, recebeu muitas pessoas encaminhadas pela administração pública, que não puderam cuidar delas.... 

Meio milhão de novas pessoas chegaram à Cáritas através das linhas directas da Cáritas, do website ou dos meios de comunicação social. 

Como muitas pessoas vieram pedir ajuda, também tivemos de nos transformar para termos a capacidade de receber iniciativas, propostas e muitas pessoas que queriam ajudar. 

Abordando tudo isso tsunami de apelos e solidariedade tiveram de ser muito fortemente organizados. Tivemos de dar muito trabalho, desde a Caritas paroquial até aos Serviços Gerais. Todos nós tivemos de estar no 150% para podermos atender a tudo o que nos foi pedido. 

Vimos rapidamente que o digital estava a deixar muita gente de fora. A administração, desmoronada e completamente digitalizada, estava a deixar muita gente de fora. O emaranhado de regulamentos que surgiu exigiu muita análise: o que os voluntários podiam e não podiam fazer, como solicitar o Rendimento Mínimo Vital, o que aconteceu aos trabalhadores domésticos, o que as cantinas sociais e as empresas de inserção podiam fazer, etc. 

Foi necessário efectuar uma análise muito rápida, dentro de uma organização que não se dedica apenas a uma coisa. Esta análise proporcionou uma oportunidade de diálogo com a administração, pedindo, por exemplo, que fossem declarados serviços essenciais, ou como transformar as nossas empresas de inserção de modo a não perder empregos. 

A médio prazo, tivemos de lidar com o acompanhamento das famílias, e os programas de formação, que já tinham de ser muito digitais. Analisámos quais os postos de trabalho mais necessários para os nossos programas de emprego e, já no Verão de 2020, foram programados muitos cursos para pessoas especializadas em limpeza e desinfecção, fabrico de máscaras, etc. 

Para além de tudo isto, foram também promovidas muitas iniciativas para ajudar os vizinhos, os que estão perto... a resolver, até certo ponto, a dificuldade de estar presente. Neste sentido, os jovens deram muito apoio: envolveram-se em redes sociais, fizeram vídeos, presença virtual... 

Ainda há voluntários e há um futuro para os voluntários da Cáritas?  

-Ainda há voluntários, graças a Deus. Temos um grande desafio neste campo, que é o desafio de toda a Igreja. Os voluntários da Cáritas vêm da comunidade cristã e das paróquias. O voluntariado na Cáritas tem a ver com a nossa aprendizagem da lógica do dom, da gratuidade, da doação a nós próprios aos outros. Não é o mesmo que outros trabalhos voluntários que conhecemos. 

O desafio, como o de toda a Igreja, é a transmissão da fé, a transmissão de valores. A Cáritas tem de contribuir com essa parte para a Igreja.

Vemos, por exemplo, como no meio rural, nas paróquias, há uma falta de jovens para fazer esta transição. Há aqui uma questão importante. A Cáritas é a carícia da Igreja. Tem um alcance e um alcance para as pessoas, e temos de aprender a integrar voluntários que não são estritamente "voluntários paroquiais", mas que descobrem a face de Cristo através das pessoas com quem trabalhamos e acompanhamos. 

Ser Igreja deu-nos tudo, e queremos ser uma contribuição para o futuro desta transmissão de fé.

Na Europa, por exemplo, há uma revolução da Cáritas da juventude. Tem sido difícil compreender que os jovens estão em universidades, em empresas ou em movimentos e temos de nos deixar surpreender por eles e integrá-los. Dêem as boas-vindas a estas pessoas que têm muito para dar. 

Obviamente, temos de ter muito cuidado porque ser voluntário na Cáritas não é o mesmo que ser voluntário em qualquer outra ONG. Com este desafio em mente, estamos a tentar mudar formas e meios, para que mais pessoas se possam tornar parte da Cáritas. 

Há alguns anos em que é muito difícil ser voluntário; a profissão e os cuidados familiares não deixam tempo, etc. Mas se foi voluntário quando era jovem na universidade, é mais fácil que, aos 50 anos de idade, quando os seus filhos são mais velhos, possa retomar esta tarefa. Essa semente tinha de ser plantada por alguém, e é aí que temos uma tarefa. 

O nosso plano estratégico tem um eixo chave na renovação do voluntariado e, dentro dele, um ponto muito bonito que é a relação intergeracional dos voluntários. 

O que vêem como as novas pobrezas? 

- penso que, em geral, há pouco de novo em termos das dificuldades que as pessoas têm e que as levam a ser excluídas. Os perfis são essencialmente jovens, mulheres com menores dependentes e imigrantes.

As novas formas de pobreza são as causadas por duas questões fundamentais. A primeira é a deterioração das condições do mercado de trabalho. As condições de trabalho das pessoas que começaram a trabalhar antes de 2008 e continuam a trabalhar não têm nada a ver com as condições de trabalho das pessoas que começaram a trabalhar depois da crise de 2008. Esta é uma realidade que vemos a toda a nossa volta. Para além desta realidade, há a segunda questão, que é a tendência oposta entre os salários e os preços da habitação. No final, o emprego e a habitação continuam a ser as chaves fundamentais para a inclusão social. Se uma pessoa ganha pouco e, ao pagar custos de habitação, permanece pobre, é muito difícil fazer qualquer outra coisa: educação, saúde, relações sociais, ou para reparar a deterioração da casa. Estes novos pobres são pessoas que trabalham, talvez apenas a tempo parcial ou com contratos temporários, mas a maioria deles prefere trabalhar à "paguita". 

Será que saímos desta crise "melhor" ou pior? 

-A verdade é que tenho dúvidas. O Papa disse-nos, no início desta crise, que não vamos sair dela da mesma maneira. É verdade que, na pressão da necessidade, todas as pessoas trazem o melhor de si, mas na saída de uma emergência há uma grande tendência para não olhar para trás a fim de sair. Este "não ver" reflecte-se, por exemplo, nos dados do relatório da FOESSA. Aqueles de nós que têm uma certa estabilidade na vida - um salário, um emprego - têm alguns problemas diários, mas há outras questões que estão lá e não as "vemos". Por exemplo, o que aconteceu às crianças que foram deixadas sozinhas porque os seus pais tiveram de sair para trabalhar e não havia lugar para teletrabalho, ou às famílias onde apenas uma pessoa trabalha e foi despedida, e às pessoas que não têm competências digitais e não podiam ir ao banco ou marcar uma consulta médica? Temos de perceber que o fosso existe, que estas realidades existem, mesmo que não as vejamos todos os dias ou que não queiramos "olhar para trás". 

E estas realidades não ocorrem porque estas pessoas não fazem um esforço. Quando perguntamos às pessoas o que estão a fazer para sair desta situação, oito em cada dez estão activos: trabalhando algumas horas, procurando activamente um emprego ou participando num programa de formação. Como sociedade, por vezes fechamos as portas porque não conhecemos a realidade. É necessário conhecê-lo para o compreender.

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