Cultura

Sergio Rodríguez: "Quando o encontrei, havia 347 anos que ninguém tinha visto aquele livro".

Herder publica Miguel de Molinos. Cartas para o exercício da oração mentalO livro foi encontrado ao fim de séculos pelo investigador Sergio Rodríguez López-Ros.

Loreto Rios-3 de Junho de 2023-Tempo de leitura: 8 acta

Miguel de Molinos ©CC

Sergio Rodríguez López-Ros é membro da Real Academia de História e vice-reitor de Relações Internacionais do CEU. Há alguns anos, encontrou na Biblioteca Apostólica do Vaticano um livro do teólogo espanhol Miguel de Molinos que estava desaparecido há séculos.

Esta semana, no dia 31 de Maio de 2023, o lançamento do livro Miguel de Molinos. Cartas para o exercício da oração mental (Editorial Herder) em Roma, na Embaixada de Espanha junto da Santa Sé. O evento contou com a presença do Prefeito da Biblioteca Apostólica Vaticana, Mauro Mantovani, e da arquivista oficial do Dicastério para a Doutrina da Fé, Manuela Borbolla.

Nesta entrevista à Omnes, Sergio Rodríguez López-Ros fala de Miguel de Molinos e da descoberta do livro. A história desta personagem não é isenta de controvérsia e, em certos aspectos, continua a ser um mistério.

Quem foi Miguel de Molinos?

Miguel de Molinos é uma das figuras históricas espanholas mais desconhecidas. Foi um teólogo do barroco espanhol.

Nasceu numa família de classe média em Muniesa, uma pequena localidade de Teruel. Aos 18 anos, foi estudar para Valência, onde tinha uma irmã que era freira. Foi educado no Colégio Jesuíta de San Pablo, que dependia da Universidade de Coimbra, também dirigida pelos jesuítas. Ao mesmo tempo, tinha várias capelanias: a das Irmãs Agostinianas, a dos Franciscanos...

Formou-se com o Padre Francisco Jerónimo Simón, sacerdote valenciano. Doutorou-se em Teologia e tornou-se capelão de vários conventos, bem como confessor no Colégio Corpus Christi. Quando o seu mestre espiritual, o Padre Jerónimo Simón, morreu, Miguel de Molinos entrou no processo da causa de beatificação. O Conselho Provincial de Valência enviou-o a Roma para levar por diante o processo.

Assim, chegou a Roma em 1663, no auge do Barroco e em plena luta entre a França e a Espanha para ver quem tinha mais influência junto dos Papas. No início, viveu em algumas ruas que consegui localizar.

Quando chegou a Roma, pôs em marcha o que tinha conhecido do Padre Jerónimo Simón, que era a Escola de Cristo. Consistia em pequenos exercícios espirituais em que reunia uma vez por semana uma série de pessoas que iam rodando: às segundas-feiras uns, às terças outros, às quartas outros... Reuniam-se numa cripta, que também consegui localizar, e que fica por baixo da igreja de Santo Tomás de Villanueva e de Santo Ildefonso.

Consegui entrar nesta sala depois de muitos séculos sem que ninguém a visse. A maior parte dos agostinianos espanhóis, até hoje, são de origem basca ou navarra. Gostavam de jogar frontão e pelota basca e utilizaram a cripta para esse efeito durante os séculos seguintes, quando o nome de Molinos se perdeu.

No passado, no tempo de Molinos, a alta sociedade da época frequentava o local: príncipes romanos, condes, pessoas ligadas à corte papal, cardeais...

Molinos estava bem posicionado e, de facto, o Papa, o Beato Inocêncio XI, pensou em nomeá-lo cardeal e tinha uma grande afeição por ele.

O que acontece é que quando alguém faz as coisas bem, tende a ter inimigos, invejas, não só em Espanha. Os jesuítas, que estavam a desenvolver a sua própria escola com os exercícios de Santo Agostinho, começam a suspeitar dele, e também os dominicanos.

São eles que provocam um primeiro julgamento pela Inquisição. Mas os seis teólogos nomeados pelo Papa deram um parecer positivo, e assim ele pôde perfeitamente salvar este primeiro ataque. Recordemos que ele acabava de publicar a Orientação espiritualque é o livro central de Miguel de Molinos. Ele tinha duas correntes: por um lado, havia a Orientação espirituala Cartes para o exercício da oração mental e a Defender a contemplaçãoPor outro lado, tem a Prática para o eexercício da boa morte e a Defender a comunhão quotidiana.

As cartas não eram um livro. Ele correspondia-se com muitas pessoas, escreveu cerca de 12.000 cartas, o que é muito. Um discípulo seu dedicou-se a compilá-las. Daí surgiu o Cartas para o exercício da oração mental. Não são mais do que uma versão simplificada, feita por um dos seus discípulos, da Orientação espiritual.

O processo inquisitorial decorreu em 1681-1682 e, quando terminou, o veredicto foi favorável a Molinos. Nessa altura, escreve o Defender a contemplaçãoA razão para isso foi o facto de algumas correntes quererem atacar este método contemplativo.

Molinos, baseando-se em Santo Agostinho, diz que temos de procurar Deus dentro de nós, porque o demónio coloca-nos muitas tentações. Diz que temos de nos esvaziar de nós próprios. Naquela Roma do esplendor do barroco, com as suas grandiosas encenações, isso irritava-os muito e provocava inveja. Quando a Escola de Cristo começou a espalhar-se fora de Roma, por toda a Itália, e chegou a Nápoles, então espanhola, a França receou que ganhasse mais força e obscurecesse o papel que os seus místicos desempenhavam até então. Por isso, provoca um novo processo inquisitorial, suspeito que com métodos corruptos.

O processo teve lugar em 1685. Hoje em dia é muito difícil seguir o rasto de tudo o que aconteceu, porque quando a Revolução Francesa chegou a Roma, desapareceram muitos papéis dos processos inquisitoriais e só restam 46 ficheiros dos processos de Molinos. Na minha opinião, o que a França fez foi caluniar, atribuir a Molinos coisas que ele nunca tinha dito. De facto, nenhuma das teses pelas quais ele é processado está nos seus escritos. Tudo é produto de confissões forçadas ou falsamente atribuídas a ele por testemunhas compradas. No final, o Papa não teve outra alternativa senão prender o seu amigo e, em 1687, decretou a sua condenação perpétua.

Esteve preso nas prisões da Inquisição, na sede, actualmente o Dicastério para a Doutrina da Fé. Durante a sua prisão, Molinos vestiu-se com um pano de saco muito austero e levou uma vida de recolhimento. Defendia-se com grande serenidade e reiterava sempre o seu amor à Igreja. Refutou também qualquer crítica de que a oração teria suplantado os sacramentos, que era uma das teses que lhe eram atribuídas. O mal é que a França, nessa época, tinha mais poder do que a Espanha: em 1687, os Habsburgos desapareciam em Espanha, enquanto os Bourbons, com Luís XIV à cabeça, estavam no auge do seu poder.

Este processo coincidiu com um período de declínio em Espanha, enquanto a França era mais próspera. Em 1704, morreu o último Habsburgo e teve início uma guerra entre a França e a Espanha pela sucessão dos Habsburgos, que acabaram por se tornar os Bourbons. Tudo isto foi impulsionado por Luís XIV, que mais tarde conseguiu colocar o seu sobrinho Filipe V no trono espanhol. Miguel de Molinos era tão importante em Roma que capturá-lo e matá-lo era o golpe final para o império espanhol; era atingir a Espanha onde ela mais sofria.

Molinos esteve preso durante oito anos até ser executado em 1696. A razão pela qual foi executado permanece desconhecida para todos nós, porque não se sabe todo o procedimento. Creio que deve ter sido o resultado de intrigas francesas no seio da Inquisição. Também não sabemos se foi um ajuste de contas dentro da própria prisão. Em 1696 morreu e, com a investigação, descobri também onde estavam os seus restos mortais: no ossário que se encontra por baixo do arquivo do próprio Dicastério.

Como é que as cartas foram encontradas?

Eu sabia que havia um livro de Miguel de Molinos que estava desaparecido há séculos, que era las Cartas escritas a um senhor espanhol desanimado para o ajudar a ter oração mental, dando-lhe uma forma de a exercitar.. O título era muito barroco. O editor resumiu-o da seguinte forma Cartas para o exercício da oração mental. Trata-se de um livro escrito por Miguel de Molinos durante o seu período romano. Encontrei o livro na Biblioteca Apostólica Vaticana.

Em 1966, todos os livros que tinham sido considerados impróprios para serem lidos pelos católicos foram postos à disposição dos investigadores. Entre eles estavam as cartas espirituais de Miguel de Molinos, que não tinham sido condenadas por causa da doutrina, como já disse, mas por causa de uma disputa política entre França e Espanha, porque Molinos tinha muito poder em Roma.

Quando o encontrei na biblioteca, havia 347 anos que ninguém tinha visto aquele livro. Pensei imediatamente em editá-lo e traduzi-lo. Porque só existem dois exemplares da edição espanhola, um na Biblioteca Nacional de Espanha, em Madrid, e outro que é a edição posterior, feita em Itália e conservada na Biblioteca Apostólica Vaticana. O livro era novo, via-se o antigo por baixo e era evidentemente das colecções da Inquisição. Eu digo sempre que é preciso compreender que o objectivo da Inquisição era orientar as pessoas para a boa leitura.

As pessoas de hoje são muito diferentes das pessoas de antigamente, ninguém tinha formação teológica, primeiro porque não sabiam ler e, além disso, só a partir do Concílio Vaticano II é que as pessoas começaram a ser formadas na fé. O papel da Inquisição foi sempre o de proteger estas pessoas humildes, pessoas que não tinham qualquer juízo sobre as leituras que as podiam prejudicar espiritualmente. Era uma espécie de ajuda, um guia, e não é o que se vê nos filmes sobre desprezo, tortura, queimaduras...

Quando encontrei as cartas, o que fiz foi encomendar uma tradução da segunda edição, corrigida e aumentada a partir da primeira edição espanhola. São compostas por duas partes: uma parte em que ele fala do aparato teológico em que se baseia, citando Santa Teresa, São João da Cruz, Santo Inácio, os Padres da Igreja, São João Crisóstomo, etc. Depois, há uma segunda parte em que ele explica como pôr tudo isto em prática.

É muito curioso porque, numa ocasião, ele envia o livro a um funcionário público espanhol e diz: "Se tivesses um dia por dia, terias um ratico para praticar a oração, isso far-lhe-ia muito bem". Depois de tantos anos a viver em Itália, continua a ter aquele toque aragonês.

O livro é publicado graças ao grande trabalho da Biblioteca Apostólica Vaticana. Já desde o tempo do Cardeal Javierre, que foi um grande cardeal, os arquivos foram abertos.

A pesquisa não consistiu apenas na publicação do livro, mas também no facto de ter encontrado os locais onde viveu, onde fez a Escola de Cristo, onde viveu quando foi preso, onde foi julgado, onde foi depois preso e, finalmente, onde foi executado e onde estão os seus restos mortais.

Qual era o pensamento de Miguel de Molinos?

O que Molinos defende é a mística de Santa Teresa: a vida ascética, simples e directa. Propõe uma vida austera, aquela austeridade espanhola de poucas palavras, mais de actos. Depois, procura a purgação, tirar da nossa vida tudo o que é excesso, tudo o que nos prejudica (ambições, poder), para nos concentrarmos no que Deus quer de nós. Fala também dessa última parte que é a contemplação, quando se percorre o caminho da Cruz, da Paixão, e se procura unir-se a Jesus nesse sofrimento, configurar-se com Ele, e, através disso, transfigurar a própria vida e tornar-se uma pessoa melhor. Este é basicamente o método de Molinos, que poderia ser exemplificado por muitas citações.

Trata-se de perseverar na oraçãoO objectivo final é configurar-se com Jesus, sentindo que a Paixão salvadora e redentora de Jesus na Cruz é para toda a humanidade, mas começa por nós próprios. Ele diz que temos de matar a todo o custo "essa hidra de sete cabeças que é o nosso egoísmo". Ele diz que temos este egoísmo que o demónio, a vontade de poder, coloca nos nossos corações. Hoje seria, por exemplo, querer mais dinheiro, viajar, ter um carro melhor, ou ter sucesso mundano a todo o custo. Molinos propõe-nos o contrário: Ele foi simples ao nascer, simples ao morrer, por isso partilhemos a vida com Ele.

Pode parecer que este esvaziamento do desejo está relacionado com a espiritualidade oriental, mas o que Molinos defende é o desligar do ego para dar lugar a Deus. A maior parte das pessoas, desde o momento em que se levanta até ao momento em que se deita, está a pensar num emprego melhor, numa televisão melhor, nas férias deste Verão, e ignora o essencial. O que Molinos defende não é esta aniquilação oriental do desejo, no sentido de que tudo o que acontece ao mundo é igual para mim. O que ele encoraja é o compromisso: deixemos de lado o que queremos e vejamos o que Deus quer de nós.

Quando o ego ocupa toda a nossa alma, todo o nosso coração, não deixamos espaço para Deus. A salvação budista é basicamente a salvação de si próprio, é mais egoísta. No mundo cristão, pelo contrário, é a salvação de si próprio através dos outros e para os outros. É o método de São Francisco de Sales, de Introdução à vida devocional. Ou quando Santo Inácio propõe a síntese entre a consciência e o mundo, não é para si mesmo, mas para os outros.

Penso que a leitura de Molinos hoje é uma boa maneira de voltar à vida simples, ao essencial, de esquecer um mundo onde tudo está ao nosso alcance, à distância de um clique. Mas falta-nos o essencial, esquecemo-nos da fé, da caridade, da esperança, da dedicação, do amor gratuito para com Deus, em primeiro lugar, e para com os outros.

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