Cultura

Cormac McCarthy (1933-2023). Ler A estrada num mundo pós-pandémico

A leitura de A estrada, do escritor americano Cormac McCarthy, recentemente falecido, é um convite a uma reflexão radical sobre as nossas vidas. O diálogo entre pai e filho - ao mesmo tempo terno e duro - que percorre toda a narrativa acompanha o leitor depois de terminada a leitura e convida-o a voltar a lê-la.

Marta Pereda e Jaime Nubiola-29 de novembro de 2023-Tempo de leitura: 4 acta
McCarthy

Cormac McCarthy, um dos autores americanos mais influentes das últimas décadas, morreu no dia 13 de junho, aos 89 anos, na sua casa em Santa Fé, no Novo México. Nos últimos sessenta anos, escreveu doze romances, cinco guiões de cinema, duas peças de teatro e três contos: uma produção relativamente modesta, mas que teve um enorme impacto. Por experiência própria, podemos dizer que ler A estrada (A estrada, 2006) - como se costuma dizer dos grandes livros - "muda a vida", apesar da sua relativa brevidade (210 páginas). Ganhou o prestigiado Prémio Pulitzer em 2007, foi traduzido para espanhol no mesmo ano (Mondadori, Barcelona, 2007) e tem sido reeditado desde então.

A estrada descreve a viagem de um pai e de um filho num mundo em cinzas, onde não há comida, há poucos sobreviventes e o ar e a água estão poluídos. Neste cenário apocalítico, fogem para sul por uma estrada, arrastando um carrinho de compras com os seus parcos pertences. São movidos pela esperança do pai de encontrar um grupo de pessoas com quem possam ficar e viver.

McCarthy conta apenas o suficiente para atrair o leitor para a cena, mas ao mesmo tempo descreve apenas o essencial. Não se sabe praticamente nada sobre a história dos protagonistas. Nenhuma das personagens tem nome. Também não é explicado onde estão ou como chegaram a esta situação. E isso não tem importância nenhuma. No entanto, neste contexto ficcional, as reflexões sobre a vida, a morte, a ética, a bondade, a beleza e a maldade são totalmente realistas. Há muitos ângulos de interpretação e interpelação. Por exemplo, a criança pode ser vista como a teoria da ética: ela é sempre o referente do certo e do errado. No entanto, o pai é a aplicação prática desta teoria e explica ao filho porque é que, neste caso particular, a ética não se aplica a cem por cento.

"Olhou para o rapaz, mas este tinha-se virado e estava a olhar para o rio.

- Não podíamos ter feito nada.

O rapaz não respondeu.

-Ele vai morrer. Não podemos partilhar o que temos porque também morreríamos.

-Eu sei.

-E quando é que tencionas voltar a falar comigo?

-Eu estou a falar agora.

-Tens a certeza?

-Sim.

-Está bem.

-Ok". (páginas 43-44).

A perspetiva do medo é também marcante. A dos protagonistas de A estrada tem uma explicação, pois os outros sobreviventes procuram-nos para os matar e talvez para os comer. Todos nós podemos partilhar o medo, especialmente depois da pandemia, pois vimos como nos comportámos quando os outros humanos eram oficialmente um perigo para nós, quando o ar estava legalmente poluído e quando ir buscar comida podia ser um risco mortal.

A história causa impacto, as personagens causam impacto, as metáforas causam impacto; McCarthy utiliza um vocabulário preciso e extenso. É uma coleção de imagens, cada parágrafo poderia ser uma micro-história em si mesmo.

Porquê ler este livro? Só a forma como está escrito já o faz valer a pena. Mas é também um choque para o leitor. Por um lado, porque o cenário parece possível. Por outro, porque as reflexões são totalmente aplicáveis à vida de qualquer pessoa. E também porque parece que, por vezes, vivemos numa situação de escassez: não ajudamos para não perder, tememos os outros seres humanos, sentimo-nos sozinhos no mundo, vivemos com medo, não conseguimos desfrutar do que temos, sentimo-nos os bons da fita, mas fazemos o que qualquer pessoa que não seja totalmente corrupta faria.

McCarthy dedica o livro ao seu filho John Francis e todo o livro está imbuído de uma imensa ternura do pai para com o filho, no meio de um mundo terrivelmente hostil: "...o livro é um livro sobre o seu filho, John Francis...".Começava a pensar que a morte estava finalmente a chegar e que tinha de encontrar um lugar para se esconder onde não pudessem ser encontrados. Enquanto observava o rapaz a dormir, houve alturas em que começou a soluçar incontrolavelmente, mas não com a ideia da morte. Não sabia bem qual era a razão, mas achava que tinha algo a ver com a beleza ou a bondade". (página 99).

E quem, como Viktor Frankl, poderia explicar a felicidade num campo de concentração? No entanto, se há esperança em A estrada ou no campo de concentração, porque é que, por vezes, nós, que não estamos num mundo em cinzas ou num campo de concentração, não somos capazes de o ver? A esperança não nos leva a negar a dura realidade, mas dá-nos a força para continuar a viver, para continuar a caminhar em direção ao sul: o pai morrerá, mas o filho verá provavelmente um mundo melhor.

McCarthy declarou em 1992 a Revista do The New York Times: "Não há vida sem derramamento de sangue. Penso que a noção de que a espécie pode de alguma forma ser melhorada, para que todos possam viver em harmonia, é uma ideia realmente perigosa.". E em 2009 a O Jornal de Wall Street: "Nos últimos anos, não tenho tido vontade de fazer mais nada para além de trabalhar e estar com o [meu filho] John. Ouço as pessoas falarem em ir de férias ou coisas do género e penso: "O que é que isso quer dizer? Não me apetece fazer uma viagem. O meu dia perfeito é estar sentada numa sala com uma folha de papel em branco. Isso é o paraíso. Isso é ouro e tudo o resto é uma perda de tempo.".

A estrada é um livro que dá muito que pensar. No final, o leitor encontrará as suas próprias perguntas no livro e vale certamente a pena identificá-las, mesmo que não haja resposta para elas.

O autorMarta Pereda e Jaime Nubiola

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