Vaticano

A caminho do veredito do "julgamento do século" no Vaticano. O que precisa de saber

O veredito de culpa ou inocência dos dez arguidos e das quatro empresas relacionadas com o chamado caso Becciu será anunciado a 16 de dezembro, embora o veredito completo, com os motivos e as alegações, seja conhecido mais tarde.

Andrea Gagliarducci-14 de dezembro de 2023-Tempo de leitura: 5 acta

Lucia Bozzi, Venerando Marano, Giuseppe Pignatone e Carlo Bonzano, juízes do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano, ouvem o processo a 16 de março de 2023 ©Vatican Media

Foi apelidado de "o julgamento do século". Na realidade, porém, o processo do Vaticano sobre a gestão dos fundos da Secretaria de Estado assemelha-se mais a um processo de direito comercial, sendo as acusações mais comuns a corrupção, a fraude e o desvio de fundos.

Mesmo assim, o processo ganhou repercussão internacional porque, pela primeira vez, um cardeal, Angelo Becciu, foi acusado num tribunal do Vaticano. Até ao Motu proprio do Papa Francisco de 30 de abril de 2021De facto, os cardeais só podiam ser julgados pela Cassação do Vaticano, que é um colégio de três cardeais. 

O veredito, ou seja, a declaração de "culpado" ou "inocente" dos dez arguidos e das quatro empresas em prisão preventiva, será anunciado a 16 de dezembro. Em contrapartida, o veredito completo, fundamentado, deverá ser publicado alguns meses mais tarde.

No entanto, o dispositivo terá de ser interpretado, uma vez que as acusações são múltiplas, por vezes intersectadas e envolvendo vários arguidos, e estão sujeitas a alterações.

Também é possível que o tribunal decida que certas infracções não são exatamente as que constam da acusação prevista pelo Ministério Público, decidindo penas mais leves ou simplesmente declarando que os actos cometidos não constituem um crime. Para o fazer, é necessário começar por compreender em que consiste o julgamento. 

Um ensaio, três ensaios

Os investigadores seguiram três pistas muito diferentes, todas relacionadas com a questão da "gestão dos fundos da Secretaria de Estado". 

A primeira pista é a mais importante: o investimento da Secretaria de Estado nas acções de uma mansão de luxo em Londres, por cerca de 200 milhões de euros. O investimento foi entregue primeiro ao agente Raffaele Mincione e depois ao agente Gianluigi Torzi. Torzi, por sua vez, ficou com as acções do investimento e manteve apenas as 1.000 acções com direito de voto, mantendo assim o controlo total da propriedade.

Por conseguinte, o Secretaria de Estado decidiu comprar as acções e assumir o controlo do edifício. A negociação que levou a Secretaria de Estado a pagar a Torzi uma indemnização pela perda das acções foi considerada "extorsão" pelos investigadores do Vaticano. A Santa Sé vendeu então o palácio sem realizar as operações de desenvolvimento previstas (o investimento não era tanto no palácio em si, mas num projeto para o ampliar e reafectar a sua utilização para fins de arrendamento) por um preço inferior ao valor de mercado. De acordo com a Promotoria de Justiça do Vaticano, o prejuízo para a Santa Sé situar-se-ia entre 139 e 189 milhões de euros. 

125 000 euros à Caritas de Ozieri, na Sardenha, a diocese natal do Cardeal Angelo Becciu. O dinheiro foi entregue pela Caritas à SPES, uma cooperativa ligada à Caritas que desenvolve actividades sociais, e destinava-se a cobrir os custos de uma padaria criada para criar empregos para os marginalizados e a construção de uma "cidadela de caridade". O crime seria o de peculato, porque, segundo a acusação, Becciu utilizou o dinheiro da Secretaria de Estado para fins pessoais e para enriquecer a sua família.

A terceira pista diz respeito à contratação pela Secretaria de Estado de Cecilia Marogna, uma autodenominada especialista em inteligência que alegou colaborar na libertação de alguns reféns, incluindo o da Irmã Cecilia Narvaez, a freira colombiana sequestrada no Mali em 2017. A mulher, segundo a procuradoria, teria gasto para si dinheiro que havia sido destinado pela Secretaria de Estado para completar as operações de libertação.

O que os arguidos arriscam

O promotor de justiça do Vaticano pediu penas totais de 73 anos e um mês de prisão, bem como várias inibições de direitos e multas. De acordo com o promotor de justiça Alessandro Diddi, o fio condutor destas três linhas de investigação é sempre e apenas o Cardeal Angelo Becciu. Pouco importa que Becciu tenha estado envolvido no negócio do palácio de Londres apenas no início, porque foi sob a sua gestão que começou a venda e a compra das acções do edifício.

Precisamente porque o cardeal nunca deu sinais de arrependimento, foi-lhe pedida a pena máxima possível: 7 anos e 3 meses de prisão, inibição de funções públicas, uma multa de 10.329 euros e um pedido de confisco de 14 milhões.

Para René Bruelhart, antigo presidente da Autoridade de Informação Financeira, foi pedida uma pena de prisão de 3 anos e 8 meses, a inibição temporária do exercício de funções públicas e uma coima de 10 329 euros.

Para Tommaso Di Ruzza, diretor da Autoridade de Informação Financeira, foi pedida uma pena de prisão de 4 anos e 3 meses, uma inibição temporária do exercício de funções públicas e uma coima de 9600 euros.

Para o Monsenhor Mauro Carlino, que era o secretário do deputado na altura da operação, são pedidos 5 anos e 4 meses de prisão, inibição vitalícia de funções públicas e uma multa de 8.000 euros.

Enrico Craso, que foi diretor financeiro da Secretaria de Estado através do Credit Suisse, deverá cumprir 9 anos e 9 meses de prisão, uma multa de 18.000 euros e a inibição vitalícia de exercer funções públicas, segundo a acusação.

Cecilia Marogna incorre numa pena de 4 anos e 8 meses de prisão, inibição vitalícia de exercer funções públicas e uma coima de 10 329 euros.

Raffaele Mincione incorre numa pena de 11 anos e 5 meses de prisão, inibição vitalícia de funções públicas e uma multa de 15450 euros, enquanto Gianluigi Torzi incorre numa pena de 7 anos e 6 meses de prisão, inibição vitalícia de funções públicas e uma multa de 9000 euros. 

Para o advogado Nicola Squillace, que alegou ter agido em nome do Secretário de Estado, 6 anos de prisão, suspensão do exercício da sua profissão e uma coima de 12500 euros. 

A pena mais elevada pedida foi para o funcionário da Secretaria de Estado Fabrizio Tirabassi: 13 anos e 3 meses de prisão, inibição vitalícia de funções públicas e uma coima de 18750 euros. 

Além disso, a Secretaria de Estado do Vaticano, a Administração do Património da Sé Apostólica e a Instituto para Obras de Religião juntaram-se ao processo como demandantes civis: o primeiro pediu uma indemnização pelos danos de imagem causados pelas operações entre 97 e 177 milhões de euros, enquanto o IOR pediu a restituição de 206 milhões de euros e quase um milhão de euros por danos morais e de reputação ao Instituto.

Defesas

As defesas apontaram o que consideram ser contradições na reconstrução do promotor de Justiça e pediram a absolvição dos seus arguidos, por duas razões principais: porque o ato não existe e porque o ato não constitui um crime.

Segundo os arguidos, não houve crime de investimento, nem foi apresentada qualquer prova de que as perdas na compra do edifício constituíssem um crime. A defesa sublinhou também que não havia provas de que o Cardeal Angelo Becciu e a sua família tivessem recebido fundos ilegalmente, pelo que não podia ser acusado de peculato. Por último, a defesa acusou o promotor de justiça do Vaticano de inventar um teorema, independentemente do resultado da audiência.

A sentença permitirá compreender a resiliência do sistema judicial do Vaticano. Se for demonstrado que as investigações foram caracterizadas pela parcialidade, como alegam as defesas, isso poderá minar o próprio sistema judicial do Vaticano. Já um juiz londrino, Baumgartner, num processo relacionado com este processo, chamou às conclusões das investigações uma descaraterização, uma acusação que o promotor de Justiça devolve ao remetente. 

A presença de nada menos do que quatro rescritos papais que alteraram apressadamente as regras da investigação é também uma questão importante. Os rescritos dizem respeito apenas a este processo. Mas será que um processo justo se pode caraterizar por decisões extemporâneas?

O autorAndrea Gagliarducci

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