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Texto em inglês da Declaração "Dignitas infinita" sobre a Dignidade Humana

Texto da Declaração Dignidade infinita sobre a dignidade humana apresentado na segunda-feira, 8 de abril, na Sala Stampa.

Maria José Atienza-8 de abril de 2024-Tempo de leitura: 42 acta

Segue-se uma tradução do texto da Declaração para espanhol. Dignidade infinita sobre a dignidade humana apresentado esta manhã na Sala de Imprensa da Santa Sé.

Apresentação 

No Congresso de 15 de março de 2019, a então Congregação para a Doutrina da Fé decidiu iniciar "a redação de um texto que sublinhe a indispensabilidade do conceito de dignidade da pessoa humana no âmbito da antropologia cristã e ilustre o alcance e as implicações benéficas a nível social, político e económico, tendo em conta os últimos desenvolvimentos do tema no campo académico e as suas compreensões ambivalentes no contexto atual". Um primeiro projeto a este respeito, elaborado com a ajuda de alguns peritos durante o ano de 2019, foi considerado insatisfatório, numa Consulta restrita da Congregação, a 8 de outubro do mesmo ano. 

A Secção Doutrinária elaborou ex novo outro projeto de texto, com base nos contributos de vários peritos. Este projeto foi apresentado e discutido numa consulta restrita a 4 de outubro de 2021. Em janeiro de 2022, o novo projeto foi apresentado à Sessão Plenária da Congregação, durante a qual os membros encurtaram e simplificaram o texto. 

Em 6 de fevereiro de 2023, o novo texto corrigido foi avaliado numa Consulta restrita que propôs algumas modificações adicionais. A nova versão foi apresentada às Sessões Ordinárias do Dicastério (Feira IV) em 3 de maio de 2023. Os membros concordaram que o documento, com algumas modificações, poderia ser publicado. O Santo Padre aprovou a Deliberata desta Feira IV no decurso da Audiência que me foi concedida a 13 de novembro de 2023. Nessa ocasião, pediu-me também que destacasse no texto alguns temas intimamente relacionados com o tema da dignidade, como o drama da pobreza, a situação dos migrantes, a violência contra as mulheres, o tráfico de seres humanos, a guerra e outros. Para honrar o mais possível esta indicação do Santo Padre, a Secção Doutrinal do Dicastério dedicou um Congresso para aprofundar a carta encíclica Fratelli tutti, que oferece uma análise original e um aprofundamento do tema da dignidade humana "para além de todas as circunstâncias". 

Por carta de 2 de fevereiro de 2024, em vista da Feira IV de 28 de fevereiro seguinte, foi enviado aos membros do Dicastério um novo projeto de texto, consideravelmente modificado, com o seguinte esclarecimento: "Esta reformulação tornou-se necessária para responder a um pedido específico do Santo Padre. O Santo Padre tinha pedido explicitamente que se prestasse maior atenção às graves violações da dignidade humana que se verificam atualmente no nosso tempo, na sequência da encíclica Fratelli tutti. Por isso, a Secção Doutrinal tomou medidas para reduzir a parte inicial [...] e desenvolver mais pormenorizadamente o que o Santo Padre tinha indicado". A Sessão Ordinária do Dicastério aprovou finalmente o texto da presente Declaração a 28 de fevereiro de 2024. Durante a Audiência que me foi concedida, juntamente com o Secretário da Secção Doutrinal, D. Armando Matteo, a 25 de março de 2024, o Santo Padre aprovou a presente Declaração e ordenou a sua publicação. 

O texto, que levou cinco anos a produzir, permite-nos compreender que estamos perante um documento que, pela seriedade e centralidade da questão da dignidade no pensamento cristão, exigiu um considerável processo de maturação para chegar à redação final que hoje publicamos. 

Nas três primeiras partes, a Declaração recorda os princípios fundamentais e os pressupostos teóricos, a fim de fornecer esclarecimentos importantes que possam evitar a confusão frequente na utilização do termo "dignidade". Na quarta parte, apresenta algumas situações problemáticas actuais em que a imensa e inalienável dignidade de cada ser humano não é adequadamente reconhecida. Denunciar estas graves e contínuas violações da dignidade humana é um gesto necessário, porque a Igreja está profundamente convencida de que a fé não pode ser separada da defesa da dignidade humana, a evangelização da promoção de uma vida digna e a espiritualidade do compromisso com a dignidade de todos os seres humanos. 

Esta dignidade de todos os seres humanos pode, de facto, ser entendida como "infinita" (dignitas infinita), como afirmou São João Paulo II num encontro com pessoas que sofrem de certas limitações ou deficiências, para mostrar como a dignidade de todos os seres humanos ultrapassa todas as aparências externas ou características da vida concreta das pessoas.

O Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti, quis sublinhar com particular insistência que esta dignidade existe "para além de todas as circunstâncias", convidando todos a defendê-la em todos os contextos culturais, em todos os momentos da existência de uma pessoa, independentemente de qualquer deficiência física, psicológica, social ou mesmo moral. Neste sentido, a Declaração procura mostrar que estamos perante uma verdade universal, que todos somos chamados a reconhecer, como condição fundamental para que as nossas sociedades sejam verdadeiramente justas, pacíficas, saudáveis e, em suma, autenticamente humanas. 

A lista dos temas escolhidos pela Declaração não é certamente exaustiva. No entanto, os temas abordados são precisamente aqueles que nos permitem exprimir vários aspectos da dignidade humana que podem estar obscurecidos na consciência de muitas pessoas atualmente. Alguns serão facilmente partilhados por diferentes sectores das nossas sociedades, outros menos. No entanto, todos eles nos parecem necessários porque, no seu conjunto, ajudam a reconhecer a harmonia e a riqueza da reflexão sobre a dignidade que brota do Evangelho.

Esta Declaração não pretende esgotar um tema tão rico e decisivo, mas pretende fornecer alguns elementos de reflexão que nos ajudem a tê-lo presente no complexo momento histórico que estamos a viver para que, no meio de tantas preocupações e ansiedades, não nos percamos e nos exponhamos a sofrimentos mais lacerantes e profundos. 

Víctor Manuel Card. Fernández 

Prefeito

Introdução 

1) (Dignitas infinita) Toda a pessoa humana, independentemente das circunstâncias e do estado ou situação em que se encontre, é titular de uma dignidade infinita, que assenta inalienavelmente no seu próprio ser. Este princípio, plenamente reconhecível até pela simples razão, está na base do primado da pessoa humana e da proteção dos seus direitos. A Igreja, à luz da Revelação, reafirma e confirma em absoluto esta dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida em Cristo Jesus. É desta verdade que ela tira as razões do seu empenhamento a favor dos mais fracos e dos menos capazes, insistindo sempre "no primado da pessoa humana e na defesa da sua dignidade para além de todas as circunstâncias". 

2. Esta dignidade ontológica e o valor único e eminente de cada mulher e de cada homem que existe neste mundo foram consagrados com autoridade na Declaração Universal dos Direitos do Homem (10 de dezembro de 1948) pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Ao comemorar o 75º aniversário deste Documento, a Igreja vê a oportunidade de proclamar mais uma vez a sua convicção de que, criado por Deus e redimido por Cristo, todo o ser humano deve ser reconhecido e tratado com respeito e amor, precisamente por causa da sua dignidade inalienável. Este aniversário oferece também à Igreja a oportunidade de esclarecer alguns mal-entendidos que muitas vezes surgem em torno da dignidade humana e de abordar algumas questões concretas, sérias e urgentes relacionadas com ela.

3. Desde o início da sua missão, a Igreja, impulsionada pelo Evangelho, esforçou-se por afirmar a liberdade e promover os direitos de todos os seres humanos. Nestes últimos tempos, graças à voz dos Papas, ela procurou formular mais explicitamente este compromisso através do renovado apelo ao reconhecimento da dignidade fundamental devida à pessoa humana. São Paulo VI afirmou que "nenhuma antropologia é igual à antropologia eclesial da pessoa humana, mesmo considerada individualmente, em termos da sua originalidade, dignidade, intangibilidade e riqueza dos seus direitos fundamentais, sacralidade, educabilidade, aspiração ao pleno desenvolvimento e imortalidade". 

4. São João Paulo II, em 1979, afirmava durante a III Conferência Episcopal Latino-Americana, em Puebla: "A dignidade humana é um valor evangélico que não pode ser desrespeitado sem grande ofensa ao Criador. Esta dignidade é violada, a nível individual, quando valores como a liberdade, o direito de professar a sua religião, a integridade física e psíquica, o direito aos bens essenciais, à vida, não são devidamente tidos em conta. É violado, a nível social e político, quando as pessoas não podem exercer o seu direito de participação ou são sujeitas a coacções injustas e ilegítimas, ou sujeitas a torturas físicas ou psicológicas, etc. [...] Se a Igreja está presente na defesa ou na promoção da dignidade humana, fá-lo em conformidade com a sua missão, que, embora de carácter religioso e não social ou político, não pode deixar de considerar o homem na integridade do seu ser".

5. Em 2010, diante da Pontifícia Academia para a Vida, Bento XVI afirmou que a dignidade da pessoa é "um princípio fundamental que a fé em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado sempre defendeu, especialmente quando não é respeitada em relação aos sujeitos mais simples e indefesos". Noutra ocasião, dirigindo-se aos economistas, disse que "a economia e as finanças não existem apenas para si mesmas; são apenas um instrumento, um meio. O seu objetivo é unicamente a pessoa humana e a sua plena realização em dignidade. Este é o único capital a salvar. 

6. Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco convidou a Igreja a "confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano" e a "descobrir que 'ao fazê-lo, confere-lhe uma dignidade infinita'", sublinhando com força que esta imensa dignidade representa um dado original a ser reconhecido com lealdade e acolhido com gratidão. É precisamente neste reconhecimento e aceitação que se pode fundar uma nova convivência entre os seres humanos, que declina a sociabilidade num horizonte de autêntica fraternidade: só "reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, podemos fazer nascer um desejo mundial de fraternidade entre todos". Segundo o Papa Francisco, "esta fonte da dignidade humana e da fraternidade encontra-se no Evangelho de Jesus Cristo", mas é também uma convicção a que a razão humana pode chegar através da reflexão e do diálogo, uma vez que "em todas as situações, a dignidade dos outros deve ser respeitada, não porque não inventemos ou assumamos a dignidade dos outros, mas porque há de facto um valor neles que transcende as coisas materiais e as circunstâncias, e que exige que sejam tratados de forma diferente. Que cada ser humano possua uma dignidade inalienável é uma verdade que responde à natureza humana para além de qualquer mudança cultural". De facto, conclui o Papa Francisco, "o ser humano tem a mesma dignidade inviolável em todas as épocas da história, e ninguém pode sentir-se autorizado pelas circunstâncias a negar esta convicção ou a não agir em conformidade". Nesta perspetiva, a sua encíclica Fratelli tutti é já uma espécie de Carta Magna para as tarefas actuais de salvaguarda e promoção da dignidade humana. 

Uma clarificação fundamental 

7. Embora exista atualmente um consenso bastante generalizado sobre a importância e mesmo sobre o alcance normativo da dignidade e do valor único e transcendente de cada ser humano, a expressão "dignidade humana" corre muitas vezes o risco de se prestar a múltiplos significados e, por conseguinte, a possíveis mal-entendidos e "contradições que nos levam a perguntar se a igual dignidade de todos os seres humanos [...], [é] verdadeiramente reconhecida, respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias". Tudo isto nos leva a reconhecer a possibilidade de uma distinção quádrupla do conceito de dignidade: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e, finalmente, dignidade existencial. O sentido mais importante continua a ser, como se disse até agora, o ligado à dignidade ontológica que corresponde à pessoa enquanto tal pelo simples facto de existir e de ter sido querida, criada e amada por Deus. Esta dignidade nunca pode ser eliminada e permanece válida para além de todas as circunstâncias em que os indivíduos se possam encontrar. Quando falamos de dignidade moral, referimo-nos, como acabámos de considerar, ao exercício da liberdade da criatura humana. Esta, embora dotada de uma consciência, está sempre aberta à possibilidade de agir contra ela. Ao fazê-lo, o ser humano comporta-se de uma forma "não digna" da sua natureza de criatura amada por Deus e chamada a amar os outros. Mas essa possibilidade existe. E não só. A história testemunha que o exercício da liberdade contra a lei do amor revelada pelo Evangelho pode atingir níveis incalculáveis de maldade infligida aos outros. Quando isso acontece, somos confrontados com pessoas que parecem ter perdido todo o traço de humanidade, todo o traço de dignidade. A este respeito, a distinção aqui introduzida ajuda-nos a discernir precisamente entre o aspeto da dignidade moral, que pode de facto "perder-se", e o aspeto da dignidade ontológica, que nunca pode ser anulada. E é precisamente por isso 

Perspectivas bíblicas 

11. A revelação bíblica ensina que todos os seres humanos possuem uma dignidade intrínseca, porque foram criados à imagem e semelhança de Deus: "Deus disse: 'Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança' [...] Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou" (1 Coríntios 5,1).Gen 1, 2627). A humanidade tem uma qualidade específica que a torna não redutível à pura materialidade. A "imagem" não define a alma ou as capacidades intelectuais, mas a dignidade do homem e da mulher. Ambos, na sua relação mútua de igualdade e de amor recíproco, cumprem a função de representar Deus no mundo e são chamados a cuidar e a nutrir o mundo. Ser criado à imagem de Deus significa, portanto, que possuímos dentro de nós um valor sagrado que transcende todas as distinções sexuais, sociais, políticas, culturais e religiosas. A nossa dignidade é conferida, não reivindicada ou merecida. Cada ser humano é amado e acarinhado por Deus por sua própria causa e é, por isso, inviolável na sua dignidade. Na ÊxodoNo coração do Antigo Testamento, Deus mostra-se como aquele que ouve o grito dos pobres, vê a miséria do seu povo, preocupa-se com os mais pequenos e os oprimidos (cf. Ex 3, 7; 22, 20-26). O mesmo ensinamento volta a aparecer no Código Deuteronómico (cf. Dt 12-26): aqui o ensinamento sobre os direitos é transformado num "manifesto" da dignidade humana, em particular a favor da tripla categoria do órfão, da viúva e do estrangeiro (cf. Dt 24, 17). Os antigos preceitos do Êxodo são recordados e actualizados pela pregação dos profetas, que representam a consciência crítica de Israel. Os profetas Amós, Oséias, Isaías, Miquéias e Jeremias dedicam capítulos inteiros à denúncia da injustiça. Am 2, 6-7; 4, 1; 5, 11-12). Isaías pronuncia uma maldição contra aqueles que espezinham os direitos dos pobres, negando-lhes toda a justiça: "Ai dos que estabelecem decretos iníquos e publicam prescrições vexatórias, para oprimirem os pobres em juízo e privarem do seu direito os humildes do meu povo" (É 10, 1-2). Este ensinamento profético está registado na literatura sapiencial. O Siraque equipara a opressão dos pobres a um assassínio: "quem mata o seu vizinho que lhe rouba o sustento, quem não paga o salário do trabalhador derrama sangue" (Sim 34, 22). No SalmosA relação religiosa com Deus implica a defesa dos fracos e dos necessitados: "protegei os desamparados e os órfãos, fazei justiça aos humildes e aos necessitados, defendei os pobres e os indigentes e livrai-os das mãos dos culpados" (Sal 82, 3-4).

12. Jesus nasceu e cresceu em condições humildes e revelou a dignidade dos necessitados e dos trabalhadores. Ao longo do seu ministério, Jesus afirmou o valor e a dignidade de todos os que são portadores da imagem de Deus, independentemente do seu estatuto social e das circunstâncias externas. Mt 9, 10-11), as mulheres (cf. Jn 4, 1-42), crianças (cf. Mc 10, 14-15), os leprosos (cf. Mt 8, 2-3), os doentes (cf. Mc 1, 29-34), os estrangeiros (cf. Mt 25, 35), as viúvas (cf. Lc 7, 11-15). Ele cura, alimenta, defende, liberta, salva. É descrito como um pastor que cuida de uma única ovelha perdida (cf. Jo 1,5) Mt 18, 12-14). Ele próprio se identifica com os seus irmãos mais pequeninos: "Como o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes" (Lc 18,12-14).Mt 25, 40). Na linguagem bíblica, os "pequeninos" não são apenas as crianças por idade, mas os indefesos, os mais insignificantes, os marginalizados, os oprimidos, os descartados, os pobres, os marginalizados, os ignorantes, os doentes, os degradados pelos grupos dominantes. O Cristo glorioso julgará segundo o amor ao próximo, que consiste em ter socorrido o faminto, o sedento, o estrangeiro, o nu, o doente, o encarcerado, com os quais ele próprio se identifica (cf. Mt 25, 34-36). Para Jesus, o bem feito a cada ser humano, independentemente dos laços de sangue ou de religião, é o único critério de julgamento. O apóstolo Paulo afirma que cada cristão deve comportar-se de acordo com as exigências da dignidade e do respeito pelos direitos de todos os seres humanos (cf. Jo 10,5) Rm 13,8-10), segundo o novo mandamento da caridade (cf. 1 Co 13, 1-13).

13. O desenvolvimento do pensamento cristão estimulou e, posteriormente, acompanhou o progresso da reflexão humana sobre o tema da dignidade. A antropologia cristã clássica, baseada na grande tradição dos Padres da Igreja, pôs em evidência a doutrina do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e o seu papel único na criação. O pensamento cristão medieval, perscrutando criticamente o legado do pensamento filosófico antigo, chegou a uma síntese da noção de pessoa, reconhecendo o fundamento metafísico da sua dignidade, como atestam as seguintes palavras de São Tomás de Aquino: "pessoa significa aquilo que em cada natureza é mais perfeito, aquilo que subsiste na natureza racional". Esta dignidade ontológica, na sua manifestação privilegiada através da ação humana livre, foi mais tarde sublinhada sobretudo pelo humanismo cristão do Renascimento. Mesmo na visão de pensadores modernos como Descartes e Kant, que questionaram alguns dos fundamentos da antropologia cristã tradicional, os ecos da Revelação podem ser fortemente percebidos. Partindo de reflexões filosóficas mais recentes sobre o estatuto da subjetividade teórica e prática, a reflexão cristã foi depois acentuando a profundidade do conceito de dignidade, chegando no século XX a uma perspetiva original, como a do personalismo. Esta perspetiva não só retoma a questão da subjetividade, mas aprofunda-a no sentido da intersubjetividade e das relações que ligam as pessoas humanas entre si. A abordagem antropológica cristã e contemporânea também se enriqueceu com o pensamento proveniente desta última visão. 

Os tempos de defesa dos fracos e dos necessitados: "Protegei os desamparados e os órfãos, fazei justiça aos humildes e aos necessitados, defendei os pobres e os indigentes, livrai-os das mãos dos culpados" (Sl 82,3-4). 

Hora atual 

14. Hoje em dia, o termo "dignidade" é sobretudo utilizado para sublinhar o carácter único da pessoa humana, incomensurável em relação a todos os outros seres do universo. Neste contexto, compreende-se a forma como o termo dignidade é utilizado na Declaração das Nações Unidas de 1948, que fala da "dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana". Só este carácter inalienável da dignidade humana permite falar de direitos humanos. 

15. Para esclarecer melhor o conceito de dignidade, é importante notar que a dignidade não é concedida à pessoa por outros seres humanos, com base em certos dons e qualidades, para que possa eventualmente ser retirada. Se a dignidade fosse concedida à pessoa por outros seres humanos, então seria dada de forma condicional e alienável, e o próprio significado da dignidade (por mais digna de grande respeito que seja) estaria exposto ao risco de ser abolido. Na realidade, a dignidade é intrínseca à pessoa, não é conferida a posteriori, é anterior a qualquer reconhecimento e não pode ser perdida. Por conseguinte, todos os seres humanos possuem a mesma dignidade intrínseca, independentemente do facto de serem ou não capazes de a exprimir adequadamente. 

16. É por isso que o Concílio Vaticano II fala da "excelsa dignidade da pessoa humana, da sua superioridade sobre todas as coisas e dos seus direitos e deveres universais e invioláveis". Como recorda o incipit da Declaração conciliar Dignitatis Humanae, "os homens do nosso tempo estão cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana, e cresce o número daqueles que exigem que os homens, nas suas acções, gozem e usem o seu juízo responsável e a sua liberdade, guiados por uma consciência de dever e não movidos pela coação". Esta liberdade de pensamento e de consciência, tanto individual como colectiva, baseia-se no reconhecimento da dignidade humana "tal como é conhecida pela palavra revelada de Deus e pela própria razão natural". O mesmo magistério eclesial amadureceu, cada vez mais, o significado desta dignidade, juntamente com as exigências e implicações que lhe estão associadas, chegando à compreensão de que a dignidade de cada ser humano é tal para além de todas as circunstâncias.

2. A Igreja proclama, promove e torna-se garante da dignidade humana. 

17. A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição ou qualidade de vida. Esta proclamação baseia-se numa tríplice convicção que, à luz da fé cristã, confere um valor incomensurável à dignidade humana e reforça as suas exigências intrínsecas. 

Uma imagem indelével de Deus 

18. Antes de mais, segundo a Revelação, a dignidade da pessoa humana deriva do amor do seu Criador, que lhe imprimiu os traços indeléveis da sua imagem (cf. Gn 1, 26), chamando-a a conhecê-Lo, a amá-Lo e a viver numa relação de aliança com o próprio Deus e de fraternidade, justiça e paz com todos os outros homens e mulheres. Nesta visão, a dignidade não se refere apenas à alma, mas à pessoa como unidade inseparável e, portanto, inerente também ao seu corpo, que participa, a seu modo, da imagem de Deus da pessoa humana e é também chamado a participar da glória da alma na bem-aventurança divina. 

Cristo eleva a dignidade do homem 

19. Uma segunda convicção provém do facto de a dignidade da pessoa humana ter sido revelada em toda a sua plenitude quando o Pai enviou o seu Filho que assumiu plenamente a existência humana: "o Filho de Deus, no mistério da Encarnação, confirmou a dignidade do corpo e da alma que constituem o ser humano". Assim, ao unir-se de certo modo a cada ser humano através da sua encarnação, Jesus Cristo confirmou que cada ser humano possui uma dignidade inestimável, pelo simples facto de pertencer à mesma comunidade humana, e que esta dignidade nunca poderá ser perdida. Ao proclamar que o Reino de Deus pertence aos pobres, aos humildes, aos desprezados, aos que sofrem no corpo e no espírito; ao curar todo o tipo de doenças e enfermidades, mesmo as mais desumanizantes como a lepra; ao afirmar que o que é feito a estas pessoas é feito a Ele, porque Ele está presente nestas pessoas, Jesus trouxe a grande novidade do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, e também, e sobretudo, daqueles que eram qualificados como "indignos". Este novo princípio da história da humanidade, segundo o qual o ser humano é tanto mais "digno" de respeito e de amor quanto mais fraco, miserável e sofredor for, a ponto de perder a sua própria "figura" humana, mudou o rosto do mundo, dando origem a instituições que cuidam de pessoas em condições desumanas: recém-nascidos abandonados, órfãos, idosos solitários, doentes mentais, pessoas com doenças incuráveis ou malformações graves e pessoas que vivem na rua. 

Uma vocação à plenitude da dignidade 

20. A terceira convicção diz respeito ao destino último do ser humano: após a criação e a encarnação, a ressurreição de Cristo revela-nos um outro aspeto da dignidade humana. De facto, "a razão mais alta da dignidade humana consiste na vocação do homem à união com Deus", destinada a durar para sempre. Assim, "a dignidade [da vida humana] está ligada não só à sua origem, à sua origem divina, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no seu conhecimento e no seu amor". À luz desta verdade, Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: "o homem que vive" é "a glória de Deus", mas "a vida do homem consiste na visão de Deus"". 

21. Por conseguinte, a Igreja crê e afirma que todos os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus e recriados no Filho feito homem, crucificado e ressuscitado, são chamados a crescer sob a ação do Espírito Santo para refletir a glória do Pai, à sua imagem, participando na vida eterna (cf. Jo 10, 15-16.17.22-24; 2 Cor 3, 18; Ef 1, 3-14). De facto, "a Revelação [...] manifesta a dignidade da pessoa humana em toda a sua plenitude". 

Um compromisso com a própria liberdade 

22. Embora cada ser humano possua, desde o início da sua existência, uma dignidade inalienável e intrínseca, como dom irrevogável, cabe à sua escolha livre e responsável exprimi-la e manifestá-la em plenitude ou maculá-la. Alguns Padres da Igreja - como Santo Ireneu ou São João Damasceno - estabeleceram uma distinção entre a imagem e a semelhança de que fala o Génesis, permitindo assim uma visão dinâmica da própria dignidade humana: a imagem de Deus é confiada à liberdade do ser humano para que, sob a orientação e a ação do Espírito, a sua semelhança com Deus cresça e cada pessoa atinja a sua máxima dignidade. Cada pessoa é chamada a manifestar, no plano existencial e moral, o horizonte ontológico da sua dignidade, na medida em que, com a sua própria liberdade, se orienta para o verdadeiro bem, como resposta ao amor de Deus. Assim, na medida em que é criada à imagem de Deus, por um lado, a pessoa humana nunca perde a sua dignidade e nunca deixa de ser chamada a abraçar livremente o bem; por outro lado, na medida em que a pessoa humana responde ao bem, a sua dignidade pode manifestar-se, crescer e amadurecer livremente, de forma dinâmica e progressiva. Isto significa que o ser humano deve também esforçar-se por viver de acordo com a sua dignidade. Compreende-se, portanto, em que sentido o pecado pode ferir e obscurecer a dignidade humana como um ato contrário a ela, mas ao mesmo tempo nunca pode apagar o facto de o ser humano ser criado à imagem de Deus. A fé, portanto, contribui decisivamente para ajudar a razão na sua perceção da dignidade humana, e para aceitar, consolidar e esclarecer os seus traços essenciais, como salientou Bento XVI: "sem a ajuda correctiva da religião, a razão pode também ser vítima de distorções, como quando é manipulada por ideologias ou aplicada de forma parcial em detrimento da plena consideração da dignidade da pessoa humana. Foi este abuso da razão que esteve na origem do tráfico de escravos e de muitos outros males sociais, nomeadamente da difusão das ideologias totalitárias do século XX". 

3. A dignidade, fundamento dos direitos e deveres do Homem 

23. Como já recordou o Papa Francisco, "na cultura moderna, a referência mais próxima do princípio da dignidade inalienável da pessoa é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que São João Paulo II definiu como "um marco no longo e difícil caminho do género humano" e como "uma das mais altas expressões da consciência humana". Para resistir às tentativas de alterar ou eliminar o significado profundo desta Declaração, vale a pena recordar alguns princípios essenciais que devem ser sempre respeitados. 

Respeito incondicional pela dignidade humana 

24. Em primeiro lugar, embora haja uma crescente consciencialização para a questão da dignidade humana, existem ainda hoje muitos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado. Alguns propõem que é melhor usar o termo "dignidade pessoal" (e direitos "da pessoa") em vez de "dignidade humana" (e direitos "do homem"), porque entendem a pessoa apenas como "um ser capaz de raciocinar". Consequentemente, defendem que a dignidade e os direitos são inferidos da capacidade de conhecimento e de liberdade, de que nem todos os seres humanos são dotados. Assim, o nascituro não teria dignidade pessoal, nem o idoso incapacitado, nem o deficiente mental. A Igreja, pelo contrário, insiste no facto de que a dignidade de cada pessoa humana, precisamente porque é intrínseca, permanece "para além de todas as circunstâncias", e o seu reconhecimento não pode de modo algum depender do juízo sobre a capacidade de compreender e agir livremente. Caso contrário, a dignidade não seria, enquanto tal, inerente à pessoa, independente do seu condicionamento e, por conseguinte, merecedora de respeito incondicional. Só o reconhecimento da dignidade intrínseca do ser humano, que nunca pode ser perdida, desde a conceção até à morte natural, pode garantir a esta qualidade um fundamento inviolável e seguro. Sem qualquer referência ontológica, o reconhecimento da dignidade humana oscilaria à mercê de apreciações diversas e arbitrárias. A única condição, portanto, para que se possa falar de dignidade como inerente à pessoa é que ela pertença à espécie humana, de modo que "os direitos da pessoa são direitos humanos". 

Uma referência objetiva para a liberdade humana 

25. Em segundo lugar, o conceito de dignidade humana é também por vezes utilizado de forma abusiva para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais são frequentemente contrários aos originalmente definidos e, não raro, em contradição com o direito fundamental à vida, como se fosse necessário garantir a capacidade de exprimir e realizar cada preferência individual ou desejo subjetivo. A dignidade é então identificada com uma liberdade isolada e individualista, que procura impor como "direitos", garantidos e financiados pela comunidade, certos desejos e preferências subjectivos. Mas a dignidade humana não pode ser baseada em padrões meramente individuais, nem pode ser identificada apenas com o bem-estar psicofísico do indivíduo. Pelo contrário, a defesa da dignidade humana assenta nas exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem da arbitrariedade individual nem do reconhecimento social. Os deveres que decorrem do reconhecimento da dignidade dos outros, e os correspondentes direitos que daí derivam, têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo assente na natureza humana comum. Sem esta referência objetiva, o conceito de dignidade fica, de facto, sujeito às mais diversas arbitrariedades e aos interesses do poder. 

A estrutura relacional da pessoa humana 

26. A dignidade da pessoa humana, à luz do carácter relacional da pessoa, ajuda também a superar a perspetiva redutora de uma liberdade autorreferencial e individualista, que procura criar os seus próprios valores sem ter em conta as normas objectivas do bem e a relação com os outros seres vivos. De facto, corre-se cada vez mais o risco de limitar a dignidade humana à capacidade de tomar decisões discricionárias sobre si mesmo e sobre o próprio destino, independentemente do dos outros, sem ter em conta a pertença à comunidade humana. Numa tal conceção errónea da liberdade, os deveres e os direitos não podem reconhecer-se mutuamente para se cuidarem uns dos outros. Na realidade, como nos recorda São João Paulo II, a liberdade é colocada "ao serviço da pessoa e da sua realização através do dom de si e do acolhimento dos outros". No entanto, quando a liberdade é absolutizada num sentido individualista, esvazia-se do seu conteúdo original e contradiz a sua própria vocação e dignidade". 

27. A dignidade do ser humano inclui assim também a capacidade, inerente à própria natureza humana, de assumir obrigações para com os outros.

28. A diferença entre o ser humano e os outros seres vivos, sublinhada pelo conceito de dignidade, não deve fazer esquecer a bondade dos outros seres criados, que existem não só em relação ao ser humano, mas também com o seu valor próprio e, portanto, como dons que lhe foram confiados para serem salvaguardados e alimentados. Assim, enquanto o conceito de dignidade é reservado ao ser humano, a bondade criatural do resto do cosmos deve ser afirmada ao mesmo tempo. Como sublinhou o Papa Francisco: "Precisamente por causa da sua dignidade única e porque é dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas [...]: "Cada criatura possui a sua própria bondade e perfeição [...] As várias criaturas, apreciadas no seu próprio ser, reflectem, cada uma a seu modo, um raio da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. Por isso, o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, a fim de evitar um uso desordenado das coisas". Além disso, "hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível sustentar um "antropocentrismo situado". Ou seja, reconhecer que a vida humana é incompreensível e insustentável sem as outras criaturas". Nesta perspetiva, "não é irrelevante para nós que tantas espécies estejam a desaparecer, que a crise climática esteja a pôr em perigo a vida de tantos seres". De facto, faz parte da dignidade do homem cuidar do ambiente, tendo em conta, em particular, a ecologia humana que preserva a sua própria existência. 

A libertação do ser humano dos condicionamentos morais e sociais. 

29. Estes pressupostos básicos, por mais necessários que sejam, não são suficientes para garantir o crescimento da pessoa em coerência com a sua dignidade. Apesar de "Deus ter criado o homem racional, conferindo-lhe a dignidade de pessoa dotada de iniciativa e de controlo sobre as suas acções" em vista do bem, o livre arbítrio prefere muitas vezes o mal ao bem. É por isso que a liberdade humana, por sua vez, precisa de ser libertada. Na carta aos Gálatas, "para a liberdade, Cristo nos libertou" (Gl 5,1), São Paulo recorda a tarefa própria de cada cristão, sobre cujos ombros repousa uma responsabilidade de libertação que se estende ao mundo inteiro (cf. Rm 8,19ss). Trata-se de uma libertação que, a partir do coração de cada um, é chamada a difundir e a manifestar a sua força humanizadora em todas as relações. 

30. A liberdade é um dom maravilhoso de Deus. Mesmo quando nos atrai com a sua graça, Deus fá-lo de tal modo que a nossa liberdade nunca é violada. Seria, portanto, um grave erro pensar que, longe de Deus e da sua ajuda, podemos ser mais livres e, por conseguinte, sentirmo-nos mais dignos. Separada do seu Criador, a nossa liberdade só pode enfraquecer e escurecer. O mesmo se passa se a liberdade for imaginada como independente de qualquer referência que não seja ela própria e se qualquer relação com uma verdade anterior for entendida como uma ameaça. Como consequência, o respeito pela liberdade e pela dignidade dos outros também falhará. Assim o explica o Papa Bento XVI: "uma vontade que se crê radicalmente incapaz de procurar a verdade e o bem não tem razões e motivos objectivos para agir, mas apenas aqueles que provêm dos seus interesses momentâneos e passageiros; não tem uma "identidade" a guardar e a construir através de escolhas verdadeiramente livres e conscientes. Não pode, portanto, reclamar o respeito de outras "vontades", também elas desligadas do seu ser mais profundo, e que podem fazer prevalecer outras "razões" ou mesmo nenhuma "razão". A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para a convivência pacífica é, na realidade, a origem da divisão e da negação da dignidade do ser humano". 

31. Além disso, seria irrealista afirmar uma liberdade abstrata, livre de qualquer condicionamento, contexto ou limite. Pelo contrário, "o bom exercício da liberdade pessoal exige determinadas condições económicas, sociais, jurídicas, políticas e culturais", que muitas vezes não estão reunidas. Neste sentido, podemos dizer que uns são mais "livres" do que outros. O Papa Francisco insistiu neste ponto em particular: "Alguns nascem em famílias abastadas, recebem uma boa educação, crescem bem alimentados ou possuem capacidades naturalmente excecionais. Não precisarão certamente de um Estado ativo e exigirão apenas a liberdade. Mas é óbvio que a mesma regra não se aplica a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num agregado familiar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de má qualidade e com poucas hipóteses de cura adequada para as suas doenças. Se a sociedade se reger prioritariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para eles, e a fraternidade será apenas mais uma expressão romântica". Por isso, é indispensável compreender que "a libertação da injustiça promove a liberdade e a dignidade humana" a todos os níveis e em todas as relações das acções humanas. Para que a verdadeira liberdade seja possível, "temos de trazer a dignidade humana de volta ao centro e construir sobre esse pilar as estruturas sociais alternativas de que necessitamos". Do mesmo modo, a liberdade é frequentemente obscurecida por numerosas condicionantes psicológicas, históricas, sociais, educativas e culturais. A liberdade real e histórica precisa sempre de ser "libertada". E o direito fundamental à liberdade religiosa também deve ser reafirmado. 

32. Ao mesmo tempo, é evidente que a história da humanidade mostra progressos na compreensão da dignidade e da liberdade do homem, mas não sem sombras e perigos de retrocesso. Testemunho disso é a aspiração crescente - também por influência cristã, que continua a ser um fermento mesmo numa sociedade cada vez mais secularizada - de erradicar o racismo, a escravatura e a marginalização das mulheres, das crianças, dos doentes e dos deficientes. Mas este árduo caminho está longe de estar concluído. 

4. Algumas violações graves da dignidade humana 

33. À luz das reflexões feitas até agora sobre a centralidade da dignidade humana, esta última secção da Declaração aborda algumas violações concretas e graves da dignidade humana. Fá-lo no espírito do magistério da Igreja, que encontrou a sua plena expressão no magistério dos últimos Papas, como já foi recordado. Por exemplo, o Papa Francisco, por um lado, não se cansa de apelar ao respeito pela dignidade humana: "Todo o ser humano tem o direito de viver com dignidade e de se desenvolver integralmente, e este direito fundamental não pode ser negado por nenhum país. Tem-no mesmo que seja ineficaz, mesmo que nasça ou cresça com limitações. Porque isso não põe em causa a sua imensa dignidade de pessoa humana, que não se baseia nas circunstâncias mas no valor do seu ser. Quando este princípio elementar não é salvaguardado, não há futuro nem para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade. Por outro lado, não deixa de chamar a atenção de todos para as violações concretas da dignidade humana no nosso tempo, apelando a todos e a cada um de nós para um abalo de responsabilidade e um compromisso ativo. 

34. Ao assinalar algumas das numerosas violações da dignidade humana no nosso mundo contemporâneo, podemos recordar o que o Concílio Vaticano II ensinou a este respeito. Há que reconhecer que se opõe à dignidade humana "tudo o que atenta contra a vida - o homicídio de qualquer género, o genocídio, o aborto, a eutanásia e até o suicídio voluntário". É também contra a nossa dignidade "tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como a mutilação, a tortura moral ou física, as tentativas sistemáticas de dominar a mente dos outros". E, finalmente, "tudo o que ofende a dignidade humana, como as condições de vida sub-humanas, a detenção arbitrária, a deportação, a escravatura, a prostituição, o tráfico de mulheres e de crianças, ou as condições de trabalho degradantes que reduzem o trabalhador à condição de mero instrumento de lucro, sem respeito pela liberdade e responsabilidade da pessoa humana". É igualmente necessário mencionar aqui a questão da pena de morte: esta última viola igualmente a dignidade inalienável de todo o ser humano, independentemente das circunstâncias. Pelo contrário, há que reconhecer que "a firme rejeição da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de cada ser humano e aceitar que ele ou ela tem um lugar neste universo. Porque, se eu não o nego a

36. Um dos fenómenos que mais contribui para a negação da dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. Como já sublinhou São João Paulo II, "uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo consiste precisamente nisto: que relativamente poucos possuem muito e muitos não possuem quase nada. É a injustiça da má distribuição dos bens e serviços originalmente destinados a todos". Além disso, seria ilusório fazer uma distinção superficial entre "países ricos" e "países pobres". Bento XVI já reconheceu que "a riqueza mundial está a crescer em termos absolutos, mas também aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais são empobrecidas e nascem novas formas de pobreza. Nas zonas mais pobres, alguns grupos gozam de uma espécie de superdesenvolvimento consumista e esbanjador, que contrasta inaceitavelmente com situações persistentes de miséria desumanizante. Continua a existir "o escândalo das disparidades dolorosas", onde a dignidade dos pobres é duplamente negada, quer pela falta de recursos disponíveis para satisfazer as suas necessidades básicas, quer pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem ao seu lado. 

37. Portanto, com o Papa Francisco, devemos concluir que "a riqueza aumentou, mas com desigualdade, e por isso o que acontece é que "nascem novas formas de pobreza". Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios de outros tempos que não podem ser comparados com a realidade atual". Como resultado, a pobreza alastra "de múltiplas formas, como na obsessão de reduzir os custos do trabalho, que não se dá conta das graves consequências que isso provoca, porque o desemprego que se produz tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza". Entre estes "efeitos destrutivos do império do dinheiro", há que reconhecer que "não há pior pobreza do que aquela que priva as pessoas do trabalho e da dignidade do trabalho". Se algumas pessoas nascem num país ou numa família onde têm menos oportunidades de desenvolvimento, temos de reconhecer que isso está em contradição com a sua dignidade, que é exatamente a mesma que a de quem nasce numa família rica ou num país rico. Todos somos responsáveis, ainda que em graus diferentes, por esta desigualdade gritante. 

A guerra 

38. Outro drama que nega a dignidade humana é o provocado pela guerra, hoje como sempre: "as guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas outras afrontas à dignidade humana [...] "multiplicam-se dolorosamente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumirem as formas daquilo a que eu poderia chamar uma "terceira guerra mundial por etapas"". Com o seu rasto de destruição e de dor, a guerra é um atentado à dignidade humana a curto e a longo prazo: "embora reafirmando o direito inalienável à legítima defesa, bem como a responsabilidade de proteger aqueles cuja existência está ameaçada, temos de admitir que a guerra é sempre uma "derrota da humanidade". Nenhuma guerra vale as lágrimas de uma mãe que viu o seu filho mutilado ou morto; nenhuma guerra vale a perda da vida, mesmo de uma única pessoa humana, um ser sagrado, criado à imagem e semelhança do Criador; nenhuma guerra vale o envenenamento da nossa Casa Comum; e nenhuma guerra vale o desespero daqueles que são forçados a deixar a sua pátria e são privados, de um momento para o outro, da sua casa e de todos os laços familiares, de amizade, sociais e culturais que foram construídos, por vezes ao longo de gerações". Todas as guerras, pelo facto de contradizerem a dignidade humana, são "conflitos que não resolvem os problemas, antes os aumentam". Isto é ainda mais grave no nosso tempo, em que se tornou normal a morte de tantos civis inocentes fora do campo de batalha. 

39. Por conseguinte, ainda hoje a Igreja não pode deixar de fazer suas as palavras dos Papas, repetindo com São Paulo VI: "Nunca mais a guerra! Nunca mais a guerra!", e pedindo, com São João Paulo II, "em nome de Deus e em nome da humanidade: Não mateis! Não preparem os homens para a destruição e o extermínio! Pensem nos vossos irmãos e irmãs que sofrem a fome e a miséria! Respeitem a dignidade e a liberdade de cada um deles! Este é o grito da Igreja e de toda a humanidade, especialmente no nosso tempo. Por fim, o Papa Francisco sublinha que "não podemos pensar na guerra como uma solução, porque os riscos serão provavelmente sempre maiores do que a hipotética utilidade que lhe é atribuída. Perante esta realidade, é muito difícil hoje sustentar os critérios racionais desenvolvidos noutros séculos para falar de uma possível "guerra justa". Nunca mais a guerra! Como a humanidade cai muitas vezes nos mesmos erros do passado, "para construir a paz, é necessário deixar para trás a lógica da legitimidade da guerra". A relação íntima entre fé e dignidade humana torna contraditório basear a guerra em convicções religiosas: "aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não estão a seguir o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião".

Trabalho migrante 

40. Os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. Não só a sua dignidade é negada nos seus países, como a sua própria vida é posta em risco, porque não têm meios para constituir família, trabalhar ou alimentar-se. Quando chegam aos países que os deveriam acolher, "não são considerados dignos de participar na vida social como qualquer outra pessoa, e esquece-se que têm a mesma dignidade intrínseca que qualquer outra pessoa. [...] Nunca se dirá que não são humanos, mas na prática, pelas decisões e pela forma como são tratados, fica expresso que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos". Por isso, é sempre urgente recordar que "cada migrante é uma pessoa humana que, como tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos e em todas as situações". O seu acolhimento é uma forma importante e significativa de defender "a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião". 

Tráfico de pessoas 

41. O tráfico de seres humanos deve também ser considerado uma grave violação da dignidade humana. Não é novidade, mas o seu desenvolvimento assume dimensões trágicas visíveis para todos, e o Papa Francisco denunciou-o em termos particularmente fortes: "Reafirmo que o "tráfico de seres humanos" é uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se consideram civilizadas. Os exploradores e os clientes, a todos os níveis, devem fazer um sério exame de consciência diante de si mesmos e diante de Deus! A Igreja renova hoje o seu forte apelo a defender sempre a dignidade e a centralidade de cada pessoa, no respeito dos direitos fundamentais, como sublinha a sua doutrina social, e apela a que os direitos sejam verdadeiramente alargados onde não são reconhecidos a milhões de homens e mulheres em todos os continentes. Num mundo em que se fala tanto de direitos, quantas vezes a dignidade humana é, de facto, ultrajada! Num mundo onde se fala tanto de direitos, parece que o dinheiro é a única coisa que tem direitos. Caros irmãos e irmãs, vivemos num mundo onde o dinheiro domina. Vivemos num mundo, numa cultura onde reina o fetichismo do dinheiro". 

42. Por estas razões, a Igreja e a humanidade não devem abandonar a luta contra fenómenos como "o comércio de órgãos e tecidos humanos, a exploração sexual de crianças, o trabalho escravo, incluindo a prostituição, o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo e a criminalidade organizada internacional. Tal é a dimensão destas situações e o peso que estão a ter em vidas inocentes, que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declaratório que tem um efeito apaziguador nas consciências. Temos de assegurar que as nossas instituições sejam verdadeiramente eficazes na luta contra todos estes flagelos. Perante formas tão diversas e brutais de negação da dignidade humana, temos de estar cada vez mais conscientes de que "o tráfico de seres humanos é um crime contra a humanidade". Nega a dignidade humana em substância, pelo menos de duas maneiras: "desfigura a humanidade da vítima, ofendendo a sua liberdade e a sua dignidade. Mas, ao mesmo tempo, desumaniza aqueles que o praticam". 

Abuso sexual 

43. A profunda dignidade inerente ao ser humano na sua totalidade de mente e corpo permite-nos também compreender porque é que todo o abuso sexual deixa marcas profundas no coração daqueles que o sofrem: são, de facto, feridos na sua dignidade humana. É "um sofrimento que pode durar toda a vida e que nenhum arrependimento pode remediar". Este fenómeno, muito difundido na sociedade, atinge também a Igreja e constitui um sério obstáculo à sua missão". Daí o seu empenhamento inabalável em pôr fim a todas as formas de abuso, começando pelo interior. 

Violência contra as mulheres 

44. A violência contra as mulheres é um escândalo mundial cada vez mais reconhecido. Embora a igual dignidade das mulheres seja reconhecida em palavras, nalguns países as desigualdades entre mulheres e homens são muito graves e, mesmo nos países mais desenvolvidos e democráticos, a realidade social concreta testemunha que as mulheres não são frequentemente reconhecidas como tendo a mesma dignidade que os homens. O Papa Francisco sublinha este facto quando afirma que "a organização das sociedades em todo o mundo está ainda longe de refletir claramente que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e os mesmos direitos que os homens. Afirma-se uma coisa com palavras, mas as decisões e a realidade gritam outra mensagem. É um facto que "são duplamente pobres as mulheres que sofrem situações de exclusão, de abuso e de violência, porque são frequentemente menos capazes de defender os seus direitos". 

45. São João Paulo II já reconhecia que "há ainda muito a fazer para que o facto de ser mulher e mãe não implique discriminação. É urgente alcançar em toda a parte uma efectiva igualdade dos direitos humanos e, portanto, salário igual para trabalho igual, proteção da mãe-trabalhadora, progressão justa na carreira, igualdade dos cônjuges no direito de família, reconhecimento de tudo o que diz respeito aos direitos e deveres do cidadão num regime democrático". As desigualdades nestes domínios são formas diferentes de violência. Recordou ainda que "é tempo de condenar com determinação, utilizando os meios legislativos de defesa adequados, as formas de violência sexual que frequentemente atingem as mulheres. Em nome do respeito pela pessoa, não podemos também deixar de denunciar a generalizada cultura hedonista e comercial que promove a exploração sistemática da sexualidade, levando as raparigas, ainda muito jovens, a cair em ambientes corruptos e a fazer um uso mercenário do seu corpo". Entre as formas de violência exercidas contra as mulheres, como não mencionar a coação ao aborto, que afecta tanto a mãe como o filho, tantas vezes para satisfazer o egoísmo dos homens? E como não mencionar também a prática da poligamia que - como nos recorda o Catecismo da Igreja Católica - é contrária à igual dignidade da mulher e do homem e é também contrária ao "amor conjugal que é único e exclusivo"? 

46. Neste contexto de violência contra as mulheres, o fenómeno do feminicídio nunca será suficientemente condenado. Nesta frente, o compromisso de toda a comunidade internacional deve ser sólido e concreto, como reiterou o Papa Francisco: "O amor a Maria deve ajudar-nos a gerar atitudes de reconhecimento e gratidão para com as mulheres, para com as nossas mães e avós que são um bastião de vida nas nossas cidades. São elas que, quase sempre em silêncio, levam a vida por diante. É o silêncio e a força da esperança. Obrigado pelo vosso testemunho [...] mas olhando para as mães e as avós, quero convidar-vos a lutar contra uma praga que afecta o nosso continente americano: os numerosos casos de feminicídio. E por detrás de tantos muros. Convido-vos a lutar contra esta fonte de sofrimento, apelando à promoção de uma legislação e de uma cultura de repúdio de todas as formas de violência". 

Aborto 

47. A Igreja não cessa de recordar que "a dignidade de cada ser humano é intrínseca e vale desde o momento da conceção até à morte natural. É precisamente a afirmação desta dignidade que constitui o pressuposto indispensável para a proteção de uma existência pessoal e social, e também a condição necessária para a realização da fraternidade e da amizade social entre todos os povos da terra". Com base neste valor intangível da vida humana, o magistério da Igreja sempre se pronunciou contra o aborto. A este propósito, São João Paulo II escreve: "Entre todos os crimes que o homem pode cometer contra a vida, o aborto provocado tem características que o tornam particularmente grave e ignominioso [...] Hoje, porém, a perceção da sua gravidade enfraqueceu progressivamente na consciência de muitos. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei é um sinal claro de uma crise muito perigosa do sentido moral, que se torna cada vez mais incapaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Perante uma situação tão grave, mais do que nunca é necessária a coragem de enfrentar a verdade e de chamar as coisas pelo seu próprio nome, sem ceder a compromissos de conveniência ou à tentação do auto-engano. A este respeito, ressoa categoricamente a reprovação do Profeta: "Ai daqueles que chamam bem ao mal e mal ao bem; que dão as trevas à luz e a luz às trevas" (Is 5, 20). É precisamente no caso do aborto que se assiste à difusão de uma terminologia ambígua, como "interrupção da gravidez", que tende a esconder a sua verdadeira natureza e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este mesmo fenómeno linguístico seja um sintoma de um mal-estar das consciências. Mas não há palavras que possam mudar a realidade das coisas: o aborto provocado é a eliminação deliberada e direta, seja qual for a sua forma, de um ser humano na fase inicial da sua existência, desde a conceção até ao nascimento". As crianças que vão nascer "são as mais indefesas e inocentes de todas, a quem hoje se nega a sua dignidade humana para se fazer delas o que se quiser, tirando-lhes a vida e promovendo uma legislação para que ninguém o possa impedir". Por isso, deve afirmar-se com toda a força e clareza, mesmo no nosso tempo, que "esta defesa da vida por nascer está intimamente ligada à defesa de todos os direitos humanos. Ela pressupõe a convicção de que o ser humano é sempre sagrado e inviolável, em todas as situações e em todas as fases do seu desenvolvimento. É um fim em si mesmo e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se esta convicção cair, não restarão bases sólidas e permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficarão sempre sujeitos às conveniências circunstanciais dos poderosos no poder. A razão, por si só, é suficiente para reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas se a olharmos também na perspetiva da fé, "toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama vingança diante de Deus e configura-se como uma ofensa ao Criador do homem". O empenhamento generoso e corajoso de Santa Teresa de Calcutá na defesa de cada pessoa concebida merece ser aqui mencionado. 

Barriga de aluguer 

48. A Igreja também se posiciona contra a prática da maternidade de substituição, em que a criança, imensamente digna, é transformada num mero objeto. A este respeito, as palavras do Papa Francisco são muito claras: "o caminho para a paz exige o respeito pela vida, por cada vida humana, a começar pela do nascituro no ventre materno, que não pode ser suprimida nem transformada num produto comercial. A este respeito, considero deplorável a prática da chamada maternidade de substituição, que ofende gravemente a dignidade da mulher e da criança e se baseia na exploração das necessidades materiais da mãe. Uma criança é sempre uma dádiva e nunca o objeto de um contrato. Apelo, pois, à comunidade internacional para que se empenhe numa proibição universal desta prática. 

49. A prática da maternidade de substituição viola, antes de mais, a dignidade da criança. Com efeito, toda a criança, desde o momento da conceção e do nascimento, e depois, à medida que cresce e se torna adulta, possui uma dignidade intangível que se exprime claramente, embora de forma única e diferenciada, em cada fase da sua vida. A criança tem, portanto, direito, em virtude da sua dignidade inalienável, a ter uma origem plenamente humana e não artificialmente induzida, e a receber o dom de uma vida que manifeste, ao mesmo tempo, a dignidade de quem a dá e de quem a recebe. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana implica também o reconhecimento da dignidade da união conjugal e da procriação humana em todas as suas dimensões. Neste sentido, o desejo legítimo de ter um filho não pode transformar-se num "direito a um filho" que não respeite a dignidade do próprio filho enquanto destinatário do dom gratuito da vida.  

50. A prática da maternidade de substituição viola, ao mesmo tempo, a dignidade da própria mulher, que a ela é forçada ou que a ela se submete livremente. Com esta prática, a mulher dissocia-se da criança que cresce nela e torna-se um mero meio ao serviço do lucro ou do desejo arbitrário de outros. Isto está em total contraste com a dignidade fundamental de cada ser humano e com o seu direito a ser sempre reconhecido por si próprio e nunca como um instrumento para outra coisa. 

Eutanásia e suicídio assistido 

51. Há um caso particular de violação da dignidade humana, mais silencioso, mas que está a ganhar muito terreno. Tem a particularidade de utilizar uma conceção errada da dignidade humana para a virar contra a própria vida. Essa confusão, muito comum nos dias de hoje, vem à tona quando se discute a eutanásia. Por exemplo, as leis que reconhecem a possibilidade de eutanásia ou de suicídio assistido são por vezes referidas como "leis de morte com dignidade". Existe uma convicção generalizada de que a eutanásia ou o suicídio assistido são compatíveis com o respeito pela dignidade da pessoa humana. Perante este facto, deve ser fortemente reafirmado que o sofrimento não faz com que o doente perca a dignidade que lhe é intrínseca e inalienável, mas pode tornar-se uma oportunidade para reforçar os laços de pertença mútua e para se tornar mais consciente de como cada pessoa é preciosa para toda a humanidade. 

52. De facto, a dignidade da pessoa doente, em estado crítico ou terminal, exige que todos envidem os esforços adequados e necessários para aliviar o seu sofrimento através de cuidados paliativos apropriados e evitando qualquer exagero terapêutico ou intervenção desproporcionada. Estes cuidados respondem ao "dever constante de compreender as necessidades da pessoa doente: a necessidade de assistência, o alívio da dor, as necessidades emocionais, afectivas e espirituais". Mas esse esforço é totalmente diferente, diferente, até mesmo contrário à decisão de eliminar a própria vida ou a dos outros sob o peso do sofrimento. A vida humana, mesmo na sua condição dolorosa, é portadora de uma dignidade que deve ser sempre respeitada, que não pode ser perdida e cujo respeito permanece incondicional. De facto, não há condições sem as quais a vida humana deixa de ser digna e pode, portanto, ser suprimida: "a vida tem a mesma dignidade e o mesmo valor para cada pessoa: o respeito pela vida dos outros é o mesmo que é devido à sua própria existência". Ajudar o suicida a suicidar-se é, portanto, uma ofensa objetiva à dignidade da pessoa que o pede, mesmo que satisfaça o seu desejo: "devemos acompanhar a morte, mas não provocar a morte ou ajudar qualquer forma de suicídio. Recordo que o direito de cuidar e de ser cuidado por todos deve ser sempre privilegiado, para que os mais fracos, nomeadamente os idosos e os doentes, nunca sejam descartados. A vida é um direito, não a morte, que deve ser acolhida, não fornecida. E este princípio ético diz respeito a todos, não apenas aos cristãos ou aos crentes". Como já foi dito, a dignidade de cada pessoa, por mais fraca ou sofredora que seja, implica a dignidade de todos.

O descarte de pessoas com deficiência 

53. Um critério para verificar a atenção efectiva à dignidade de cada pessoa é, naturalmente, a atenção dada aos mais desfavorecidos. Infelizmente, o nosso tempo não se distingue por essa atenção: de facto, está a instalar-se uma cultura do descarte. Para contrariar esta tendência, a condição das pessoas com deficiências físicas ou mentais merece uma atenção e um cuidado especiais. Esta condição de especial vulnerabilidade, tão relevante nos relatos evangélicos, questiona universalmente o que significa ser pessoa humana, precisamente a partir de um estado de deficiência ou incapacidade. A questão da imperfeição humana tem também implicações claras do ponto de vista sócio-cultural, uma vez que, nalgumas culturas, as pessoas com deficiência sofrem por vezes marginalização, se não mesmo opressão, sendo tratadas como verdadeiros "párias". Na realidade, todo o ser humano, qualquer que seja a sua condição de vulnerabilidade, é dotado de dignidade pelo simples facto de ser querido e amado por Deus. Por estas razões, a inclusão e a participação ativa na vida social e eclesial de todos aqueles que, de alguma forma, são marcados pela fragilidade ou pela deficiência devem ser encorajadas na medida do possível. 

54. Numa perspetiva mais ampla, convém recordar que "a caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que está por detrás de todas as acções realizadas a favor dos pobres [...] "preocupar-se com a fragilidade, com a fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da fragilidade significa força e ternura, luta e fecundidade, no meio de um modelo funcionalista e privatista que conduz inexoravelmente a uma "cultura do descarte". [Significa tomar conta do presente na sua situação mais marginal e angustiante, e ser capaz de lhe dar dignidade". Isto gera certamente uma atividade intensa, porque "devemos fazer tudo o que for necessário para salvaguardar a condição e a dignidade da pessoa humana". 

Teoria do género 

55. A Igreja deseja, antes de mais, "reiterar que cada pessoa, independentemente da sua orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, tendo o cuidado de evitar "qualquer sinal de discriminação injusta" e, particularmente, qualquer forma de agressão e violência". Por esta razão, deve ser denunciado como contrário à dignidade humana o facto de, nalguns lugares, não poucas pessoas serem presas, torturadas e mesmo privadas do bem da vida, apenas devido à sua orientação sexual. 

56. Ao mesmo tempo, a Igreja sublinha os elementos críticos decisivos presentes na teoria do género. A este respeito, o Papa Francisco recordou: "o caminho para a paz exige o respeito pelos direitos humanos, segundo a formulação simples mas clara contida na Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo 75º aniversário celebrámos recentemente. Trata-se de princípios racionalmente evidentes e comummente aceites. Infelizmente, nas últimas décadas, as tentativas de introduzir novos direitos, não totalmente compatíveis com os originalmente definidos e nem sempre aceitáveis, deram origem a colonizações ideológicas, entre as quais se destaca a teoria do género, que é extremamente perigosa porque apaga as diferenças na sua pretensão de igualar todos". 

57. No que diz respeito à teoria do género, cuja consistência científica é muito debatida na comunidade dos especialistas, a Igreja recorda que a vida humana, em todas as suas componentes, físicas e espirituais, é um dom de Deus, que deve ser acolhido com gratidão e posto ao serviço do bem. Querer dispor de si mesmo, como prescreve a teoria do género, sem ter em conta esta verdade fundamental da vida humana como dom, não significa outra coisa senão ceder à velha tentação do ser humano de se tornar Deus e entrar em competição com o verdadeiro Deus de amor que nos é revelado no Evangelho.

58. Um segundo aspeto da teoria do género é que ela pretende negar a maior diferença possível entre os seres vivos: a diferença sexual. Esta diferença constitutiva não é apenas a maior que se pode imaginar, mas também a mais bela e a mais poderosa: ela realiza, no casal homem-mulher, a mais admirável reciprocidade e é, portanto, a fonte desse milagre que não pára de nos surpreender, que é a vinda de novos seres humanos ao mundo. 

59. Neste sentido, o respeito pelo próprio corpo e pelo corpo dos outros é essencial face à proliferação e à reivindicação de novos direitos avançados pela teoria do género. Esta ideologia "apresenta uma sociedade sem diferenças de sexo e esvazia o fundamento antropológico da família". É portanto inaceitável que "certas ideologias deste género, que pretendem responder a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurem impor-se como um pensamento único que determina até a educação das crianças". Não se deve ignorar que "o sexo biológico (sexus) e o papel sociocultural do sexo (gender) podem ser distinguidos mas não separados". Por isso, qualquer tentativa de esconder a referência à diferença sexual evidente entre homens e mulheres deve ser rejeitada: "não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências, onde há elementos biológicos impossíveis de ignorar". Só quando cada pessoa humana pode reconhecer e aceitar esta diferença em reciprocidade é que se pode descobrir plenamente a si própria, a sua dignidade e a sua identidade. 

Mudança de sexo 

60. A dignidade do corpo não pode ser considerada inferior à da pessoa enquanto tal. O Catecismo da Igreja Católica convida-nos expressamente a reconhecer que "o corpo humano participa da dignidade da 'imagem de Deus'". Esta verdade merece ser recordada, sobretudo quando se trata de mudança de sexo. De facto, o ser humano é inseparavelmente composto de corpo e alma, e o corpo é o lugar vivo onde a interioridade da alma se desenvolve e se manifesta, inclusive através da rede de relações humanas. Constituindo o ser da pessoa, a alma e o corpo partilham assim da dignidade que caracteriza todo o ser humano. Neste sentido, é preciso lembrar que o corpo humano participa da dignidade da pessoa, pois é dotado de significados pessoais, especialmente na sua condição sexual. É no corpo, de facto, que cada pessoa se reconhece como gerada por outras, e é através do corpo que um homem e uma mulher podem estabelecer uma relação amorosa capaz de gerar outras pessoas. Sobre a necessidade de respeitar a ordem natural da pessoa humana, o Papa Francisco ensina que "o que é criado precede-nos e deve ser recebido como um dom. Ao mesmo tempo, somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de mais, aceitá-la e respeitá-la tal como foi criada". Por isso, qualquer operação de mudança de sexo, regra geral, corre o risco de pôr em causa a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da conceção. Isto não significa que esteja excluída a possibilidade de uma pessoa afetada por anomalias genitais, que já são evidentes à nascença ou que se desenvolvem mais tarde, poder optar por receber assistência médica com o objetivo de resolver essas anomalias. Neste caso, a operação não constituiria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido. 

Violência digital 

61. O avanço das tecnologias digitais, embora ofereça muitas possibilidades para a promoção da dignidade humana, tende cada vez mais a criar um mundo em que a exploração, a exclusão e a violência estão a aumentar e podem mesmo minar a dignidade da pessoa humana. Basta pensar como é fácil, através destes meios de comunicação, pôr em perigo a boa reputação de qualquer pessoa com notícias falsas e calúnias. Sobre este ponto, o Papa Francisco sublinha que "não é saudável confundir a comunicação com o mero contacto virtual. De facto, o ambiente digital é também um território de solidão, manipulação, exploração e violência, até ao caso extremo da dark web. Os meios digitais podem expor as pessoas ao risco de dependência, isolamento e perda progressiva de contacto com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas. Novas formas de violência são difundidas através das redes sociais, por exemplo, o ciberbullying; a Web é também um canal de difusão de pornografia e de exploração de pessoas para fins sexuais ou através de jogos de azar". E é assim que, onde as possibilidades de ligação aumentam, acontece paradoxalmente que o mundo inteiro se encontra, na realidade, cada vez mais isolado e empobrecido nas relações interpessoais: "na comunicação digital, tudo quer ser mostrado e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que sondam, despem e divulgam, muitas vezes anonimamente. O respeito pelo outro é quebrado e, desta forma, ao mesmo tempo que o desloco, ignoro e mantenho afastado, posso invadir descaradamente a sua vida até ao extremo". Estas tendências representam o lado negro do progresso digital. 

62. Nesta perspetiva, se a tecnologia deve servir a dignidade humana e não prejudicá-la, e se deve promover a paz em vez da violência, a comunidade humana deve ser pró-ativa na abordagem destas tendências, no respeito pela dignidade humana e na promoção do bem: "Neste mundo globalizado, "os meios de comunicação social podem ajudar-nos a sentirmo-nos mais próximos uns dos outros, a perceber um renovado sentido de unidade na família humana e a sermos levados à solidariedade e a um compromisso sério com uma vida mais digna para todos. [...] Podem ajudar-nos nesta tarefa, sobretudo hoje, quando as redes de comunicação humana atingiram níveis de desenvolvimento sem precedentes. Em particular, a Internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é bom, é um dom de Deus. Mas é necessário verificar constantemente se as actuais formas de comunicação nos orientam efetivamente para um encontro generoso, para a procura sincera de toda a verdade, para o serviço, para a proximidade dos últimos, para a tarefa de construir o bem comum". 

Conclusão 

63. No 75º aniversário da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Papa Francisco reiterou que este documento "é como uma estrada mestra, na qual foram dados muitos passos em frente, mas faltam ainda tantos e, por vezes, infelizmente, voltamos para trás. O compromisso com os direitos humanos nunca termina! A este respeito, estou próximo de todos aqueles que, sem proclamações, na vida concreta de cada dia lutam e pagam pessoalmente para defender os direitos daqueles que não contam". 

64. É neste espírito, com a presente Declaração, que a Igreja exorta vivamente a que o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de todas as circunstâncias, seja colocado no centro do empenho pelo bem comum e de toda a ordem jurídica. De facto, o respeito pela dignidade de cada pessoa é a base indispensável para a própria existência de qualquer sociedade que se pretenda fundada no direito justo e não na força do poder. É com base no reconhecimento da dignidade humana que são defendidos os direitos fundamentais do homem, que precedem e sustentam toda a convivência civilizada. 

65. A cada pessoa e, ao mesmo tempo, a cada comunidade humana cabe, portanto, a tarefa da realização concreta e efectiva da dignidade humana, cabendo aos Estados não só protegê-la, mas também garantir as condições necessárias para que ela floresça na promoção integral da pessoa humana: "na atividade política é preciso lembrar que 'para além de todas as aparências, cada pessoa é imensamente sagrada e merece o nosso afeto e a nossa dedicação'". 

66. Também hoje, perante tantas violações da dignidade humana que ameaçam gravemente o futuro da humanidade, a Igreja não cessa de encorajar a promoção da dignidade de cada pessoa humana, independentemente das suas qualidades físicas, psíquicas, culturais, sociais e religiosas. Fá-lo na esperança, certa da força que brota de Cristo ressuscitado, que já levou a dignidade integral de cada homem e mulher à sua plenitude definitiva. Esta certeza torna-se um apelo nas palavras do Papa Francisco a cada um de nós: "Peço a cada pessoa neste mundo que não se esqueça daquela dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar". 

O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao Prefeito abaixo assinado, juntamente com o Secretário da Secção Doutrinal do Dicastério para a Doutrina da Fé, a 25 de março de 2024, aprovou a presente Declaração, decidida na Sessão Ordinária deste Dicastério a 28 de fevereiro de 2024, e ordenou a sua publicação. 

Dado em Roma, no Dicastério para a Doutrina da Fé, no dia 2 de abril de 2024, 19º aniversário da morte de São João Paulo II. 

Víctor Manuel Card. Fernández 

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