Teologia do século XX

As etapas de Joseph Ratzinger (II). Prefeito (1982-2005)

Como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger realizou um trabalho imenso e oculto, mas ficou também conhecido pela lucidez das suas palestras, cursos e entrevistas, que desenvolveram a sua contribuição teológica e o colocaram na vida e reflexão da Igreja.

Juan Luis Lorda-2 de Maio de 2022-Tempo de leitura: 7 acta
Ratzinger

Tradução do artigo para inglês

Quando Joseph Ratzinger se tornou Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1982), era um conhecido teólogo alemão, com um corpo de obra não muito grande, um livro de sucesso (Introdução ao Cristianismo, 1968) e um pequeno manual (Escatologia). Em alemão, tinha bastantes artigos e alguns livros. Pouco mais. Era de esperar que o seu trabalho como Prefeito pusesse um fim à sua produção. Além disso, realizou um trabalho intenso e absorvente durante muitos anos (1982-2005): vinte e três, tantos quantos tinha sido professor de teologia (1954-1977). Mas, felizmente, ele não desapareceu como teólogo. E isto deve-se, em primeiro lugar, ao facto de o cargo o ter colocado face a face com as grandes questões levantadas na Igreja; com o que João Paulo II queria fazer; com os problemas doutrinais que chegaram à Congregação, com o trabalho das comissões ecuménicas, da Comissão Teológica Internacional e da Comissão Bíblica Pontifícia, e com as preocupações e consultas do episcopado mundial.

Uma forma de trabalhar

Outro prefeito poderia ter passado a responsabilidade de estudar estes assuntos a peritos teológicos, reservando para si próprio um juízo prudencial final. Tinha outros peritos, mas sendo ele próprio um "teólogo especialista", era obrigado a ter uma mente clara e pessoal sobre estas questões, e a aumentar os seus conhecimentos e desenvolver o seu julgamento. E teve de explicar isto nos vários fóruns de trabalho da congregação e nas reuniões dos bispos. Por exemplo, em 1982, deu um curso para Celam sobre Jesus Cristo; e em 1990, outro para os bispos do Brasil sobre a situação da catequese, recolhido em La Iglesia, una comunidad siempre en camino (A Igreja, uma comunidade sempre a caminho) (1991). A maioria destes discursos, conferências, cursos e contribuições para homenagens (Festschrift) foram escritos por ele, em contraste com o que é normal neste tipo de posição. Foram escritas a lápis e em letra pequena. E ele editá-las-ia para publicação. Depois, com notável perseverança, juntava-os em livros com uma certa unidade temática, retocando-os novamente e explicando cuidadosamente a origem de cada texto. Desta forma, os fios da história, que tinham corrido desde o seu tempo como professor, foram desenvolvidos, enriquecidos e coordenados ao longo dos anos. Como resultado, o seu trabalho não é uma colecção de escritos ocasionais para sair do caminho, mas um poderoso corpo de pensamento sobre os grandes temas.

Um impacto mediático

É certo que, dada a sua personalidade e timidez, ele nunca pensou numa estratégia mediática. No entanto, isso aconteceu. A primeira foi uma entrevista surpresa em livro, Informe sobre la fe (1985), sobre a aplicação do Conselho, respondendo ao jornalista Vittorio Messori. Desconfortável, porque ainda era de mau gosto nos círculos eclesiásticos insinuar que algo tinha corrido mal, apesar das tremendas estatísticas. Ninguém quis dar razões para a reacção tradicionalista. Mas Joseph Ratzinger não estava de acordo com este estúpido esquema de duas faces. Não tinha dúvidas quanto ao valor do Conselho, mas tinha dúvidas quanto às derivas. Mais tarde, a nova revista 30Giorni, publicada pela Comunione e Liberazione, que começou em 1988 e fechou em 2012, divulgou as suas conferências e entrevistas em muitas línguas, gerando um interesse crescente, e mais tarde reuniu-as em Being Christian in the Neo-Pagan Age (1995). Em 1996, publicou uma entrevista com Peter Seewald, O Sal da Terra, e em 2002, Deus e o Mundo, o que lhe permitiu expressar-se com franqueza e simplicidade. Em 1998, quando já era uma personalidade bem conhecida e as suas conferências estavam a aumentar, apareceu Zenit, que as traduziu e imediatamente as distribuiu na Internet em muitas línguas. Isto ajudou a multiplicar o número de edições dos seus livros, porque tudo era de interesse. E obras e sermões menores do seu tempo como professor e do seu tempo como bispo de Munique foram recuperados. Num momento difícil para a Igreja, o Cardeal Ratzinger tinha-se tornado a mente de referência para muitas questões intelectuais, acompanhando o trabalho de renovação de João Paulo II. E isto cresceu até ele ser eleito Papa em 2005.

Desta forma, passou de algumas obras conhecidas (sobretudo, Introdução ao Cristianismo) para uma considerável colecção de livros em muitas línguas, com uma certa dispersão de títulos. Estes materiais foram então sistematicamente reorganizados de novo para as suas Obras Coleccionadas (O.C.).

Trabalho na Congregação

O seu trabalho na Congregação foi, acima de tudo, seguir o Papa S. João Paulo II nos seus esforços. Especialmente nas encíclicas de maior empenho doutrinário: Donum vitae (1987), sobre a moralidade da vida; Esplendor Veritatis (1993), sobre os fundamentos da moralidade católica; e Fides et ratio (1998), bem como o Catecismo da Igreja Católica (1992). Em cada um destes documentos, há muito trabalho anterior e importantes comentários posteriores do então Cardeal Ratzinger. Sobre as encíclicas e questões morais, por exemplo, o livro A fé como caminho (1988). Todo o movimento de João Paulo II e as suas iniciativas sobre o milénio, a purificação da memória histórica, os sínodos temáticos, e as relações ecuménicas exigiram-lhe muito trabalho. Também teve de lidar com os aspectos mais duros da Igreja, os pecados graves do clero, que foram então reservados para a Congregação para a Doutrina da Fé. Era sua tarefa clarificar e lidar com toda a crise de pederastia, intervir nos casos, exigir investigações, renovar os protocolos de acção e promover a expressão canónica apropriada. Além disso, existiam seis grandes áreas de tensão doutrinal, que exigiam muito discernimento teológico. Dividimo-los em dois grupos: os que têm a ver com a coerência da teologia católica, e os que têm a ver com o diálogo ecuménico e o diálogo com outras religiões.

Discernimentos sobre a Teologia Católica

1. A cultura moderna produziu e ainda produz perguntas sobre questões doutrinárias e morais, com tudo o que é incómodo acreditar (Divindade e Ressurreição de Cristo, presença eucarística, escatologia, anjos...) ou praticar (moralidade sexual, questões de género, não ao aborto e à eutanásia). Exigiram esclarecimentos constantes, tais como, entre muitos, a carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis (1994) sobre a impossibilidade do sacerdócio feminino; e correcções: Küng, Schillebeeckx (1984), Curran (1986)..., que foram discutidas com os autores, e distorcidas sem limites nos meios de comunicação social.

2. Durante o Conselho houve uma certa transferência de autoridade doutrinal dos bispos para os peritos e teólogos. Isto por vezes encorajou um protagonismo desequilibrado. Pois a fé não se baseia em especulações teológicas, e é melhor expressa na Liturgia e na oração dos fiéis do que nos gabinetes. Assim nasceu a Instrução Donum veritatis, sobre a vocação eclesial do teólogo (1990). Com os seus comentários e outros escritos, o Cardeal comporia A Natureza e a Missão da Teologia (1993).

3. também dizia respeito à interpretação autêntica do Conselho, se deveria ser feita a partir da "letra" aprovada ou do "espírito" do Conselho, encarnado antes em alguns teólogos, uma proposta chocante do historiador Alberigo. De outro ponto de vista, houve a crítica de Lefevbre ao Conselho, que ocupou muito o Prefeito, tentando evitar um cisma. Para além do Relatório sobre a Fé, Joseph Ratzinger já tinha escrito muito sobre a contribuição do Conselho. É tudo recolhido no volume XII das suas obras completas (2 volumes em espanhol).

4. Por outro lado, a ideologia comunista, com pontos de contacto com a alma cristã (preocupação pelos pobres) mas com pressupostos e métodos muito distantes, empurrada para uma revolução total, redentora e utópica, e não para ONGs modestas e transformadoras, que só voltariam a emergir depois do vendaval ideológico. Além disso, na situação social explosiva de alguns países da América Latina, tinha dado fuga às Teologias da Libertação e aos compromissos revolucionários que conseguiram derrubar governos e desastrosos na gestão das nações. Era necessário discernimento, o que foi feito nas Instruções Libertatis nuntius (1984) e Libertatis conscientia (1986). Para além de corrigir o trabalho de Leonardo Boff (1985), que não o admitiu, e de dialogar com Gustavo Gutiérrez, que nunca teve um processo e evoluiu.

Discernimentos no ecumenismo e com outras religiões

1. As relações ecuménicas exigiam esclarecimento: primeiro com os anglicanos, depois com os ortodoxos, especialmente sobre o significado da comunhão das Igrejas particulares na Igreja universal e sobre o Primado. Com os protestantes, chegou-se a um acordo histórico, com nuances, sobre a clássica questão da justificação (1999), e discutiu-se o sacramento da Ordem Sagrada. A noção de "comunhão" (e o seu exercício), muito importante na teologia do século XX, é crucial para que os ortodoxos possam compreender-se a si próprios em comunhão com a Igreja Católica, para além das dificuldades históricas e de mentalidade. Daí a Carta Communionis notiosobre alguns aspectos da Igreja considerados como comunhão (1992). Está relacionado com muitos dos escritos anteriores e posteriores do Cardeal sobre eclesiologia e ecumenismo (volume VIII do seu O.C.).

2. O dinamismo da vida cristã, especialmente na Índia, mas também em África, exigia uma mente sobre o valor das religiões, o sincretismo religioso e o lugar de Cristo e da Igreja, também sobre a inculturação litúrgica. A carta Orationis formae (1989) sobre a forma de oração cristã, e a notificação sobre os escritos de De Mello (1998) qualificaram possíveis sincretismos. Por outro lado, o Declaração Dominus IesusA Declaração sobre a Unidade e Universalidade Salvífica de Jesus Cristo e a Igreja (2000) lançou as bases teológicas para o diálogo da Igreja com as religiões do mundo no início do terceiro milénio. O Cardeal trabalhou extensivamente sobre este tema, tanto antes como depois da Declaração. Destacam-se as suas palestras na Sorbonne (1999). Com este e outros, publicou Fé, Verdade e Tolerância. O cristianismo e as religiões do mundo (2003).

Três temas principais

Na mente do prefeito e do teólogo havia, no entanto, três outros temas. A primeira é a Liturgia que, na sua experiência crescente, é a alma da vida da Igreja, onde ele expressa a sua fé. Ele reúne as muitas intervenções sobre temas litúrgicos, relançadas durante o seu tempo como bispo de Munique. Além disso, ele é capaz de compor um novo ensaio, O espírito da liturgia. Uma introdução (1999) sobre a essência e a forma da liturgia e o papel da arte. Em paralelo, ele compila a sua pregação sobre as estações litúrgicas e santos. E reafirma que a verdadeira teologia deve tirar a sua experiência da santidade. Eles compõem o volume XIV do seu O.C. Depois há a sua preocupação com a nova exegese, da qual aprendeu muito, mas que sente mediar demasiado entre a Bíblia e a Igreja, e que pode alienar a figura de Cristo.

O documento da Pontifícia Comissão Bíblica sobre a Bíblia sobre Interpretação da Bíblia na Igreja (1993) não o entusiasmou. Aproveitou o doutoramento honoris causa na Universidade de Navarra para falar sobre o lugar da exegese em teologia (1998). E durante anos moldou uma "Cristologia Espiritual" com uma exegese crente. Ele já tinha publicado Miremos al traspasado (1984) com o curso Celam sobre Jesus Cristo (1982) e outros belos textos sobre o Coração de Jesus. E no livro Un canto nuevo para el Señor (1999), assim como material sobre liturgia, recolheu dois cursos sobre Cristo e a Igreja (um no Escorial, 1989); também justificou a figura viva do Senhor em Caminos de Jesucristo (2003). Ele quer reformar-se para escrever esta "Cristologia Espiritual", com uma formação exegética adequada, mas só o poderá fazer, por vezes, quando for Papa.

Finalmente, em conferências a pedidos específicos, desenvolve um "novo pensamento político" sobre a situação da Igreja no mundo pós-cristão. Ele recolhe-os em vários livros: em Verdade, valores, poder. As pedras de toque da sociedade pluralista (1993); em Europa, raízes, identidade e missão (2004), onde entre outras coisas há o famoso diálogo com Jürgen Habermas (2004); e em O cristão na crise da Europa (2005), com a sua última conferência em Subiaco, na véspera das eleições papais.

Surgem temas famosos: "a ditadura do relativismo", a necessidade de um fundamento moral pré-político ("etsi Deus daretur"), a conveniência de "alargar a razão" face às pretensões redutoras do método científico, e também que as novas ciências funcionem, de facto, com "outra primeira filosofia".

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