Teologia do século XX

Tradição e tradições

A crise pós-conciliar mostrou uma dialéctica entre o progressivismo, que queria outro Concílio "actualizado com os tempos", e o tradicionalismo, ferido pelas novidades do Vaticano II ou do período pós-conciliar. Entre os rótulos que requerem discernimento está a noção católica de Tradição.

Juan Luis Lorda-24 de Outubro de 2022-Tempo de leitura: 8 acta
tradição

"Tradição" é uma palavra muito importante no vocabulário cristão. Num sentido muito amplo, mas muito autêntico e completo, pode dizer-se que para a fé cristã a tradição é a mesma que a Igreja. Contudo, a Igreja não deve ser identificada aqui com a sociologia eclesiástica, os homens e os representantes da Igreja, mas com a Igreja como o mistério de fé e salvação de Deus que percorre a história até à sua consumação no céu. A Igreja entendida como o Corpo de Cristo, "le Christ repanduO Cristo expandido, como Bossuet alegremente lhe chamou. E animada, ontem e hoje, pelo Espírito Santo.

Isto representa o conceito mais completo da tradição, como Joseph Ratzinger deixou claro a partir do seu trabalho no Conselho para os seus discursos como Papa. A partir da brilhante palestra Ensaio sobre o conceito de tradição (1963), publicado juntamente com outro dos escritos de Rahner na brochura Revelação e tradiçãoà sua breve e bela audiência geral sobre Tradição como comunhão no tempo (26 DE ABRIL DE 2006). Para além de muitas outras contribuições sobre Teologia Fundamental, o seu primeiro tema de especialização, recolhido no volume IX das suas Obras Coleccionadas. 

Os "monumentos" ou testemunhos da tradição 

Contudo, o Senhor não deixou a sua Igreja com um sistema simples para o consultar sobre a fé ou sobre o que Ele quer de nós. Ao contrário de alguns cultos actuais, tais como o budismo, não temos "oráculos" que possam entrar em transe ou comunicação directa e falar em nome de Deus. Isto porque a revelação já foi plenamente revelada em Cristo, pelo que não haverá mais profetas ou novas revelações essenciais, embora haja novas luzes. 

Se quisermos saber no que devemos acreditar ou o que devemos fazer, temos todo o longo testemunho histórico da Igreja, na sua Liturgia, ensino, direito, e na vida dos santos. E as Sagradas Escrituras. Aí encontramos aquilo em que a Igreja acredita e vive. São os "monumentos" ou testemunhos da tradição ou da vida da Igreja. Evidentemente, neste imenso tesouro e património nem tudo ocupa o mesmo lugar ou tem a mesma importância.

Tradições na vida humana

Os seres humanos são mortais, mas as sociedades são menos mortais do que os indivíduos. Sobrevivem preservando e transmitindo (tradição) a sua identidade e funções. Isto faz da "tradição" um fenómeno humano vital e profundamente enraizado, que só podemos mencionar aqui porque também é influente. As sociedades e corporações humanas transmitem a sua cultura particular: as suas formas eficazes de organização e trabalho, mas também outros costumes e hábitos acessórios que servem de ornamentação e sinais de identidade. Cidades e famílias celebram festivais e repetem periodicamente costumes que dão cor e perfil à vida. E acarinham-nos como parte da sua identidade e pertença, e frequentemente como parte do vínculo e gratidão que sentem para com os seus antepassados. 

Tradições na vida da Igreja

Na Igreja, com uma extensão tão grande e antiga, há e têm havido muitos usos e costumes que são e têm sido amados pelos fiéis, encorajam a sua adesão e sublinham a sua identidade: festas, procissões, canções, vestes, comidas tradicionais... Usos tais como cruzar-se em certas ocasiões ou aspergir com água benta. E muitos outros. 

Mas o que é mais central à tradição da Igreja é o que recebemos do Senhor: o Evangelho. Uma mensagem de salvação, que é também um modo de vida. Para o especificar mais em termos familiares, deu-nos uma doutrina, uma moral e uma liturgia, com a celebração da Eucaristia e dos sacramentos. De facto, indo para o centro, o próprio Senhor se entregou a nós. "Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho". (Jo 3:16). Porque acreditamos Nele, vivemos Nele e oferecemos o que Ele mesmo oferece, a Sua morte e ressurreição. A fé cristã, a moral e o culto estão centrados em Cristo. O que sabemos é principalmente por causa Dele, o que vivemos está Nele e com Ele. Portanto, a coisa mais "tradicional" que pode haver na Igreja é estar unido a Cristo e "manter a sua palavra" ou a sua mensagem (cf. Jo 14,23). 

O Senhor deu o seu Espírito e a sua Mãe à sua Igreja

O Senhor entregou-se pela sua Igreja, deu-lhe a sua Palavra, o seu Evangelho, mas também lhe deu o seu Espírito. Isto cria uma relação interessante entre Palavra e Espírito. A mensagem cristã é interpretada, vivida e desenvolvida no Espírito. E tem sido assim desde o início pela vontade do Senhor, que viveu apenas três anos com os seus discípulos. "O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e trará à vossa memória tudo o que eu vos disse". (Jo 14:26). O Espírito Santo moldou a Igreja primitiva desde que ela surgiu como uma nova Eva do lado do Senhor que morreu na cruz, como os Padres gostam de recordar. Esta presença do Senhor na sua Igreja, com a sua Palavra e o seu Espírito, significa que a tradição não pode ser considerada como uma mera colecção de costumes, nem como uma memória do passado. Está vivo no presente.

E entre estes dons do Senhor, também nos deu da Cruz a sua Mãe, intercessora e modelo, que ocupa um lugar tão importante na primeira comunidade cristã e mais tarde na comunhão dos santos. E dá o estilo e o tom adequados da vida cristã, feita com um rosto para Deus e uma mistura de simplicidade, piedade, gratidão, dedicação e alegria, como se pode ver no Magnificat

Etapas iniciais da tradição

Em 1960, Yves Congar publicou um importante estudo histórico sobre a Tradição e tradições. Ensaio históricoSeguiu-se uma segunda parte teológica (1963) e um resumo, Tradição e a vida da Igreja (1964), os três traduzidos para o espanhol. Na primeira parte, ele estuda as grandes etapas históricas da tradição.

Nos primeiros passos da Igreja, nos tempos apostólicos, com a ajuda do Espírito, foi organizada a celebração da Eucaristia, dando origem às primeiras, diversas e legítimas tradições litúrgicas do mundo, do Oriente e do Ocidente. Os Evangelhos foram escritos. E a estrutura eclesiástica desenvolveu-se: bispos, sacerdotes e diáconos. "Pareceu-nos a nós e ao Espírito Santo". os Apóstolos declararam ao tomarem as primeiras decisões (Actos 15, 28-30). A Igreja primitiva está consciente de ter recebido um "depósito" de doutrina e vida. E é de notar, a propósito, que esta primeira tradição é anterior ao Novo Testamento, que é um dos seus primeiros frutos.

Seguiu-se um período patrístico em que as várias Igrejas se consultaram sobre as tradições recebidas, face às dúvidas sobre o cânone das Escrituras, as formas de vida cristã ou os problemas doutrinários causados por aberrações e heresias. O critério doutrinário formulado por São Vicente de Lerins no seu Conmonitorium: "Aquilo em que sempre se acreditou, em todo o lado e por todos".: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus. A Idade Média irá recolher e estudar este legado. 

Tradição e Protestantismo

Lutero foi um grande avanço. Escandalizado por certos abusos eclesiásticos, ele rejeitou em bloco a "tradição" como suspeita. Ele escolheu a Escritura como único critério da verdade cristã: Sola Scriptura. O que não existe é invenção humana, que pode ser legítima, mas não é revelação de Deus e não tem nem o seu valor nem a sua autoridade. Ao fazê-lo, realizou uma enorme "poda", que afectou tanto questões secundárias como centrais: o valor sacrificial da Missa, o purgatório, o sacramento da Ordem, a vida monástica....

O Concílio de Trento quis responder com uma autêntica reforma da Igreja e também com uma maior precisão de doutrina. Defende a ideia de que as doutrinas cristãs se baseiam tanto na Escritura como na Tradição. Isto dá origem à ideia de que existem duas fontes de revelação, ou dois lugares onde se pode procurar como é. Dentro da tradição um lugar importante é ocupado pelo Magistério da Igreja que, ao longo dos séculos, definiu com autoridade a doutrina cristã e corrigiu erros, desde os primeiros Credos de Nicéia e Constantinopla.

Ao pensar no método teológico, Melchior Cano postula que as verdades da fé são argumentadas recorrendo a lugares teológicos ou "monumentos" da tradição. A teologia manualista abraçaria este método e, até ao século XX, justificaria teses teológicas com citações das Escrituras, da tradição dos Padres e do Magistério.

Contribuições subsequentes

A crise protestante faz da tradição uma grande questão "católica", que precisa de ser aprofundada e bem defendida.

O grande teólogo católico de Tübingen, Johann Adam Möhler, dedica um grande esforço a comparar o catolicismo com o protestantismo, e difunde a ideia de uma "tradição viva", precisamente devido à constante e misteriosa acção do Espírito Santo na Igreja.

Pela sua parte, o teólogo anglicano de Oxford John Henry Newman estudou se havia um desenvolvimento legítimo da doutrina cristã na história, precisamente para ver se os pontos que Lutero tinha retirado do dogma podiam ser justificados. E quando ele conclui que podem, torna-se católico e publica o seu Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã (1845).

Franzelin, com a Escola Romana, acrescentou algumas distinções oportunas entre o sentido objectivo (o depósito das doutrinas) e o sentido activo da tradição (a vida no Espírito), e entre o que é tradição divina, apostólica e eclesiástica, de acordo com a sua origem.

Em meados do século XX, o Concílio Vaticano II dedicou o seu primeiro documento (Dei Verbum) aos grandes temas do Apocalipse e, em resumo, explicou de forma bela e matizada a profunda relação entre Escritura, Magistério e Tradição.

No momento presente 

Desde o final do século XX, a Igreja Católica tem vindo a experimentar algumas reacções tradicionais ou tradicionalistas que merecem atenção. Por um lado, a separação da Igreja e do Estado nas antigas nações católicas da Europa (e América) continua, fazendo com que os cristãos tradicionais sofram ao verem os costumes e práticas cristãs desaparecerem do seu seio.

A este processo, em meados do século XX, foi acrescentada a forte crise pós-conciliar, não desejada nem provocada pelo próprio Conselho, mas por uma espécie de aplicação anárquica, onde os ventos do momento sopraram. Por um lado, a pressão marxista empurrando a Igreja para um compromisso revolucionário. Por outro lado, o espírito dos tempos que exigia a eliminação de tudo o que fosse "estranho", "aborrecido" ou "antiquado".

Os cristãos mais tradicionais sofreram especialmente com a arbitrariedade litúrgica, que muitas vezes foi muito mais o resultado de modas clericais improvisadas do que do espírito do Concílio, que procurou acima de tudo uma participação mais profunda dos fiéis no mistério pascal de Cristo.

Como esta crise tem sido tão complexa e difícil de julgar, a reacção tradicionalista lança uma suspeita geral sobre todos os factores: teologia, Conselho, Papas, reforma litúrgica..., atribuindo obscuramente responsabilidades a um ou outro (modernistas, maçons livres...). Ele compreende que, de uma forma ou de outra, a tradição católica foi quebrada. E tenta regressar à forma como a Igreja viveu nos anos cinquenta do século XX.

Neste processo, a posição de Monsenhor Lefebvre foi especial na medida em que considerou que o Conselho era herético pela sua mudança de critérios sobre liberdade religiosa (Dignitatis humanae). Esta questão é importante, mas tem pouco impacto, porque é incompreensível para a maioria que, além disso, concordaria involuntariamente com a doutrina conciliar, com o direito básico à liberdade de consciência e com a não discriminação por motivos religiosos. Na prática, portanto, os seus sucessores juntam-se às mesmas críticas, ao mesmo remédio e à mesma estética: apagar as últimas décadas e devolver a vida da Igreja aos anos 50. Mas numa posição cismática bastante insustentável (ser mais Igreja que a Igreja) que, como a história mostra, dificilmente evoluirá bem se for mantida.

Este processo parece exigir um discernimento considerável.

É necessário compreender as causas da crise pós-conciliar para aprender com ela, para evitar atribuições falsas, para encontrar remédios justos, e para continuar o processo de recepção autêntica da doutrina do Conselho e, especialmente, da sua renovação litúrgica. 

-É necessário defender a verdadeira ideia de tradição na Igreja, distinguindo o que é nuclear (o que Cristo mesmo nos deu com o Espírito Santo) do que são usos e costumes secundários ou mesmo acessórios, variados e ricos em história. Pois não é a mesma coisa depender de uma coisa como de outra. E errar nisto não contribuiria para melhorar as coisas, mas sim para as tornar piores. Nós cristãos podemos amar algumas festas, algumas vestes, alguns ritos, alguns costumes, alguma história, mas acima de tudo amamos o Senhor presente na sua Igreja.
-Há um pluralismo legítimo na vida da Igreja que deve ser respeitado e que, infelizmente, em muitos casos, não foi respeitado no processo de implementação do Concílio, causando feridas desnecessárias e destruindo ingenuamente um património de piedade tradicional que, se nem sempre é perfeito (nada é perfeito à parte de Deus), era no entanto autêntico. No entanto, precisamente porque a tradição está viva e animada pelo Espírito Santo, é hoje capaz de gerar novas formas de vida cristã, legítimas, belas e satisfatórias, que não entram em controvérsia com outras, mas são acrescentadas a uma magnífica herança multi-secular.

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