Teologia do século XX

A renovação da Escatologia

Ao longo do século XX, uma multiplicidade de inspirações de vários tipos transformou o conteúdo e a importância deste tratado sobre a vida após a morte e "as últimas coisas". Passou de ser mais ou menos marginal para estar no centro da teologia. 

Juan Luis Lorda-31 de Maio de 2022-Tempo de leitura: 7 acta
escatologia

No século XX, dois tratados teológicos (deixando de lado a exegese) reivindicaram assumir toda a teologia. Uma delas é a Teologia Fundamental, porque afirmava ser a justificação para todas as questões de teologia. A outra, mais minoritária, é a escatologia, quando defende que toda a mensagem cristã é e deve ser escatológica. Estas são abordagens bastante antitéticas. A reivindicação da Teologia Fundamental provém das exigências da razão, por vezes da razão académica. A afirmação da Escatologia, por outro lado, é sobretudo de inspiração teológica. O primeiro pode errar do lado do racionalismo. O segundo, nos seus extremos, pode apontar para a utopia. Isto leva à conclusão de que eles são necessários para se compensarem mutuamente.

Jesus Cristo, o centro da Escatologia

A escatologia é verdadeiramente abrangente, porque o próprio Cristo apresentou o seu Evangelho anunciando o Reino que está para vir. E também porque a essência do cristianismo, nas palavras de Guardini, é uma pessoa, Jesus Cristo. Mas Jesus Cristo na sua plenitude, e por isso ressuscitou. Vivemos em tensão em direcção à Parousia. E tanto na Liturgia como na acção cristã: esperamos que o Senhor venha agora e no fim. 

Alguns teólogos protestantes sublinharam que a teologia tinha de se concentrar no Jesus Cristo ressuscitado (Karl Barth), e alguns tornaram-na mais concreta para a escatologia (Althaus, O lezten Dinge). Jesus Cristo é a causa, o modelo e o antegosto do ser humano na sua plenitude, como mostra S. Paulo. 

Os manuais católicos tinham dividido a escatologia em duas partes: individual e final. Na primeira parte trataram do problema da morte (com o problema, talvez, da alma separada), do julgamento e dos três estados possíveis (céu, inferno e purgatório), acrescentando por vezes uma reflexão sobre a bem-aventurança. Na segunda parte, a escatologia final, trataram da segunda vinda de Cristo com os seus sinais, a ressurreição do corpo e os novos céus e a nova terra. Como estes assuntos eram mais misteriosos, era uma espécie de apêndice. A escatologia estava centrada no fim de cada pessoa. Foi mesmo perguntado se a ressurreição dos corpos acrescentou alguma coisa, e a resposta foi uma certa glória acidental. Isto contrastou com a ideia de que a ressurreição de Cristo é o acontecimento essencial do cristianismo e deve ser o centro da escatologia.

Inspirações da Escritura

Muitos pontos salientados por Exegesis contribuíram para a mesma linha. Antes de mais, é claro, a centralidade de Cristo. Depois, o facto de que a pregação de Cristo foi escatológica desde o início: ele anunciou um Reino, cujo fermento neste mundo é a Igreja. Isto dá um tom escatológico a toda a proclamação cristã e a toda a sua história. 

E não é sobretudo uma questão individual, mas é realizada no Corpo de Cristo na história, que é a Igreja. Primeiro em Jesus Cristo, que "Ele ressuscitou dos mortos como as primícias dos que adormeceram". (1 Cor 15,20) e neste movimento arrasta ao longo do seu Corpo místico e mesmo toda a criação, "que espera com ardente anseio pela manifestação dos filhos de Deus". (Rm 8,19). A revelação de Deus é ao mesmo tempo a história do Pacto, a história da salvação e também a história do Reino. O Reino (com Cristo no centro) é o grande tema da escatologia e percorre toda a história da salvação. 

Endossos patrísticos e litúrgicos

Era necessário dar a volta ao tratado: começar com a ressurreição de Cristo, os primeiros frutos, promessa e causa da nossa ressurreição; falar da história da salvação ou do Reino, e da realização da Igreja; e dar a toda a mensagem cristã e toda a teologia esta tensão escatológica. Além disso, ela é eminentemente expressa na Liturgia, em cada Eucaristia, onde a Páscoa do Senhor é renovada até ao seu regresso. E no ano litúrgico, desde o Advento até à última semana do Tempo Comum, a segunda vinda de Cristo (Cristo Rei e Juiz da História).

O contacto entre a escatologia e a liturgia foi muito enriquecedor para ambos os tratados. Na verdade, estas relações agora redescobertas já estavam presentes nos Padres da Igreja. Foi mais uma manifestação de um efeito comum na história da teologia. O escolasticismo tinha-se concentrado no estudo da realidade das coisas com a ontologia herdada de Aristóteles; a alma separada, a contemplação, a condição dos corpos ressuscitados, também a "res" dos sacramentos ou da Igreja como uma realidade social. Essa foi a sua contribuição. Mas ele não tinha método para lidar com a dimensão simbólica. Essa foi a sua omissão. Ao reconectar-se com a teologia patrística (e também com a teologia oriental, que é patrística por tradição), as abordagens foram renovadas. 

Uma novidade: a teologia da esperança

Outra inspiração veio de uma direcção completamente diferente. Já o grande intelectual cristão russo Nicolai Berdiaev (1874-1948) tinha avisado que o marxismo é uma espécie de heresia cristã e que tinha secularizado a sua esperança, prometendo um céu na terra. Um crítico pensador marxista, Ernst Bloch (1885-1977), notou precisamente isto no seu volumoso ensaio O princípio da esperança (1949). E identificou a esperança como o impulso fundamental da vida humana, que necessita de um futuro. Ou é mesmo futuro, porque tem de ser realizado como pessoa e, acima de tudo, como sociedade (que é o que é permanente). Neste sentido, não é uma questão de ser, mas de se tornar. É por isso que a esperança e, na mesma medida, a utopia como objectivo são as chaves para se ser humano.

A ideia impressionou um então jovem teólogo protestante, Jürgen Moltmann, que reviu o livro e o discutiu com Bloch. A crítica que se podia fazer a Bloch era óbvia: a esperança é de facto a grande força motriz da psicologia humana, mas o Reino na Terra é impossível, porque nem a morte nem as limitações e falhas humanas podem ser ultrapassadas. Para além do facto de que toda a esperança pessoal realmente desaparece para se imolar em benefício de um reino social. Mas por muito que se faça, é impossível neste mundo passar da facticidade à transcendência. Aqui há sempre algo a ser feito, e nunca saímos dele, por muito que melhoremos. Com todos os paradoxos que podem surgir, além disso, sobre o que significa realmente uma melhoria.

Mas era evidente que Bloch tinha toda a razão. A esperança é uma força motriz, o ser humano é a esperança. A esperança secular não tem um objectivo credível, mas a esperança cristã tem. Aceitando as inspirações acima mencionadas e o desafio de Bloch, Moltmann construiu o seu Teologia da esperança (1966). E teve um enorme impacto. Tornou-se claro que uma escatologia é, no final, uma teologia da esperança, e vice-versa. A esperança já não era a irmã mais nova das outras duas virtudes, pois Péguy tinha poetizado (O pórtico do mistério da segunda virtude). 

Moltmann sempre foi um homem de palavras fáceis e de grandes perspectivas, mas talvez tenha o problema oposto ao escolasticismo. No escolasticismo, a atenção à realidade levou a desconsiderar o simbólico. Aqui, por vezes, a atenção ao simbólico pode levar ao desapego da realidade. É isso que tende à mitologia... A ressurreição de Cristo é real e não apenas uma espera no futuro onde ela tem de ser revelada. 

O lugar da utopia

Entre outras coisas, a "teologia da esperança" colocou o papel das utopias como a força motriz da história humana. Precisamente quando o marxismo se tinha espalhado como uma ideologia planetária, quando tinha alcançado várias simbioses com o pensamento cristão e quando se tinha tornado claro que não era o céu. Seria uma das inspirações para a teologia da política e da teologia da libertação de Metz. 

Precisamos de utopias, uma certa esquerda cristã irá mais tarde repetir nostalgicamente, tentando de passagem justificar um passado bastante imperfeito (e em muitos casos criminoso). Mas a utopia de Thomas More, que foi a primeira, não matou ninguém. E a utopia marxista matou muitos milhões. Daí a reacção pós-moderna: não queremos grandes narrativas, que são muito perigosas. A gestão da utopia requer discernimento, mas, acima de tudo, uma aceitação profunda do grande princípio moral de que o fim utópico não justifica os meios; não se pode fazer nada em nome da utopia. 

Manual de Joseph Ratzinger

Com todo este fermento de ideias, o então teólogo e mais tarde papa ensinou escatologia, entre outras disciplinas, em Regensburg. E compôs um pequeno manual (1977) com muitas coisas inteligentes e bem julgadas. Como ele assinala no prefácio, o manual tem duas preocupações. Por um lado, congratula-se com o esforço de recentrar a escatologia em Cristo, o impulso da teologia da esperança, e discerne as suas consequências políticas e históricas. Também qualifica a ideia de que a morte é um momento de plenitude, como Rahner tinha querido apresentá-la; pois, pelo contrário, a experiência é o oposto. 

Mas contém uma novidade notável. Trata do tema da alma separada, que é difícil de apresentar no nosso contexto científico moderno. É ajudado pela inspiração da filosofia dialógica de Ebner e Martin Buber, que a formula de forma mais persuasiva. De um ponto de vista cristão, o ser humano é um ser feito por Deus para um relacionamento amoroso com Ele para sempre. Esta é a base teológica para compreender a sobrevivência das pessoas (da alma) para além da morte. Não depende da plausibilidade actual das antigas demonstrações da alma ou da visão de Platão. A mensagem cristã tem a sua própria base neste "personalismo dialógico", o que também nos permite mergulhar no que significa ser uma pessoa. Este tema, que já é apontado no Introdução ao Cristianismo, foi uma bela contribuição do manual de Joseph Ratzinger, mesmo que não seja o seu original. Mas deu-lhe força e divulgação. 

Os problemas da alma separada  

Na verdade, o estado da alma separada entre a morte e a ressurreição é uma questão complexa. São Tomás de Aquino tinha-o visto, e sobre este assunto tem um quaestio disputata. Deve haver uma sobrevivência, caso contrário cada ressurreição, mesmo a de Cristo, seria uma recriação. Mas essa alma é privada dos recursos psicológicos da sensibilidade, e por isso o seu tempo subjectivo não pode ser contínuo como o tempo que vivemos com o corpo. São Tomás também viu isto. Portanto, é possível pensar numa certa proximidade subjectiva entre o momento da morte e o momento da ressurreição. Alguns autores católicos identificaram os dois momentos (Greshake), mas isto não é possível, porque existem acontecimentos intermédios, tais como o julgamento e as relações da comunhão dos santos. Mas não se pode pensar nisso com a nossa experiência, porque a alma já está perante Deus que trabalha sobre ela. Não é uma sobrevivência natural, mas uma situação escatológica. 

Curiosamente, enquanto a questão da alma separada é difícil de apresentar a um público bastante materialista, a crença na reencarnação ou na metempsicose tem crescido, por osmose cultural das convicções budistas ou hindus. E exige atenção.   

E a teologia da história

Paralelamente a estes desenvolvimentos na escatologia, o século XX testemunhou uma abundante reflexão sobre a teologia da história, que dificilmente interagiu com o tratado, mas que merece ser tomada em consideração. 

A tese do filósofo judeu Karl Löwitz sobre a teologia da história de Agostinho e os seus ensaios sobre história e salvação e sobre o significado da história são bem conhecidos. Também Berdiaev, citado acima, tem um notável ensaio sobre O significado da história. E o grande historiador francês Henri Irenée Marrou. Por outro lado, temos O mistério do tempopor Jean Mouroux. E a Mistério da históriapor Jean Daniélou. E a Filosofia da históriapor Jacques Maritain, que vê tanto o bem como o mal crescerem ao mesmo tempo. E a Teologia da históriapor Bruno Forte, cuja teologia é construída precisamente a partir da história. E, por outro lado, essa atenção ao utopismo, que Henri De Lubac, no seu ensaio sobre A posteridade espiritual de Joachim de Fiore. E Gilson, em As metamorfoses da cidade de Deus.

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