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O que é o Direito Canónico e para que serve?

O autor analisa a essência do direito canónico como uma realidade profundamente ligada ao mistério e à missão da Igreja. Sublinha a necessidade de ultrapassar as dicotomias entre direito, teologia e pastoral, entendendo o direito eclesial como um instrumento que promove a justiça, a comunhão e a salvação.

Carlos José Errázuriz-21 de janeiro de 2025-Tempo de leitura: 10 acta

Em qualquer campo do conhecimento humano, é decisiva a compreensão da essência do respetivo objeto. No domínio do direito, a necessidade de ter constantemente presente o que é o direito é muito evidente; o mesmo se aplica ao direito da Igreja. 

Não se trata de uma questão meramente teórica, elegante ou requintada, mas de uma questão que, de facto, informa e determina todo o trabalho prático do jurista, e especificamente do canonista, e que é também muito importante para a compreensão do direito canónico por parte dos não especialistas. 

Quando este problema é evitado, pode significar que certos esquemas empobrecidos são aceites mecanicamente, chegando mesmo a distorcer a realidade, com a triste consequência de apoiar injustiças. 

Atualmente, parece-me que existe um paradoxo a este respeito. Por um lado, existe um acordo bastante generalizado a nível teórico sobre a importância de conceber o direito na Igreja à luz do mistério da própria Igreja, como indica o Concílio Vaticano II (cf. Optatam totius, n. 16). Sabe-se que uma abordagem positivista, entendida sobretudo como um simples legalismo que considera o Direito Canónico como um mero conjunto de leis humanas a aplicar sem mais delongas aos casos concretos, não está atualmente disponível. 

O recente magistério pontifício é muito claro e reiterado neste sentido: o Direito Canónico deve ser visto como uma realidade intrinsecamente eclesial, como uma realidade que pertence ao plano sobrenatural da fé e da teologia. No entanto, isto é curiosamente compatível com um persistente legalismo de facto: tanto os que defendem o direito eclesial como os que o criticam ou, mais frequentemente, simplesmente o ignoram, continuam na prática a pensá-lo como um conjunto de normas jurídicas, que encontra a sua principal expressão nos actuais Códigos, latinos e orientais. A convicção de fundo acima descrita não parece ter influenciado a atual abordagem e aplicação do jurídico no Povo de Deus. 

Na raiz deste fenómeno, podemos ver que estão profundamente enraizadas algumas oposições fundamentais: direito-teologia; direito-pastoral; poder hierárquico-liberdade e direitos dos fiéis. São peças que não se encaixam. No fundo, apesar de todos os progressos teológicos registados, o conceito anterior de Direito Canónico como um conjunto de leis eclesiásticas. E este conceito parece ser pouco teológico e pouco pastoral, em si mesmo contrário à liberdade dos filhos de Deus. Quanto mais teológica, pastoral e promotora da liberdade for uma lei eclesiástica, menos "jurídica" ela deve ser.

O novelo acima descrito não é fácil de desembaraçar. Será preciso algum tempo para que se recupere uma consciência pacífica do que é o direito na Igreja e para que esta consciência seja efetivamente renovada, isto é, para que se integre tudo o que há de valioso na tradição canónica com os contributos do último Concílio e de todo este período da história da Igreja. 

Penso que se podem tomar três posições fundamentais sobre a questão que apresentei. Tentarei descrevê-las brevemente, sem entrar nos pormenores das suas formulações, a fim de ir mais diretamente ao cerne das suas ideias, e não ficar preso em disputas escolares, que, aliás, neste domínio, tendem atualmente a esbater-se.

Direito e realidade pastoral

Em primeiro lugar, esta nova etapa pode ser vista sobretudo como uma tentativa de transformar o direito numa realidade mais pastoral, mais próxima da vida dos fiéis e das comunidades cristãs. É uma tendência positiva, na medida em que reage contra os excessos de uma rigidez legalista e formalista, que faz da observância das regras e das formas um fim autónomo, que esquece a função tradicional da equidade, quer como correção das deficiências das regras gerais humanas, quer como moderação da justiça apenas através da caridade e da misericórdia. É também positivo evitar uma conceção exclusivamente hierárquica do direito, como se ele consistisse apenas nos imperativos dos sagrados Pastores, esquecendo a dimensão jurídica do nível de igualdade e liberdade que se baseia na comum dignidade cristã de todos os baptizados, participantes da única missão da Igreja e beneficiários da ação do Espírito Santo através dos seus dons e carismas.

No entanto, a pastoral não pode degenerar em pastoralismo, ou seja, numa atitude que, em nome da pastoral, procura ignorar ou atenuar outras dimensões essenciais do mistério cristão, incluindo a dimensão jurídica. 

Se a pastoral dilui qualquer obrigação jurídica, relativiza qualquer obediência eclesial, esvazia, na prática, as normas canónicas do seu significado e exerce qualquer tipo de pretenso direito sem se preocupar com a sua legitimidade cristã, então também ela se deformou como pastoral. A verdadeira pastoral nunca pode ser contrária ao verdadeiro direito na Igreja. Para o compreender, porém, é essencial entender o que é essa lei. Só assim se pode compreender a harmonia constitutiva entre pastoral e direito. 

A dimensão teológica do direito canónico

Uma outra corrente tem dado especial ênfase à dimensão teológica do direito. Embora não lhe seja exclusiva, a importância da escola de Munique, que teve origem em Klaus Mörsdorf

Já antes do Concílio, Mörsdorf tinha insistido que o Direito Canónico é algo intrínseco à Igreja, a ser entendido em relação à sacramentalidade da própria Igreja, e a situar-se mais especificamente na palavra e nos sacramentos, como factores intrinsecamente jurídicos que edificam o Povo de Deus. Entre os seus discípulos, é particularmente conhecido Eugenio Corecco, que radicalizou as teses do seu mestre, inclinando-se para uma conceção que acentua fortemente a diferença entre Direito Canónico e direito secular, e que concebe a ciência canónica como uma ciência essencialmente teológica. Utiliza o conceito de communio como a chave para compreender o direito na Igreja, argumentando que a virtude da caridade, e não a justiça dos juristas, governaria na Igreja. 

Mais uma vez, é necessário discernir entre aspectos indubitavelmente valiosos desta abordagem - sobretudo a sua visão do Direito Canónico como algo intrinsecamente ligado ao mistério da Igreja, e o seu recurso a realidades teológicas fundantes - e os seus limites, decorrentes, a meu ver, sobretudo do esquecimento da justiça como virtude específica do mundo jurídico, que não consegue compreender que no Direito Canónico, com o seu conteúdo sobrenatural, está presente e actua uma dimensão natural da convivência humana.

O Direito Canónico no realismo jurídico

A terceira corrente insiste no quase truísmo de que o Direito Canónico é o verdadeiro Direito. 

Dentro dela, há diversas variantes. Desde já, descarto as que tentam adotar uma visão meramente técnico-instrumental do direito, e que assumem as mesmas oposições direito-teologia, direito-pastoral, só que em favor do direito. Muito mais interessantes, pelo contrário, são as doutrinas que procuram aplicar ao Direito Canónico o melhor da tradição jurídica clássica e cristã. Estou a pensar especialmente nos esforços dos meus inesquecíveis professores, Pedro Lombardía e Javier Hervada, e sobretudo na tentativa deste último de abordar o direito na Igreja do ponto de vista do realismo jurídico clássico, ou seja, da noção de direito como aquilo que é justo, objeto da virtude da justiça. 

Nesta perspetiva, o direito na Igreja não é primariamente um conjunto de normas, mas aquilo que é justo na própria Igreja, uma rede de relações de justiça no seio do Povo de Deus (que se projectam também para fora, seguindo a missão universal da Igreja). Neste ponto, gostaria de sublinhar algumas caraterísticas fundamentais desta abordagem, que nos permitem apreciar a sua potencial fecundidade.

Acima de tudo, a perspetiva da justiça assume plenamente o protagonismo da pessoa humana na Igreja: o homem como caminho da Igreja, segundo a conhecida expressão de João Paulo II. O justo, síntese de elementos essenciais e permanentes (lei divina) e de elementos contingentes e históricos (lei humana), diz sempre respeito às pessoas, como titulares de direitos e deveres recíprocos. O centro do Direito Canónico é cada pessoa humana, e em primeiro lugar os fiéis.

Mas isto não implica o perigo do individualismo. O que é devido em justiça a cada um na Igreja existe precisamente porque o desígnio salvífico de Deus em Cristo e na Igreja assume a socialidade humana, nos seus aspectos de caridade e também de justiça específica. Estamos a tratar do grande tema da comunhão, que capta cada vez mais a atenção da eclesiologia do nosso tempo, como o próprio núcleo do ensinamento do Vaticano II sobre a Igreja. O Direito Canónico é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, personalista e comunional, precisamente porque a pertença à Igreja implica uma relacionalidade comunional da pessoa, de natureza intrínseca.

O coração do direito canónico

Estas ideias tornam-se mais concretas e claras quando se considera qual é o objeto das relações de justiça intra-eclesiais. Estão em causa muitos bens jurídicos, incluindo os de natureza patrimonial e organizativa. No entanto, o coração do Direito Canónico encontra-se no próprio coração da Igreja na sua dimensão visível-sacramental, ou seja, nos bens salvíficos: a palavra de Deus e os sacramentos, a começar pelo centro destes, o Sacrifício sacramental da Eucaristia. 

Os direitos e deveres dos fiéis entre si, e entre os Pastores e os outros fiéis em virtude do sacerdócio ministerial, têm como objeto estes bens salvíficos, que ultrapassam evidentemente a dimensão jurídica, mas a incluem também na medida do necessário. 

Assim, por exemplo, a transmissão da palavra de Deus na sua autenticidade constitui para um pai cristão um verdadeiro dever de justiça intra-eclesial para com os seus filhos; a organização dos pastores de modo a que os sacramentos sejam efetivamente acessíveis a todos é também uma exigência permanente de justiça. 

Esta visão permite superar harmoniosamente a dialética estéril que tantas vezes obscurece a compreensão do direito canónico. Entendido como o que é correto na Igreja, a sua transcendência teológica é imediatamente visível: é uma dimensão do próprio mistério salvífico, pois Jesus Cristo quis que a Igreja peregrina assumisse, como Ele próprio na sua existência terrena, a realidade do direito; e não por razões acidentais ou circunstanciais, mas sobretudo para nos unir uns aos outros na conservação e difusão dos bens da salvação no seu aspeto visível. Assim, é fácil compreender porque é que sempre vimos a salus animarum como a finalidade própria do direito na Igreja. Trata-se de uma finalidade intrínseca, conatural ao seu próprio ser, e não de uma espécie de superadição. 

O direito canónico é salvífico precisamente enquanto direito, enquanto direito, e não apesar de ser direito, como se fosse um mal menor, exigido por razões meramente organizativas, puramente externas. Deste ponto de vista, as noções eclesiológicas de comunhão e sacramentalidade podem ser aplicadas às questões jurídicas eclesiais de um modo que ultrapassa qualquer oposição entre elas e o direito. É muito melhor descobrir que o direito na Igreja, precisamente enquanto direito, é uma realidade intrinsecamente salvífica, eclesial e teológica. 

O carácter pastoral do direito é também iluminado por esta noção. É evidente que a justiça é, por sua natureza, pastoral, embora na vida eclesial e na ação dos pastores deva naturalmente ir muito mais longe, através da caridade. No entanto, a misericórdia nunca pode tornar-se uma validação da injustiça. 

O carácter pretensamente pastoral de soluções que não respeitam a verdade do direito, porque relativizam tudo em função de necessidades subjectivas, revela-se na prática profundamente estéril. Não exigir o que é devido em justiça, em questões tão essenciais como as que se referem à validade do matrimónio e ao acesso à Sagrada Comunhão, apesar das aparências momentâneas, só afasta as pessoas do encontro salvífico com Cristo e, de facto, conduz sempre a um maior arrefecimento da vida cristã. Outra coisa é ir ao encontro das pessoas em dificuldade, com a caridade e a paciência requintadas, em que o Papa Francisco tanto insistiu, procurando precisamente colocá-las em condições de descobrir nas suas vidas a beleza das exigências do verdadeiro amor. Mesmo o que é justo em virtude de uma legítima norma humana, sempre ao serviço da mesma dimensão essencial e divinamente constituída da justiça intra-eclesial, deve ser observado como devida manifestação de comunhão em cada momento concreto da história da salvação. Deve-se considerar também a recente redescoberta da necessidade de impor sanções canónicas a comportamentos que constituem uma grave violação dos bens jurídicos, como no caso dos abusos sexuais cometidos por clérigos contra menores: o bem da Igreja, a verdadeira pastoral, exige, portanto, o recurso a sanções eclesiais, que devem ser sempre aplicadas através de um processo justo.

Finalmente, a oposição entre o poder hierárquico e os direitos dos fiéis também não faz sentido. Os pastores, mesmo quando exercem no sentido próprio os actos do poder de jurisdição, estão verdadeiramente ao serviço da autêntica liberdade dos filhos de Deus. O seu ministério é verdadeiramente libertador, também no sentido de que deve promover a vitalidade apostólica de todos, o que na realidade é favorecer uma atitude de docilidade aos dons carismáticos do Espírito Santo. Esta liberdade, porém, é inseparável da união com os Pastores, antes de mais com aqueles que sucedem aos Doze Apóstolos e com aquele que sucede a Pedro, e depois com os seus colaboradores no ministério sagrado. 

A fé católica não vê a missão hierárquica como função de uma simples eficácia da autoridade social (embora esta dimensão seja assumida também na Igreja), mas como um aspeto do mistério eclesial em que transparece o sentido vertical da comunhão, através da representação de Cristo assumida por aqueles que receberam o sacramento da Ordem. Há aqui um mistério de autêntica paternidade, uma participação na paternidade divina, que nos leva a pensar na Igreja como uma família, isto é, como um tipo de realidade social em que se transmite a vida, neste caso a vida sobrenatural. Isto, evidentemente, não pode de modo algum obscurecer a igualdade radical de todos os homens na salvação conquistada por Cristo e a consequente igualdade radical de todos os baptizados na Igreja. 

Podemos dizer que entre os direitos mais importantes dos fiéis está precisamente o direito de gozar de Pastores que cumpram o seu dever como tais, de tornar Cristo presente como Cabeça nos sacramentos e na Palavra. Tudo isto não se opõe de modo algum à participação dos fiéis leigos na esfera institucional da Igreja, com a sua voz importante nos órgãos sinodais e podendo assumir tarefas eclesiais para as quais não é exigido o sacramento da Ordem, sem esquecer que o lugar em que os leigos devem construir a Igreja é sobretudo o das realidades temporais: a família, o trabalho, a cultura, a vida pública, etc. 

Entendido deste modo, o direito insere-se perfeitamente no âmbito da missão salvífica da Igreja. A consciência da atualidade do mistério da Encarnação do Verbo implica também que se envidem todos os esforços para que se realize o direito de todos e de cada um ao encontro pessoal com Cristo através dos bens salvíficos que Ele deixou à sua Igreja. 

Para concluir, gostaria de citar algumas palavras recentes do Papa Francisco num curso de atualização de Direito Canónico promovido pela Rota Romana, que sublinham a relação do direito eclesial com a vida e a missão da Igreja: "Podemos perguntar-nos: em que sentido um curso de direito está relacionado com a evangelização? Estamos habituados a pensar que o Direito Canónico e a missão de difundir a Boa Nova de Cristo são duas realidades distintas. Pelo contrário, é decisivo descobrir o elo que os une na única missão da Igreja. Poder-se-ia dizer esquematicamente: nem direito sem evangelização, nem evangelização sem direito. De facto, o núcleo do Direito Canónico diz respeito aos bens da comunhão, antes de mais a Palavra de Deus e os Sacramentos. Cada pessoa e cada comunidade tem o direito - tem o direito - ao encontro com Cristo, e todas as normas e actos jurídicos tendem a promover a autenticidade e a fecundidade desse direito, isto é, desse encontro. Por isso, a lei suprema é a salvação das almas, como afirma o último cânone do Código de Direito Canónico (cf. cânone 1752)" (Discurso de 18 de fevereiro de 2023).

O autorCarlos José Errázuriz

Professor de Direito Canónico. Universidade Pontifícia da Santa Cruz.

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