A interpretação de Maria no livro do Apocalipse de João, especificamente no capítulo 12, tem sido um tema central na exegese católica. Tentaremos explicar a ideia de que Maria é a mulher representada simbolicamente como a Arca da Aliança, com base em algumas análises bíblicas, patrísticas e teológicas.
1. Maria como a Mulher do Apocalipse e a Arca da Aliança
O capítulo 12 do Apocalipse descreve uma visão de ".um grande sinal no céu, uma mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça."(Apocalipse 12, 1). Esta mulher tem sido tradicionalmente interpretada de várias maneiras, mas na exegese católica, ela é vista como uma representação da Virgem Maria.
Além disso, no Apocalipse 11, 19, imediatamente antes do aparecimento desta "mulher", é mencionado que ".abriu-se o templo de Deus que está nos céus, e a arca do seu pacto foi vista no seu templo."(Apocalipse 11, 19). Esta referência à arca foi considerada por muitos teólogos como uma indicação da ligação simbólica entre a arca da aliança do Antigo Testamento e Maria, que é considerada a nova arca, uma vez que carregou Cristo, a própria presença de Deus entre os homens, no seu ventre.
De facto, tal como o arca do Antigo Testamento continha as tábuas da lei, o maná e a vara de Aarão., Maria contém o Verbo de Deus encarnado, o pão da vida e o sacerdote eterno, Jesus Cristo. São João, ao revelar a arca no céu, mostra-nos que a arca da nova aliança é Maria, o vaso escolhido para trazer ao mundo a nova e definitiva aliança de Deus com a humanidade.
2. fundamentos bíblicos do simbolismo
A comparação de Maria com a Arca da Aliança é apoiada por várias citações bíblicas.
No Antigo Testamento, a arca era o lugar onde residia a glória de Deus,
João 1, 14:"E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, glória como do unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade."Este versículo fala da Encarnação, onde o Verbo se faz carne e habita entre nós. A palavra grega usada para "habitada" é "eskēnōsen", que significa literalmente "montou a sua tenda", evocando a presença de Deus no tabernáculo (arca) no deserto. Maria é vista como a nova morada de Deus, a nova "tenda" onde se manifesta a glória de Deus..
Em 2 Macabeus 2, 4-8, narra-se que Jeremias escondeu a arca antes do exílio, e que "... a arca foi escondida por Jeremias".em sítio permanecerá desconhecida até que Deus reúna o seu povo e lhe seja propício."(2 Macabeus 2, 7). Este contexto prepara a vinda de Maria, que se torna a nova arca, portador da nova aliança na figura de Jesus, de quem se diz: "Ele é o resplendor da glória de Deus". (Hebreus 1, 3)
O Evangelho de Lucas também reforça esta imagem: "O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra."(Lucas 1, 35). Este versículo recorda à nuvem que cobria a arca no Êxodo (Êxodo 40, 34-35), sugerindo que Maria, coberta pela sombra do Espírito Santo, é uma figura que cumpre (e transcende) o papel da arca..
Estas outras citações também reforçam a identificação de Maria com a Arca da Aliança e o seu papel na nova aliança,
Salmo 132, 8: "Levanta-te, Senhor, e vem para o teu descanso, tu e a arca do vosso poder."Esta citação liga a arca à presença de Deus, que pode ser aplicado a Maria como a nova arca que transporta o próprio Deus no seu seio. O convite a Deus, "vem para o teu descanso".pode também ser visto como uma prefiguração da Encarnação.
Jeremias 31, 31-33: "Eis que estão a chegar os dias, diz o Senhor, em que farei uma nova aliança. com a casa de Israel e com a casa de Judá (...) Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor, Porei a minha lei na sua mente e escrevê-la-ei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo". Esta passagem profética fala de um "nova aliança" que se realizará em Cristo, que é gerado no seio de Maria. Maria, neste contexto, pode ser visto como a arca que transporta não só a Lei (como a arca da antiga aliança), mas a própria Palavra feita carne.
2 Samuel 6, 9-12: "Como virá a mim a arca do Senhor? [Desde o dia em que a arca ficou na casa de Obede-Edom até ao dia em que David a trouxe para a cidade de David, o Senhor abençoou a casa de Obede-Edom."Esta passagem recorda a visita da arca à casa de Obede-Edom, que lhe valeu uma bênção. De igual modo, A visita de Maria a Isabel, em Lucas 1, 39-45, resulta numa bênção para Isabel, o que sublinha a ligação entre a arca e Maria como portadora da bênção divina..
2 Samuel 6 e Lucas 1. Os paralelos entre a história de David, que levou a Arca para Jerusalém, e a história da visita de Maria a Isabel são impressionantes. A história começa com David "levantou-se e foi-se embora". (2 Sam 6,2). O relato de Lucas sobre a visita começa com as mesmas palavras, Maria "levantou-se e foi-se embora". (1, 39). Nas suas respectivas viagens, Maria e David foram para a região. região montanhosa de Judá. David reconhece a sua indignidade com as palavras "...".como pode a arca do Senhor vir até mim?(2 Samuel 6, 9)... palavras que repetimos quando Maria se aproxima da sua parente Isabel, "...".Como é que a mãe do meu Senhor veio ter comigo?" (Lucas 1:43). Note-se que a frase é quase literal, exceto que "..." (Lucas 1:43).arca" é substituído por "mãe". Mais adiante, lemos que David "dançou" de alegria na presença da arca (2 Samuel 6, 14.16), e verificamos que uma expressão semelhante é utilizada para descrever o a criança saltou no ventre de Isabel quando Maria se aproximou. (Lucas 1, 44). Finalmente, a arca permaneceu nas montanhas durante três meses (2 Samuel 6, 11), o mesmo tempo que Maria passou com Isabel (Lucas 1, 56).
Apocalipse 12, 5: "E ela deu à luz um filho, um varão, que há-de governar todas as nações. com uma barra de ferro; e o seu filho foi arrebatado para junto de Deus e do seu trono." Este versículo do Apocalipse refere-se ao filho da mulher (Maria), identificando-o com Jesus, que cumpre a profecia messiânica. A ligação entre esta mulher e a arca da aliança, no versículo anterior, reforça a identificação de Maria com a arca.
Hebreus 9, 4-5Na arca havia uma urna de ouro, que Continha o maná, a vara de Aarão que brotou e as tábuas da aliança. E sobre a arca, os querubins da glória, que cobriam o propiciatório". A arca continha elementos sagrados que prefiguravam Cristo, o maná (pão da vida), a vara de Aarão (autoridade sacerdotal) e as tábuas da Lei (a palavra de Deus).. Maria, como a nova arca, contém Cristo, que é o pão da vida, o sumo sacerdote e a Palavra encarnada.
3. Comentário teológico patrístico e mariano
Os Padres da Igreja também interpretaram Maria como a Arca da Aliança. Santo Ambrósio, por exemplo, nos seus comentários, fala de Maria como portadora da nova lei em Cristo, estabelecendo um paralelo com a arca que contém as tábuas da lei dadas a Moisés. Este simbolismo foi mais tarde desenvolvido na teologia medieval e moderna.
John Henry Newman, na sua obra Maria, a segunda EvaNewman também reflecte sobre esta identificação, argumentando que, tal como a arca continha os objectos sagrados da aliança, Maria trazia no seu seio o Filho de Deus, o cumprimento da aliança. Para Newman, Maria é assim a arca viva, o tabernáculo perfeito da divindade.
4. Aplicações contemporâneas
Na teologia contemporânea, autores como Scott Hahn em Salve, Rainha Santa popularizaram esta interpretação, mostrando como o Apocalipse revela a plena glorificação de Maria no céu, reflectindo o seu papel como a última arca da aliança. Hahn argumenta que a aparição da arca em Apocalipse 11:19, seguida imediatamente pela visão da mulher no capítulo 12, não é uma coincidência, mas uma revelação da continuidade e do cumprimento da história da salvação.
5. Conclusão, Maria e o mistério da Aliança
A identificação de Maria com a Arca da Aliança no Apocalipse de João é uma imagem teológica rica que liga o Antigo e o Novo Testamento. Através de citações bíblicas e comentários patrísticos, podemos ver como esta interpretação foi desenvolvida ao longo dos séculos. Maria, como a nova arca, não só transporta Cristo, mas também representa a nova aliança de Deus com a humanidade, uma aliança eterna selada com amor e redenção.
Esta visão mariana tem profundas implicações na espiritualidade cristã, especialmente na veneração de Maria como Mãe de Deus e primeira discípula de Cristo, cuja vida e missão estão intimamente ligadas ao mistério da salvação revelado nas Escrituras.
Na Igreja Católica, quando se celebra este mistério de Maria na liturgia da Assunção de Maria, utilizam-se textos que evocam estes mistérios,
1ª Leitura: Apocalipse 11, 19a; 12, 1-6a, 10ab: que já analisámos acima, está no centro da liturgia da Assunção. A identificação da arca com a mulher "vestida de sol"tem sido tradicionalmente interpretada pela Igreja como uma imagem de Maria. A referência à arca está diretamente relacionada com a ideia de Maria como a nova arca, portadora da presença de Deus na pessoa de Jesus..
O Salmo 44 (45), 10-12, 16: que celebra com grande alegria e honra a entrada da Rainha no palácio do Rei. Uma referência à glorificação de Maria, reconhecida como Rainha do Céu (Bento XVI, na cabeça da mulher vestida de sol há "uma coroa de doze estrelas". Este sinal simboliza as 12 tribos de Israel e significa que a Virgem Maria está no centro do Povo de Deus, de toda a comunhão dos santos.). A figura da Rainha associada à Arca da Aliança no templo reforça a imagem de Maria como morada de Deus e Mãe do Rei dos Reis.
2ª Leitura, 1 Coríntios 15, 20-27Nesta passagem, S. Paulo fala da ressurreição dos mortos e do primado de Cristo sobre a morte: "Porque, assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados. Mas cada um na sua ordem, Cristo, as primícias; depois, os que são de Cristona sua vinda" (1 Coríntios 15, 22-23). Esta passagem está em sintonia com a doutrina da Assunção, segundo a qual Maria (os primeiros frutos), sendo o primeiro a ser redimido por Cristo, é também o primeiro a participar plenamente na sua vitória sobre a morte.
Evangelho, Lucas 1, 39-56 (A Visitação e o Magnificat). Nesta passagem, Isabel fica cheia do Espírito Santo e reconhece em Maria a Mãe de Deus, evocando o respeito e a veneração que David manifestou pela Arca em 2 Samuel 6. O cântico do Magnificat reflecte a alegria e a exaltação da humildade de Maria ao trazer no seu seio o Salvador do mundo. A "sombra do Altíssimo" que cobre Maria na Anunciação (Lc 1,35) é semelhante à nuvem que cobria a arca no Êxodo, sublinhando mais uma vez o seu papel de nova arca..
Doutor em Direito Canónico