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Liturgia e bênção de casais do mesmo sexo

O autor, professor de Teologia Sacramental na Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia da Santa Cruz, reflecte sobre a recente Declaração sobre a Teologia Sacramental da Santa Cruz. Fiducia supplicans e aponta para a necessária exclusão das bênçãos não litúrgicas dos sacramentais, a fim de evitar confusões.

Rafael Díaz Dorronsoro-20 de dezembro de 2023-Tempo de leitura: 6 acta

O Dicastério para a Doutrina da Fé acaba de publicar a Declaração Fiducia supplicans "sobre o sentido pastoral das bênçãos", aprovado pelo Sumo Pontífice Francisco. O objetivo do documento é responder às questões "sobre a possibilidade de abençoar casais do mesmo sexo e sobre a possibilidade de oferecer novos esclarecimentos, à luz da atitude paternal e pastoral do Papa Francisco, sobre o Responsum ad dubium formulado pela então Congregação para a Doutrina da Fé e publicado em 22 de fevereiro de 2021" (Apresentação).

Neste Resposta afirma-se que não é lícito conceder uma bênção litúrgica a uniões que envolvam práticas sexuais fora do matrimónio, sublinhando ao mesmo tempo que "a presença em tais relações de elementos positivos, que em si mesmos devem ser apreciados e valorizados, não é, no entanto, capaz de os justificar e de os tornar objeto lícito de uma bênção eclesial, porque tais elementos estão ao serviço de uma união não ordenada segundo o plano de Deus".

Como Declaração, o documento reafirma a doutrina da fé católica ensinada pelo Magistério precedente. Por isso, afirma que "a presente Declaração mantém-se firme na doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimónio, não permitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico que possa causar confusão" (Apresentação).

Depois de apresentar brevemente o significado da bênção do sacramento do matrimónio (nn. 4-5), o documento reflecte sobre o significado das várias bênçãos, todas elas pertencentes ao género sacramental (nn. 9-13). O mais significativo é a distinção entre bênçãos litúrgicas ou rituais e bênçãos não litúrgicas ou não rituais.

A Apresentação sublinha que, ao identificar esta segunda espécie de bênção, o documento oferece "um contributo específico e inovador para o sentido pastoral das bênçãos, que permite alargar e enriquecer a compreensão clássica das bênçãos estreitamente ligada a uma perspetiva litúrgica. Tal reflexão teológica, baseada na visão pastoral do Papa Francisco, implica um verdadeiro desenvolvimento do que foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja". 

Precisamente em conformidade com a natureza das bênçãos não litúrgicas, a Declaração autoriza que sejam dadas bênçãos por um sacerdote ordenado a casais em situação irregular e a casais do mesmo sexo em relações sexuais. Esta abertura não é considerada como contraditória com o ensinamento do magistério anterior, que não considerava tais bênçãos. E a Declaração reafirma que os ritos de bênção exigem "que o que é abençoado esteja em conformidade com a vontade de Deus, tal como se manifesta nos ensinamentos da Igreja" (n. 9). Uma vez que "a Igreja sempre considerou moralmente lícitas apenas as relações sexuais no seio do matrimónio, não tem o poder de conferir a sua bênção litúrgica quando esta possa de algum modo oferecer uma forma de legitimidade moral a uma união que se presume ser um casamento ou a uma prática sexual extraconjugal" (n. 11).

Bênçãos não litúrgicas

Qual é a natureza das bênçãos não-litúrgicas que podem ser dadas aos casais em situação irregular e aos casais do mesmo sexo? Depois de termos delineado a natureza das bênçãos na Sagrada Escritura (nn. 14-15), concluímos com uma compreensão teológico-pastoral geral que acolhe as bênçãos não rituais. Trata-se de bênçãos que as pessoas pedem espontaneamente ao sacerdote e que são valorizadas, do ponto de vista da pastoral popular, "como actos de devoção que "encontram o seu lugar próprio fora da celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos [...]. A linguagem, o ritmo, o desenvolvimento e os acentos teológicos da piedade popular diferem dos das acções litúrgicas". Pela mesma razão, "é necessário evitar acrescentar modos próprios da celebração litúrgica aos exercícios de piedade, que devem conservar o seu estilo, a sua simplicidade e a sua linguagem caraterística" (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório sobre a piedade popular e a liturgia. Princípios e directrizesLibreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 2002, n. 13)" (n. 24).

Como em todas as bênçãos, também esta tem uma dimensão ascendente, porque "quando se toma consciência dos dons e do amor incondicional do Senhor, mesmo em situações de pecado, sobretudo quando se ouve uma oração, o coração crente eleva a Deus o seu louvor e a sua bênção" (n. 29).

E, juntamente com a dimensão ascendente, há a dimensão descendente, porque o seu pedido mostra que ele "tem necessidade da ação salvífica de Deus na sua história" e que reconhece a Igreja "como sacramento da salvação que Deus oferece" (n. 20). Quando "se pede uma bênção, está-se a exprimir um pedido de ajuda a Deus, uma súplica por uma vida melhor, uma confiança num Pai que nos pode ajudar a viver melhor" (n. 21, citando Francisco), As respostas do Santo Padre aos Dubia propostos por dois Cardeaisad dubium 2, e).

Para estas formas de bênção, continua a Declaração, nem sempre é necessário prever procedimentos ou ritos oficiais (cf. n. 30). A prudência e a sabedoria pastoral podem sugerir que, evitando formas graves de escândalo ou de confusão entre os fiéis, o ministro ordenado se associe à oração das pessoas que, embora se encontrem numa união que não pode de modo algum ser comparada com o matrimónio, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda, deixar-se guiar para uma maior compreensão do seu projeto de amor e de vida" (n. 30).

Podemos concluir que as bênçãos não rituais, segundo a Declaração, não são consideradas propriamente litúrgicas, mas uma oração pessoal dos fiéis à qual o sacerdote se une a pedido dos próprios fiéis para interceder como ministro ordenado da Igreja diante de Deus. Oração destinada a obter a graça de Deus para viver segundo a sua vontade, com a eficácia própria dos sacramentais (cf. n. 32).

Pedido de assistência, não de pé

Depois de delinear a natureza das bênçãos não litúrgicas, é abordada a possibilidade de casais em situação irregular e casais do mesmo sexo receberem uma bênção não ritual.

A resposta é afirmativa e, em continuidade com a exposição doutrinária apresentada, afirma-se que, "nestes casos, é dada uma bênção que não tem apenas valor ascendente, mas é também a invocação de uma bênção descendente do próprio Deus sobre aqueles que, reconhecendo-se desamparados e necessitados da sua ajuda, não reclamam legitimidade para si próprios estatutoPelo contrário, rezam para que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente válido nas suas vidas e relações possa ser investido, santificado e elevado pela presença do Espírito Santo. Estas formas de bênção exprimem uma súplica a Deus para que conceda as ajudas que provêm dos estímulos do seu Espírito - aquilo a que a teologia clássica chama "graças actuais" - para que as relações humanas amadureçam e cresçam na fidelidade à mensagem evangélica, sejam libertadas das suas imperfeições e fragilidades e se exprimam na dimensão cada vez maior do amor divino" (n. 31).

Ao mesmo tempo, insiste-se que a sua "forma não deve ser ritualmente fixada pelas autoridades eclesiásticas, para não causar confusão com a bênção própria do sacramento do matrimónio" (n. 31).

E especifica-se ainda que "para evitar qualquer forma de confusão ou escândalo, quando a oração de bênção é pedida por um casal em situação irregular, mesmo que seja conferida fora dos ritos previstos pelos livros litúrgicos, esta bênção nunca deve ser realizada ao mesmo tempo que os ritos civis da união, nem em ligação com eles. Nem mesmo com as vestes, os gestos ou as palavras próprias do matrimónio" (n. 39).

O sacerdote, chamado espontaneamente pelo casal para os abençoar, não pode pretender "sancionar ou legitimar nada" (n. 36). E na "breve oração que pode preceder esta bênção espontânea, o ministro ordenado poderia pedir-lhes a paz, a saúde, o espírito de paciência, o diálogo e a entreajuda, mas também a luz e a força de Deus para poderem cumprir plenamente a sua vontade" (n. 38).

Podemos concluir que, ao autorizar a bênção de casais em situação não conforme com os ensinamentos de Jesus Cristo e da Igreja, o Dicastério para a Doutrina da Fé não legitima a situação dessas pessoas, mas autoriza o sacerdote ordenado a juntar-se à oração desses fiéis para implorar a graça de Deus e viver segundo o projeto de Deus.

Reflexão sobre as bênçãos como sacramentais

Por último, poder-se-ia assinalar que a exposição teológico-pastoral da Declaração, ao considerar sacramentais as bênçãos litúrgicas e não litúrgicas (entendidas como sacramentais A Declaração não pretende substituir o ensinamento do Catecismo da Igreja Católica, entre os números 1667 e 1676), o que poderia levar a um tipo de confusão que a Declaração certamente deseja evitar: que a bênção não litúrgica seja entendida como uma legitimação da união irregular.

A Declaração sublinha que as bênçãos rituais são litúrgicas, enquanto as bênçãos não rituais são consideradas como actos de devoção que exprimem súplicas a Deus. Esta distinção leva à conclusão de que as bênçãos não rituais são objetivamente distintas da liturgia (cf. o texto da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório sobre a piedade popular e a liturgia. Princípios e directrizes(Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 2002, citado no n.º 13 da Declaração), e para justificar a distinção específica entre os dois tipos de bênçãos.

No entanto, a doutrina da Igreja ensina que os sacramentais são celebrações litúrgicas. Esta doutrina é retomada pelo Catecismo da Igreja Católica ao tratar dos sacramentais no capítulo intitulado "Outras celebrações litúrgicas" do Mistério cristão, para além dos sacramentos.

Mas se aceitarmos que ambas as espécies de bênçãos são litúrgicas, isso enfraquece a razão para estabelecer a diferença específica entre elas, que parece resumir-se à forma de celebração: ritual ou não ritual. Parece, pois, difícil encontrar uma razão pela qual não se possa "acrescentar modos próprios da celebração litúrgica"às bênçãos não-litúrgicas. Isto permitiria concluir que a ritualização destas bênçãos não violaria a sua natureza própria e justificaria a concessão da bênção litúrgica às uniões irregulares. Deste modo, a bênção não litúrgica poderia ser entendida como uma forma de legitimar as uniões irregulares.

Para evitar este perigo, parece-me que as bênçãos não litúrgicas deveriam ser excluídas dos sacramentais. Isto permitiria sustentar que tais bênçãos não são verdadeiramente litúrgicas, como argumenta o documento, porque o sacerdote se associaria à oração do casal de uma forma pessoal e não ministerial. Esta medida contribuiria também para reduzir o perigo da sua ritualização.

O autorRafael Díaz Dorronsoro

Professor de Teologia Sacramental, Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma)

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