Quando, faz hoje vinte e cinco anos, João Paulo II publicou Fides et ratioO fim do século estava próximo.
O Papa estava bem consciente da sua missão: guiar a nau de Pedro no oceano do terceiro milénio cristão. Por isso, não é de estranhar que, após um já longo pontificado, tenha decidido abordar a questão da "fé e da razão" numa encíclica.
Não se trata de um problema exclusivo do nosso tempo, mas cada época deve abordá-lo à sua maneira, para que Fides et ratio forneceram chaves para o fazermos na nossa.
Fé
Quando falamos de "fé e razão", não queremos dizer que existam dois tipos de funções completamente diferentes no homem. Não é que acreditar e raciocinar sejam tão diferentes como ouvir música e andar de bicicleta. São antes tão diferentes como andar de bicicleta e andar de trotinete: ambas as operações são feitas com os membros, não com os ouvidos. Ora, tanto a crença como o raciocínio são efectuados com uma única faculdade humana: a razão.
Quando os cristãos falam de fé, pensamos em algo que só os seres racionais podem fazer. Acreditar é, em si mesmo, algo racional. De um modo geral, acreditar é saber alguma coisa aprendendo-a com outra pessoa: é, portanto, um tipo de conhecimento.
Tal como aquilo que aprendemos por nós próprios, aquilo em que acreditamos temos de o compreender, e a nossa inteligência exige que nos esforcemos por o compreender cada vez melhor. O facto de, através da fé cristã, acreditarmos em Deus sob o impulso do Espírito Santo não faz com que seja algo totalmente diferente da nossa crença humana, apenas a eleva - o que não é pouco.
A encíclica recorda este carácter racional da fé e a afinidade natural entre crer e raciocinar. Deveria ser óbvio para nós se pensarmos que, onde quer que os cristãos tenham proclamado o Evangelho, estiveram ocupados a recolher e a difundir todo o tipo de conhecimentos, fundando colégios e universidades, escrevendo miríades de livros....
A razão
Apesar de factos tão óbvios, ouvimos o refrão de um alegado confronto entre fé e ciência. Mesmo alguns cristãos integraram esse discurso e têm medo de fazer demasiadas perguntas, para que a verdade não desmorone a sua fé. Por estas razões, nunca é demais lembrar que a fé é amiga da razão.
A amizade entre razão e fé manifesta-se no facto de a fé, que é acolhida na razão do ser humano, ser chamada a ser melhor conhecida e aprofundada. O fundamental é compreender o que é anunciado por aquele que nos ensina a fé, o que se deve crer, mas debruçar-se sobre isso com o intelecto é também um crescimento na fé.
Ao contrário, a fé impele-nos também a um melhor conhecimento, não só de Cristo e do Evangelho, mas também de outras coisas. Não nos deve surpreender o grande interesse que tantos cristãos cultivaram pelo estudo de todo o tipo de assuntos, pois na natureza e nos produtos do engenho humano transparece a intervenção benigna do Criador.
Retomo aqui uma das ideias mais conhecidas de Fides et ratioA "circularidade" entre razão e fé. A fé cristã convida-nos a raciocinar, tanto a raciocinar sobre aquilo em que acreditamos como a mergulhar em todo o tipo de conhecimentos; do mesmo modo, quanto mais aprofundamos a verdade em todas as facetas que os vários conhecimentos humanos nos revelam, mais oportunidades nos são dadas para aprofundar a nossa fé cristã. Assim, ambos os tipos de exploração são mutuamente benéficos.
Fé e razão no pontificado de Bento XVI
Olhando para a vida da Igreja de 1998 até à atualidade, é possível reconhecer a presença da mensagem da encíclica. O pontificado de Bento XVI (2005-2013) foi marcado pelo objetivo de mostrar ao homem contemporâneo, ao homem pós-moderno, que acreditar é razoável, é profundamente humano.
O Papa foi particularmente sensível a uma ideia ainda presente entre nós: para muitas pessoas, a "verdade" é um conceito agressivo e violento. Dizer que se tem a verdade e que se quer transmiti-la aos outros é entendido como um desejo de dominar os outros.
A verdade é assim representada como uma espécie de artefacto pelo qual as pessoas discutem entre si e até como uma pedra que uns atiram aos outros. O homem pós-moderno considera necessário abandonar a verdade em nome da paz. Sacrifica a verdade no altar da harmonia.
Fides et ratio Já Bento XVI insistia que, no nosso tempo, faz parte da missão da Igreja reivindicar os direitos da razão: é possível e urgente conhecer a verdade. Do mesmo modo, Bento XVI recusou-se a abandonar os pós-modernistas no seu jejum voluntário da verdade. Os seres humanos vivem da verdade como as árvores vivem da luz do sol e da água: sem ela, definhamos. Daí o esforço de Bento XVI para mostrar o carácter suave da verdade.
Em termos concretos, a verdade cristã, segundo ele, assume a forma de um encontro. Encontrar alguém não é como tropeçar na pedra que alguém acaba de atirar ao seu rival; sobretudo se encontrarmos alguém que nos ama e que, procurando efetivamente o nosso bem, suscita a nossa correspondência. No entanto, o encontro significa um choque com a realidade. Encontrar uma pessoa não é o mesmo que encontrar outra. Não depende de nós como é a pessoa que encontramos, não somos nós que decidimos, nem é o produto da nossa fantasia.
Além disso, o encontro obriga-nos a decidir, não há forma de ficarmos neutros. Não reagir é já tomar partido: o levita que passa ao lado do ferido não está a fazer menos uso da sua liberdade do que o bom samaritano.
Ora, a fé pode ser vista como um encontro, porque encontrar Cristo (na Igreja) é encontrar alguém que vem para nos amar. Por isso mesmo, o crente não pode prescindir da verdade: Cristo é como é, amou-nos dando a sua vida, e não de outra forma.
Amar verdadeiramente significa entrar em relação com uma pessoa real e não com a ideia que se tem dela. Um encontro obriga-nos a ceder à realidade. Não inventamos Cristo, não decidimos quem Ele é, é simplesmente Ele que entra na nossa vida.
Ora, um cristão não olha para este encontro como se tivesse sido esmagado pela verdade, como se uma desgraça se abatesse sobre ele, mas como uma libertação.
A verdade de Cristo dá sentido a toda a vida, porque permite compreender qual é o sentido fundamental da própria vida e, portanto, de tudo o que a rodeia. Não é uma verdade que exclui a procura de outras verdades; não é que o cristão descubra de imediato todos os segredos do universo que são explorados pelas ciências. No entanto, ela proporciona um conhecimento seguro do que é mais importante.
Esta verdade não pode ser entendida como um rolo compressor destruidor, porque é a revelação de um amor autêntico. Ou seja, um amor que faz um bem real ao homem. Assim, tal verdade não pode ser vista como algo ameaçador ou terrível.
Por outro lado, coloca o homem num contexto de amizade: Deus fez-se amigo do homem e mostrou-lhe que, embora amando cada pessoa em particular, não há ninguém que Ele não ame. Por isso, tal verdade, pela sua própria natureza, não pode tornar-se uma pedra a ser atirada contra ninguém.
Não cria adversários, mas irmãos e irmãs. Pelo contrário, comunicá-lo, longe de procurar dominar os outros, será uma comunicação desenvolvida no contexto do amor, que é recebido para ser dado. Dar o Evangelho é um ato de amor. Também não há lugar para a soberba em dar aquilo que não se tem, pois só se retém para o dar.
Fé e razão em Francisco
Depois do pontificado de Bento XVI, também Francisco deu continuidade a estes ensinamentos, começando por publicar, há dez anos, a encíclica Lumen fidei, em grande parte redigida pelo seu predecessor imediato. Além disso, no seu ensino mais pessoal, podemos encontrar o desenvolvimento destas ideias nas suas advertências sobre o "gnosticismo", uma mensagem já presente em Evangelii gaudium (2013), mas alargada em Gaudete et exultate (2018). Gnosticismo é o nome dado a uma antiga heresia dos primeiros séculos cristãos, e o termo tem sido reutilizado para designar certos movimentos esotéricos mais recentes.
O Papa entende por "gnosticismo" antes uma doença na vida do crente: transformar a doutrina cristã numa daquelas pedras que uns atiram aos outros. No mundo pós-moderno, que renunciou à verdade, alguns transformaram o discurso "racional" num instrumento de dominação dos outros. Fazem-no deliberadamente porque acreditam que, na ausência da verdade, o essencial é vencer.
Francisco denuncia o risco de os cristãos usarem esses truques maléficos. Isto significaria extrair a verdade do Evangelho do contexto amistoso em que nos aparece e em que temos de o comunicar. Nem sequer a verdade da miséria moral dos outros é pretexto para a nossa indiferença ou para adoptarmos ares de superioridade. De facto, a verdade que todos nós descobrimos em Cristo é também uma boa notícia libertadora para os miseráveis, mesmo para aqueles cuja vida deixa muito a desejar.
Estes vinte e cinco anos de Fides et ratio O compromisso de São João Paulo II com a razão foi muito frutuoso e, entre os teólogos e os intelectuais, foi muito aplaudido. Talvez este dia festivo seja uma boa oportunidade para examinar o modo como a razão penetrou na vida quotidiana da Igreja.
Perante a ignorância generalizada das verdades mais elementares da fé, cada cristão deve sentir-se obrigado a dar a conhecer a bela mensagem que recebeu. O aniversário deveria ser também um impulso para promover a educação.
As maravilhosas ferramentas tecnológicas que moldam a nossa paisagem em 2023 forneceram-nos certamente mais informação, mas será que estamos agora mais instruídos? Há certamente razões para ter esperança se houver muitas pessoas como tu, caro leitor, que escolheram passar estes minutos a recordar Fides et ratioEm vez de os utilizar para vaguear pela Internet em busca de mais leituras sensacionalistas.
Professor Assistente, Faculdade de Filosofia, Universidade Eclesiástica de San Daámaso