Estamos a aproximar-nos da celebração milenar do famoso Concílio de Niceia (325), onde a Igreja primitiva passou o seu primeiro teste sério de maturidade ao enfrentar uma das questões mais importantes da Revelação cristã: o mistério da vida íntima de Deus, revelado, em parte, com o mistério da Santíssima Trindade.
Não tinham passado muitos anos desde a morte de Orígenes (254), o grande Padre da Igreja Oriental, quando Ário (260-336), um jovem e dinâmico sacerdote alexandrino, cantor, compositor e poeta, começou a proclamar a sua compreensão particular do mistério da Santíssima Trindade. Este sacerdote, polemista e conhecedor das Escrituras, queria uma explicação do mistério da Trindade mais compreensível para todos, pois desejava aproximar a doutrina salvífica de todo o povo cristão.
Início do percurso
No início, Ário parecia seguir os ensinamentos de Orígenes quando falava de três pessoas e de uma só natureza divina. Mas começou a enfatizar tanto a primazia de Deus Pai que acabou por afirmar que ele era, de facto, o único Deus, e que tanto Jesus Cristo como o Espírito Santo não eram realmente Deus.
Nas suas palavras, Jesus Cristo seria um maravilhoso dom do Pai ao mundo e à Igreja, perfeitíssimo, cheio de dons, virtudes e beleza, de tal modo que mereceria ser Deus, embora na realidade fosse quase Deus.
Os livros, versos e canções com que desenvolveu a sua visão particular espalharam-se pelos mercados, praças e cidades. Difundiu-se a tal ponto que, como recordava S. Basílio "o mundo acordou Ariano".. Foi um momento dramático na história da Igreja, quando parecia que a verdadeira fé poderia perder-se. Um ponto de viragem do qual, mais uma vez, a Igreja foi salva pela intervenção do Espírito Santo.
São Basílio
O próprio São Basílio exprimiu a gravidade da situação num dos seus sermões sobre o Espírito Santo. Utilizou como imagem viva a de uma batalha naval, na qual a verdade da Igreja era representada como um pequeno barco rodeado de grandes navios num mar tempestuoso.
A solução do problema veio pela iluminação do Espírito Santo no povo cristão e nas suas cabeças teológicas, ao lembrarem-se que Cristo vive e governa o barco da sua Igreja. A revelação, a Palavra de Deus, como o Epístola aos Hebreus é "Vivo e eficaz como uma espada de dois gumes que penetra até às articulações da alma." (Hebreus 4, 12).
Cristo vive na história e na Igreja. Não estamos a falar de um dogma cristalizado, mas de uma pessoa viva, o segundo da Santíssima Trindade, que nos aparece na Escritura e na Tradição como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E, em particular, em Niceia, aparece-nos como consubstancial ao Pai: "A pregação de Jesus, a pregação dos primeiros discípulos, a sua palavra viva, semearam originalmente a fé nos corações muito antes de haver literatura cristã". (Karl AdamO Cristo da nossa fé).
A primeira chave desta celebração do Concílio de Niceia é que estamos a falar de Cristo vivo e com Ele celebramos este novo aniversário com outros cristãos, também eles vivos. Sem dúvida, a essência do cristianismo é Jesus presente na sua Igreja, o rosto de Deus, a história e a vida.
Recuemos até ao século IV, para descobrir as dúvidas de alguns cristãos enganados por um falso conceito de Deus. O que as sistemáticas e cruéis perseguições romanas ou as heresias gnósticas do século II não tinham conseguido, essa doutrina cativante parecia conseguir. Mais uma vez, provou que a mente humana racional deve, com a ajuda da graça, mergulhar nos mistérios da fé. Mas sempre guiado pelo Espírito Santo e pelo Magistério da Igreja, intérprete autêntico da Tradição dos Padres e dos significados da Sagrada Escritura.
O racionalismo foi apaziguado por uma figura humana perfeitíssima de Jesus Cristo, generoso, ousado, profundo, entregue pela humanidade até à cruz. Um homem tão santo que merecia ser chamado de Deus, mas que para Ário e seus seguidores não o era. Ao fazê-lo, salvaram o maniqueísmo: a união da matéria e do espírito que os orientais rejeitavam. Na realidade, tal mudança não passava de uma nova religião e, portanto, de uma traição à verdadeira fé revelada por Jesus Cristo, que afirmava com a sua vida, os seus actos e os seus milagres a divindade, a sua união inquebrantável da natureza com Deus Pai. Se Cristo não era Deus, não havia redenção, nem sacramentos, nem salvação.
O Papa e o Imperador
O Papa São Silvestre, com o apoio do Imperador Constantino, convocou o Concílio de Niceia. Graças à colaboração das autoridades civis, que fizeram tudo o que estava ao seu alcance para apoiar o Concílio, praticamente todos os bispos do mundo puderam deslocar-se a Niceia. Era do interesse do imperador assegurar a máxima unidade da Igreja, uma vez que se tratava de tempos difíceis para o Império Romano, que já estava em pleno declínio.
Quando os bispos se reuniram para o Concílio de Niceia, em 325, não eram poucos os que traziam no corpo as marcas das perseguições recentes: as mãos de Paulo de Neocessareia estavam paralisadas pelos ferros em brasa que sofrera. Dois bispos egípcios eram zarolhos. O rosto de S. Paphnutius estava deformado pelas cruéis torturas a que fora submetido, outros tinham perdido um braço ou uma perna.
Participaram 318 bispos que, assistidos pelo Espírito Santo, chegaram à solução expressa num credo. Nele se diz que Jesus Cristo é "Da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não feito, homoousiostou Patrou (consubstancial ao Pai)".. Embora a fórmula fosse eficaz, a controvérsia continuou depois.
Homoousios
A segunda chave para o Concílio de Niceia é a palavra grega chave para resolver a diatribe teológica: homoousiosJesus é consubstancial ao Pai" é um conceito grego que não estava na Bíblia. Este facto recorda-nos a importância do trabalho teológico, que terá sempre necessidade de interpretação e de correspondência com o conteúdo da Revelação dada à Igreja e, ao mesmo tempo, terá sempre de ser aperfeiçoado no decurso da história para corresponder o mais possível à verdade de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, para ser o mais inteligível possível para os homens de cada época. Os termos teológicos e a expressão da fé fizeram, sem dúvida, progressos de clarificação. A realidade é que a fé não é um jogo de palavras, é um amor pelo qual mártires e confessores ao longo da história deram a vida.
Não podemos deixar de recordar a figura de Santo Atanásio, o Patriarca de Alexandria que se tornou o campeão da verdade face a Ário. Isso custou-lhe ser expulso da sua sede pela autoridade civil em quinze ocasiões durante a sua vida. Para Atanásio, a chave era a redenção do género humano. Sublinhava que só Deus podia redimir o homem. Foi por isso que o Concílio de Nicéia afirmou que Jesus é da mesma natureza que o Pai.
Ao chegarmos ao fim destas linhas, recordemos que o Espírito Santo esteve presente e continuará a estar presente até ao fim dos tempos, velando pela unidade na variedade dos cristãos.