Vaticano

Francisco no Regina Coeli: "Somos sempre de grande valor para Cristo".

O Bom Pastor, que conhece cada um de nós pessoalmente, foi o foco das palavras do Papa neste Regina Coeli.

Maria José Atienza-21 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

Uma manhã de sol, não sem um certo frio, acompanhou as palavras do Papa Francisco antes de rezar o Regina Coeli da janela dos apartamentos papais.

Dirigindo-se a um grupo muito maior de fiéis reunidos na Praça de São Pedro, no Vaticano, o Papa sublinhou o facto de Deus, o Bom Pastor, amar cada criatura individualmente. "O Bom Pastor] pensa em cada um de nós como o amor da sua vida", recordou o Papa aos fiéis.

Esta ideia, sublinhou o pontífice, "não é uma figura de retórica". Cristo ama-nos porque, como um pastor, vive connosco dia e noite: "Ser pastor, especialmente no tempo de Cristo, não era apenas um trabalho, mas uma vida: não se tratava de ter uma ocupação particular, mas de partilhar dias inteiros, e mesmo noites, com as ovelhas, de viver em simbiose com elas", explicou o Papa.

O pontífice sublinhou que, no meio das crises existenciais de tantas pessoas que "se consideram inadequadas ou mesmo erradas, Jesus diz-nos que somos sempre de grande valor para Ele". E só podemos tomar consciência deste amor de Cristo procurando momentos "de oração, de adoração, de louvor, para estar na presença de Cristo e deixar-me acariciar por Ele".

Grito de paz

O Papa recordou o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, celebrado hoje pela Igreja Católica. Neste contexto, apelou à "construção da paz e à descoberta de uma polifonia de carismas na Igreja".

A paz foi o tema central da última parte das palavras do Papa antes das saudações. Francisco não esqueceu as zonas do mundo onde a paz ainda é um sonho.

Desta forma, convidou as pessoas a rezarem pela situação no Médio Oriente, que, como sublinhou, continua a preocupá-lo. O Papa reiterou o seu apelo "a não ceder à lógica da vingança da guerra" e pediu que "prevaleçam o diálogo e a diplomacia".

Também não esqueceu a guerra em Israel e na Palestina, nem a necessidade de continuar a rezar pelos mártires da Ucrânia e pediu orações pela alma de Matteo Pettinari, um missionário da Consolata que morreu num acidente de viação na Costa do Marfim.  

Vocações

Innocent Chaula: "Graças a Deus, temos muitas vocações nativas na Tanzânia".

Este domingo, as Obras Missionárias Pontifícias organizam o Dia das Vocações Nativas para angariar fundos para apoiar as vocações nascidas nos territórios de missão. Nesta entrevista, o Padre Innocent Chaula fala-nos do panorama vocacional no seu país, a Tanzânia.

Loreto Rios-21 de abril de 2024-Tempo de leitura: 5 acta

Domingo, 21 de abril, é o Dia das Vocações Nativas, organizado pelas Obras Missionárias Pontifícias para angariar fundos para apoiar as vocações emergentes nos territórios de missão. O sítio Web específico para este dia pode ser consultado em aqui.

Como exemplo de uma vocação autóctone, Omnes entrevistou o Padre Inocêncio Chaula. Natural de TanzâniaSentiu o chamamento da vocação quando era muito jovem. Atualmente, está a estudar na Universidade Eclesiástica de São Dâmaso, em Madrid, e regressará à sua diocese de origem quando terminar a sua formação. Nesta entrevista, fala da situação das vocações autóctones no seu país e da importância das Obras Missionárias Pontifícias na ajuda a estas vocações. Atualmente, as POM apoiam 725 seminários em todo o mundo e o apoio financeiro para o ano de 2023 ascende a 16 247 679,16 euros.

Como foi o teu processo vocacional?

Nasci em Njombe, na Tanzânia, em 1983, numa família meio cristã e meio pagã. Senti a vocação para o sacerdócio quando era muito novo, com 5 anos, parecia uma brincadeira. Graças ao trabalho dos Missionários da Consolata, em particular do Padre Camillo Calliari IMC, e à fé da minha mãe, o chamamento foi progredindo passo a passo até ao momento em que escrevi a carta para ser formado como seminarista diocesano na diocese de Njombe.

A minha formação sacerdotal começou no Seminário Menor de São José - Kilocha, em Njombe, e depois no Seminário Maior de Santo Agostinho-Peramiho, em Songea. Fui ordenado em 2014. Atualmente, estou a estudar teologia dogmática na Universidade Eclesiástica de São Dâmaso, em Madrid.

Qual é a situação atual das vocações autóctones na Tanzânia?

Graças a Deus, temos muitas vocações nativas na Tanzânia. Temos sete seminários maiores (um construído há 6 anos) com mais de 1500 seminaristas, 25 seminários menores e mais de 86 congregações religiosas com mais de 12000 religiosos.

Qual é o trabalho da OMP em relação a estas vocações?

As Obras Missionárias Pontifícias têm um ramo, a Obra de São Pedro Apóstolo, que é um serviço missionário da Igreja destinado a apoiar as vocações que surgem nos territórios de missão. A Obra de S. Pedro Apóstolo (POSPA) foi criada para apoiar o clero autóctone. A sua missão é acompanhar muitos jovens que desejam responder à chamada ao sacerdócio ou à vida consagrada, mas que não dispõem dos recursos necessários para completar a sua formação.

Em relação a estas vocações, ele ajuda-nos de várias maneiras: com a oração, rezando pelas vocações autóctones. Esta é a vossa primeira ajuda, porque é uma rede de orações por esta causa; e com apoio financeiro ou material para as seguintes:

-Construção/reabilitação de seminários maiores e menores e de centros de formação.

-Bolsas de estudo para seminaristas, para ajudar nas despesas ordinárias da vida no seminário e nos centros de formação (seminários propedêuticos nas dioceses e noviciados nas congregações).

-Subsídios para formadores de seminários maiores e menores.

Como é celebrado o Dia das Vocações Nativas na Tanzânia?

Colaboremos com a Obra Pontifícia de São Pedro e façamos uma semana de preparação para o dia, convidando todos a rezar pelas vocações (como uma novena). Isto faz-se tanto nas paróquias como nas pequenas comunidades cristãs e nas famílias.

Nesse mesmo dia, muitos paroquianos fazem uma contribuição ou uma coleta para apoiar as vocações autóctones. Como são pobres, os donativos são muito pequenos. Em vez de contribuírem com muito dinheiro, as pessoas fazem uma doação de alimentos das suas quintas. Essa é a riqueza que muitas pessoas têm nas aldeias. A maior parte dos donativos são vacas, cabras, galinhas, arroz, milho, feijão, frutos de todo o género. Por isso, é necessário que a diocese ou a paróquia tenha um camião ou uma carrinha para levar tudo das aldeias para o seminário ou para o centro de formação.

A capacidade de dar e colaborar não se mede apenas pela quantidade de dinheiro ou de bens que alguém possui, mas pela vontade e pelo coração com que se oferece. É importante saber que mesmo que as pessoas sejam pobres, elas estão dispostas a contribuir com o que têm.

Que desafios pastorais encontra no seu país para que as vocações possam continuar a crescer?

Na Tanzânia, a Igreja Católica enfrenta uma série de desafios pastorais para que as vocações possam continuar a crescer. Alguns desses desafios incluem:

-Pobreza e falta de recursos: Muitas zonas da Tanzânia são pobres, o que pode limitar o acesso à educação e à formação necessárias para as vocações religiosas. A falta de recursos económicos para apoiar os seminaristas e os candidatos à vida religiosa pode ser um obstáculo significativo.

-Acesso à educação e à formação: Em algumas regiões, o acesso a uma educação de qualidade e a programas de formação religiosa pode ser limitado. Este facto torna difícil preparar adequadamente os jovens que desejam seguir uma vocação religiosa.

-Pressão cultural e social: Em algumas comunidades, existe uma pressão cultural e social que desencoraja a escolha da vida religiosa ou sacerdotal. Os jovens podem enfrentar resistência ou falta de compreensão por parte das suas famílias e comunidades quando exprimem o seu desejo de seguir uma vocação religiosa.

-Interação com outras religiões: A Tanzânia é um país religiosamente diverso, com uma mistura de cristianismo, islamismo e tradições indígenas. A Igreja Católica deve encontrar formas de dialogar com as outras religiões e culturas de uma forma respeitosa e construtiva.

-Mudança cultural e secularização: Tal como noutras partes do mundo, a Tanzânia também enfrenta o desafio da secularização e da mudança cultural, que podem influenciar o declínio das vocações religiosas. A sociedade moderna e os seus valores podem competir com os apelos vocacionais.

Quais são, na sua opinião, as razões pelas quais há mais vocações em África do que na Europa?

Isto pode dever-se a uma série de factores:

-Pastoral familiar e juvenil: Uma pastoral familiar e juvenil eficaz na Tanzânia não só reforça a fé e a vida espiritual das pessoas, mas também cria um ambiente propício ao florescimento das vocações nativas. Ao centrar-se na formação holística, no acompanhamento, na educação para a fé e na promoção ativa das vocações, a Igreja na Tanzânia pode inspirar e orientar mais jovens a seguir o seu chamamento para servir Deus e a comunidade.

-Força da fé: Em muitos países africanos, a fé católica é parte integrante da vida quotidiana e cultural das comunidades. Esta força da fé pode inspirar mais jovens a considerar a vida religiosa ou sacerdotal.

-Necessidade de serviço pastoral: Nas zonas rurais e menos desenvolvidas, a necessidade de serviços pastorais é elevada. Isto pode motivar mais pessoas a responder ao chamamento para servir as suas comunidades como padres ou religiosos.

Contexto socioeconómico: Na Europa, a sociedade passou por mudanças socioeconómicas significativas, incluindo um aumento do secularismo e uma diminuição da prática religiosa em algumas regiões. Em contrapartida, na Tanzânia e noutros países africanos, a religião continua a ser uma parte importante da identidade cultural e social.

-População jovem: A Tanzânia tem uma população jovem, com muitos jovens à procura de um objetivo e de um sentido para as suas vidas. A vida religiosa pode oferecer-lhes uma forma significativa de viver a sua fé e servir os outros.

-Apoio da comunidade: Em muitas comunidades africanas, existe um forte apoio da comunidade àqueles que escolhem a vida religiosa ou sacerdotal. Este apoio pode encorajar mais jovens a seguir este caminho.

-Acesso a recursos: Embora os recursos possam ser limitados em comparação com a Europa, a solidariedade comunitária e o apoio de organizações missionárias como a Obra Pontifícia de São Pedro podem ajudar a superar estes desafios e facilitar a formação vocacional.

É importante notar que cada país e cada cultura têm o seu próprio contexto único e que as vocações religiosas são influenciadas por uma variedade de factores. O que é certo é que, tanto na Tanzânia como na Europa, as vocações religiosas são um testemunho do chamamento de Deus e do desejo dos indivíduos de viverem a sua fé de forma empenhada e de servirem a Igreja e a comunidade.

Mundo

As origens das actuais relações entre a Europa e a Turquia

Com este artigo, o historiador Gerardo Ferrara prossegue uma série de três estudos em que nos dá a conhecer a cultura, a história e a religião da Turquia.

Gerardo Ferrara-21 de abril de 2024-Tempo de leitura: 6 acta

De acordo com a Constituição da República da Turquia, o termo "turco", de um ponto de vista político, inclui todos os cidadãos da República, independentemente da sua etnia ou origem étnica. religião. As minorias étnicas, de facto, não têm estatuto oficial.

Entre a modernidade e a tradição, o laicismo e o renascimento do Islão

As estatísticas mostram que a maioria da população fala turco como língua materna; uma minoria considerável fala curdo, enquanto um pequeno número de cidadãos utiliza o árabe como primeira língua. Embora as estimativas da população curda na Turquia nem sempre tenham sido fiáveis, no início deste século, os curdos representavam aproximadamente um quinto da população do país. Estão presentes em grande número na Anatólia oriental, onde constituem a maioria da população em várias províncias. Outros grupos étnicos minoritários, para além dos curdos e dos árabes, são os gregos, os arménios e os judeus (que vivem quase exclusivamente em Istambul), bem como os circassianos e os georgianos, que vivem principalmente na parte oriental do país.

Tal como noutros países do Médio Oriente, o modelo patriarcal e patrilinear sobrevive na Turquia na maior parte das zonas rurais, onde as famílias se reúnem em torno de um chefe e formam verdadeiras estruturas de solidariedade e sociais no seio da aldeia, vivendo muitas vezes em espaços comuns ou adjacentes. Nestas zonas, onde a sociedade tradicional continua a ser o modelo dominante, as práticas e os costumes ancestrais sobrevivem e permeiam todas as fases da vida familiar (considerada o centro da sociedade, muitas vezes em detrimento do indivíduo): desde a celebração do casamento, ao parto, à circuncisão dos filhos.

De acordo com as estatísticas oficiais, 99 % da população turca é muçulmana (10 % xiita).

Para além da maioria muçulmana, existem também pequenas minorias de judeus e cristãos (estes últimos divididos entre ortodoxos gregos, ortodoxos arménios, católicos e protestantes).

O país é constitucionalmente laico. De facto, desde 1928, devido a uma alteração constitucional, o Islão deixou de ser considerado a religião oficial do Estado. Desde então, têm-se registado numerosos momentos de tensão provocados pelo laicismo rigoroso imposto pelas instituições, entendido por alguns como uma restrição à liberdade religiosa. Por exemplo, o uso do véu (bem como do toucado tradicional turco, o tarbush) foi durante muito tempo proibido em locais públicos, até que uma nova alteração constitucional, aprovada em fevereiro de 2008, no meio de grande controvérsia, permitiu que as mulheres voltassem a usá-lo nos campus universitários.

Além disso, até 1950, o ensino da religião não era permitido; só depois desta data é que a lei estatal permitiu a criação de escolas religiosas e de faculdades universitárias de teologia, bem como o ensino da religião nas escolas públicas. Este facto revela um elemento bastante interessante: para além de uma elite secular e urbanizada, uma grande parte da população da Turquia rural continua profundamente enraizada na fé islâmica e nos valores tradicionais.

Ao longo dos anos, as forças armadas têm vindo a afirmar constantemente a sua prerrogativa de garante do secularismo turco, cuja importância consideram fundamental, ao ponto de intervirem por diversas vezes na vida pública do Estado sempre que se percepciona qualquer tipo de ameaça ao próprio secularismo, que, nos últimos tempos, parece mais questionado do que nunca, quer pela presença de um presidente, Recep Tayyp Erdoğan (que, juntamente com o partido que o apoia, o AKP, se declara islamista moderado), quer pelo despertar generalizado de reivindicações religiosas em todos os domínios.

O movimento de Fethullah Gülen

Fethullah Gülen nasceu em 1938. Filho de um imã, Gülen foi discípulo de Said Nursi, um místico de origem curda falecido em 1960, e, tendo-se tornado teólogo muçulmano, fundou um movimento de massas - baseado no apoio de voluntários apaixonados que contribuíam também com os seus próprios recursos financeiros para a causa - que, a partir da educação de estudantes na década de 1970, chegou a contar, só na Turquia (onde foi inicialmente apoiado por Erdoğan, que mais tarde se tornou seu arqui-inimigo), na medida em que o próprio Gülen chegou a contar com o apoio de Erdoğan, que mais tarde se tornou seu arqui-inimigo, chegou a contar, só na Turquia (onde foi inicialmente apoiado por Erdoğan, que mais tarde se tornou seu arqui-inimigo, ao ponto de o próprio Gülhen ter sido acusado de ser um dos instigadores do golpe falhado de 2016 contra Erdoğan), com mais de um milhão de seguidores e mais de 300 escolas islâmicas privadas. Diz-se que mais de 200 instituições de ensino difundem as ideias de Gülen no estrangeiro (especialmente nos países de língua turca da antiga zona soviética, onde a necessidade de recuperar uma identidade étnica e espiritual após séculos de obscurantismo é mais forte). Além disso, os seus apoiantes têm um banco, várias estações de televisão e jornais, um sítio Web multilingue e instituições de caridade.

O movimento de Fethullah Gülen é apresentado como uma continuação natural da obra de Said Nursi, que defendia a necessidade de lutar contra o ateísmo utilizando não só as armas da fé, mas também as da modernidade e do progresso, unindo-se aos cristãos e aos seguidores de outras religiões para atingir esse objetivo. Por esta razão, tornou-se famoso, tanto no seu país (de onde, aliás, optou por se mudar para os Estados Unidos devido ao risco de acusações contra ele por parte das instituições turcas, que, juntamente com a elite laica, o consideram um perigo inaceitável) como no seu país (de onde, aliás, optou por se mudar para os Estados Unidos devido ao risco de acusações contra ele por parte das instituições turcas, que, juntamente com a elite laica, o consideram um perigo inaceitável), Chegou mesmo a encontrar-se com personalidades das principais confissões, como o Papa João Paulo II em 1998 e vários patriarcas e rabinos ortodoxos.

Na realidade, o principal objetivo do movimento de Gülen é fazer com que o Islão volte a ser o protagonista do Estado e das instituições turcas, exatamente como era no tempo dos otomanos, e fazer do seu país um líder esclarecido para todo o mundo islâmico, especialmente para o mundo de língua turca. Daqui decorre que a matriz do próprio movimento é islâmica e nacionalista pan-turca e que, pela sua própria natureza, está obrigada a colidir com outro tipo de nacionalismo presente na Turquia, o secular e kemalista, que, por um lado, olha para a Europa e para o Ocidente como parceiros ideais de Ancara, mas que, por outro lado, não aborda as questões pendentes que continuam a prejudicar a imagem do país no mundo e a causar sofrimento a povos inteiros: os curdos e os arménios, bem como os gregos e os cipriotas do Norte.

Turquia e Europa

A Turquia apresentou o seu pedido de adesão à Comunidade Europeia (atualmente integrada na UE) em 1959, tendo sido assinado um acordo de associação em 1963. Em 1987, o então Primeiro-Ministro Özal solicitou a adesão plena. Entretanto, os laços económicos e comerciais entre a Turquia e a UE (já em 1990, mais de 50 % das exportações de Ancara destinavam-se à Europa) tornaram-se cada vez mais fortes, dando um impulso considerável às exigências da República da Turquia em Bruxelas, que, no entanto, ainda nutre fortes desconfianças em relação ao país euro-asiático, principalmente devido à política de direitos humanos da Turquia (em particular a questão curda, a analisar no próximo capítulo), A questão curda, que será analisada num próximo artigo), a sensível questão cipriota e o crescente recrudescimento dos conflitos entre laicos e religiosos (outro motivo de preocupação é o fortíssimo poder dos militares no país, enquanto guardiões da Constituição e da laicidade do Estado, que ameaça seriamente algumas liberdades fundamentais dos cidadãos).

Apesar destas reticências, foi estabelecida uma união aduaneira entre Ancara e a UE em 1996, enquanto os sucessivos governos turcos multiplicavam os seus esforços na esperança de uma adesão iminente: seguiram-se reformas nos domínios da liberdade de expressão e de imprensa, da utilização da língua curda, da inovação do código penal e da limitação do papel dos militares na política. Em 2004, foi abolida a pena de morte. No mesmo ano, a UE convidou a Turquia a contribuir para a resolução do conflito de longa data entre cipriotas gregos e cipriotas turcos, encorajando a fação turca - que ocupa, com o apoio de Ancara, o norte do país - a apoiar o plano de unificação patrocinado pela ONU, que deveria preceder a entrada de Chipre na União Europeia. Embora os esforços do governo de Ancara tenham conseguido que a população de língua turca do norte votasse a favor do plano, a esmagadora maioria grega do sul rejeitou-o. Assim, em maio de 2004, a ilha passou a fazer parte da UE como um território dividido e só a parte sul da ilha, sob o controlo do governo cipriota reconhecido internacionalmente, obteve os direitos e privilégios da adesão à UE.

As negociações formais para a adesão da Turquia à UE começaram finalmente em 2005. No entanto, as negociações estão atualmente paradas porque Ancara, embora reconheça Chipre como um membro legítimo da UE, continua a recusar-se a dar ao governo cipriota o pleno reconhecimento diplomático e a abrir o seu espaço aéreo e marítimo a aviões e navios cipriotas. Os problemas políticos, no entanto, são apenas um pequeno aspeto da mais complexa questão turco-europeia.

Erdoğan

Não é apenas Chipre que se interpõe no caminho da adesão da Turquia à UE. O próprio Presidente Recep Tayyip Erdoğan é um símbolo do equilíbrio oscilante da Turquia entre o Oriente e o Ocidente.

Erdoğan, nascido em 1954, ocupou vários cargos políticos antes de se tornar presidente da Turquia em 2014. Emergiu como uma figura de destaque na política turca durante a década de 1990, como presidente da câmara de Istambul, numa plataforma islâmica conservadora. Em 2001, co-fundou o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), que levou à vitória eleitoral em 2002. Durante o seu mandato, Erdoğan conduziu o país a um período de crescimento económico. No entanto, o seu governo também tem sido objeto de controvérsia sobre a democracia, os direitos humanos e a liberdade de imprensa. Erdoğan consolidou efetivamente o poder através de reformas constitucionais (incluindo a reforma de 2017 sobre o presidencialismo) e enfrentou críticas internas e internacionais pelas suas políticas autoritárias, incluindo a repressão da oposição política e a restrição da liberdade de expressão. A sua política externa tem-se caracterizado por um envolvimento ativo em conflitos regionais (incluindo o apoio a vários movimentos fundamentalistas islâmicos) e por uma política oportunista em relação aos parceiros internacionais.

Com a sua derrota nas últimas eleições autárquicas, em março de 2024, nas maiores cidades do país, a era Erdoğan pode estar a caminhar para o declínio. Ou será que está?

O autorGerardo Ferrara

Escritor, historiador e especialista em história, política e cultura do Médio Oriente.

Evangelização

Missões na Espanha vazia com os jovens do Regnum Christi

"Servindo, entra-se no mistério de um Deus que se dá", diz Idris Villalba, que com esta frase dá a chave das missões que levou a cabo nesta Semana Santa com um grupo do Regnum Christi.

Paloma López Campos-20 de abril de 2024-Tempo de leitura: 4 acta

A "Espanha vazia" é uma preocupação para muitos, incluindo a Igreja. Por isso, não é de estranhar que durante o Páscoa Um grupo de católicos decidiu fazer uma viagem de missão a uma aldeia rural da Estremadura para ajudar nas actividades pastorais. Carlos Piñero, vigário para os assuntos económicos e pároco de duas aldeias, Valdefuentes e Montánchez, na diocese de Coria-Cáceres, recebeu durante uma semana alguns jovens da Regnum Christi.

Don Carlos explica que Valdefuentes e Montánchez "são duas aldeias que ficam a cerca de 50 quilómetros de Cáceres e que estão a viver uma situação de Espanha esvaziada. Pouco a pouco, os jovens vão-se embora, os restantes habitantes são idosos e a taxa de mortalidade é elevada". Além disso, "os jovens que ficam não têm o ponto de referência de outros jovens que também vivem a fé".

O caso de Montánchez é um pouco mais especial, uma vez que se trata de "uma cidade com uma tradição religiosa muito enraizada, pois a presença de comunidades religiosas é notória desde há anos". No entanto, o pároco sublinha que "falta ainda a referência de um apostolado mais empenhado".

O espírito das missões

Por isso, quando o grupo de missionários organizado por Idris Villalba chegou à Extremadura, Dom Carlos pediu-lhes "que ajudassem as pessoas a celebrar a Semana Santa. Envolver-se nas diferentes actividades dos grupos das aldeias para que durante estas celebrações se sintam ainda mais orgulhosos".

Ao mesmo tempo, o vigário e pároco queria, por um lado, que o grupo de jovens da cidade mostrasse que "se pode desfrutar da Semana Santa envolvendo-se com a Igreja". Por outro lado, queria também que "os missionários conhecessem as pessoas por quem Jesus tem preferência, como as pessoas que estão a passar por uma doença, um luto, ou que estão sozinhas".

Perante estes pedidos, o missionário Idris Villalba explica que a ideia do grupo "era disponibilizar-se para o que Deus quisesse fazer acontecer através deste projeto". No entanto, o que encontraram quando chegaram foi algo diferente do que estavam à espera, "mas foi muito proveitoso".

Idris afirma que a "Espanha vazia" para onde foram "não é assim tão vazia". Encontraram uma comunidade para acompanhar "na sua vida quotidiana, desde um momento de oração de manhã com algumas freiras até à visita às pessoas para lhes dar a comunhão e ajudar pessoalmente os habitantes em situações de dificuldade". Ajudam também o pároco nas celebrações litúrgicas.

O missionário resume o seu trabalho na diocese dizendo: "Testemunhámos, numa Semana Santa normal, nas aldeias onde estivemos, que hoje há pessoas que acreditam que vale a pena dar vários dias da sua vida ao serviço dos outros". 

Missões e recoleção

Missões Regnum Christi 2024
Interior da igreja durante uma celebração da Semana Santa

A Semana Santa é um tempo litúrgico especial de recolhimento e contemplação. Esta ideia pode entrar em conflito com a atividade missionária, que consiste em "ir para fora". Idris explica que isso implica "o risco de ficar na superficialidade". De facto, quando partiu com o seu grupo para estas aldeias da Estremadura, pensou "que ia passar uma Semana Santa ativa e ocupada, à imagem de Marta na casa de Betânia". Mas aconteceu o contrário.

"Apesar de termos passado muito tempo com as pessoas com quem estivemos, muitos desses momentos foram passados com o próprio Cristo". Idris sublinha que "no nosso próximo está Cristo. Ao servir, entramos no mistério de um Deus que se dá". Isto, combinado com a oração e a liturgia, assegurou que "tudo estava perfeitamente coordenado para fazer esta dupla experiência de 'fazer muito' e 'ser muito'".

Identificar-se com Cristo na Páscoa

Esta dedicação dos missionários aos aldeões teve um impacto em Idris: "Quanto mais nos damos, mais recebemos, e então apercebemo-nos de que por detrás de cada rosto há uma pessoa salva por Cristo". O jovem católico garante que "encontramos Cristo nas pessoas. Além disso, nesta vida quotidiana, Deus faz pequenos milagres diários que, se estivermos atentos, podemos ver, o que também nos ajuda a estar gratos e a encontrá-lo".

Idris descobriu naqueles dias da Semana Santa "o trabalho missionário a que nós, cristãos do século XXI, somos chamados". Algo que, curiosamente, "muitas pessoas que já servem a Igreja conhecem, pois são normalmente pessoas que sofreram muito, mas que se encontraram com Cristo em algum momento e deixaram tudo para trás pelo tesouro escondido que encontraram, à maneira da parábola do Evangelho". É aqui, pensa Idris, que reside o segredo do "hospital de campanha" de que fala o Papa Francisco.

O impacto das missões

Missões Regnum Christi
Três dos jovens membros do Regnum Christi que partiram em missão

Quando regressam a casa, os missionários podem fazer um balanço da sua atividade na aldeia. Mas, como diz Idris, "é impossível quantificar as consequências das nossas acções, talvez elas possam ser vistas ao longo do tempo. Não sabemos a quem tocámos e não sabemos o que mexemos ou despertámos na comunidade".

Por seu lado, Don Carlos Piñero, que conhece bem os seus paroquianos, afirma que "houve um impacto muito agradável em muito pouco tempo". Graças à presença dos jovens do Regnum Christi "as pessoas viram uma atitude desinteressada e capaz, que ajudou a revitalizar a fé".

Estes jovens que vieram da cidade, conclui o pároco, "não foram pessoas que vieram apenas para participar, mas que vieram e contribuíram com o que podiam. Deram um excelente testemunho da atitude que nós próprios queremos ter".

Recursos

A Santa Sé e os "novos direitos" da humanidade

Na recente declaração "Dignitas Infinita" do Dicastério para a Doutrina da Fé, há um tema abrangente que, de facto, está subjacente a grande parte da atividade diplomática da Santa Sé hoje: a questão dos novos direitos.

Andrea Gagliarducci-20 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Muito se tem falado sobre o "Dignidades Infinitas"O Dicastério para a Doutrina da Fé, concentrando-se especialmente nas questões da luta contra a ideologia de género, o repetido não ao aborto e à eutanásia, e a ideia de considerar mesmo questões sociais como a pobreza como um ataque à dignidade humana. No entanto, há um tema abrangente que, de facto, está subjacente a grande parte da atividade diplomática da Santa Sé hoje em dia: a questão dos novos direitos.

No 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, data da publicação do documento, a Santa Sé reafirmou repetidamente o seu apoio a esses direitos primitivos, enraizados na própria essência do ser humano e sobre os quais existe um amplo e unânime consenso. Afinal, na altura em que a Declaração Universal foi redigida, após a tragédia do nazismo, havia necessidade de normas internacionalmente reconhecidas que defendessem os valores humanos. 

Ao mesmo tempo, a Santa Sé não deixou de apontar o dedo aos chamados "direitos de terceira e quarta geração", sobre os quais não existe um consenso geral e cuja legitimidade não é muito clara. Os direitos de terceira geração são os definidos como o direito à proteção do ambiente e o direito à educação. Depois, há a quarta geração de direitos humanos, definida como o direito ao auto-desenvolvimento, na qual se enquadram e são desencadeadas muitas das iniciativas a favor do género.

Dignidade humana

O que diz "Dignitas Infinita"? Sublinha que, por vezes, "o conceito de dignidade A "dignidade humana do ser humano chega a justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos", alguns até "contrários aos originalmente definidos", transformando a dignidade numa "liberdade isolada e individualista, que pretende impor como direitos certos desejos e propensões que são objectivos". 

No entanto, acrescenta o documento, "a dignidade humana não pode basear-se em critérios puramente individuais ou identificar-se apenas com o bem-estar psicofísico do indivíduo", mas "baseia-se, pelo contrário, em exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem da arbitrariedade individual nem do reconhecimento social". 

Mais uma vez, lemos, é necessário um "conteúdo concreto e objetivo baseado na natureza humana comum" para certificar os novos direitos. 

Novos direitos

A questão é amplamente debatida. A referência a estes novos direitos, sob diferentes formas, pode ser encontrada em vários documentos internacionais, onde, por exemplo, a terminologia de género é também introduzida em questões relacionadas com o acolhimento de migrantes ou a assistência humanitária. Curiosamente, o Papa Francisco já abordou o tema no seu discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé em 2018.

Nessa ocasião, o Papa observou que "na sequência das convulsões sociais do movimento de 1968, a interpretação de certos direitos foi-se modificando progressivamente até incluir uma multiplicidade de novos direitos, não raro em conflito uns com os outros".

Isto, continuou o Pontífice, criou o risco "algo paradoxal" de que "em nome dos próprios direitos humanos se estabeleçam formas modernas de colonização ideológica dos mais fortes e mais ricos em detrimento dos mais pobres e mais fracos".

O Santo Padre foi mais longe, sublinhando que não são apenas a guerra ou a violência que violam os direitos à vida, à liberdade e à inviolabilidade de toda a pessoa humana, mas existem formas mais subtis, como o descarte de crianças inocentes ainda antes de nascerem. Por esta razão, para além do compromisso com a paz e o desarmamento, o Papa apelou a uma resposta que preste também uma nova atenção à família.

A posição da Santa Sé

A questão é que a Santa Sé tenta olhar para todos os cenários de uma forma que tenta abranger todos os problemas actuais.

Qual é a origem da atitude da Santa Sé em relação aos novos direitos? Do facto de trazerem uma nova visão antropológica que se afasta da visão da proposta cristã, e que priva a pessoa das três dimensões da relação consigo mesma, da relação com Deus e da relação com os outros.

A Santa Sé vê nisso um risco de destruição da dignidade do ser humano. O Cardeal Pietro Parolin explicou numa entrevista em 2022 que "esta não é uma luta ideológica da Igreja. A Igreja lida com estas questões porque tem cuidado e amor pelo homem, e defende a pessoa humana na sua dignidade e nas suas escolhas mais profundas. Trata-se, de facto, de falar de direitos, e de falar deles com amor pelo homem, porque vemos os desvios que resultam dessas escolhas".

É uma batalha difícil para a Santa Sé, que não só não é ouvida, como até cria incómodos sempre que se opõe à difusão dos novos direitos. Assim, o documento "Dignitas Infinita" coloca um outro ponto na questão e fornece aos diplomatas da Santa Sé um novo instrumento para abordar a questão dos novos direitos. É certamente a questão do futuro, mas também do presente.

O autorAndrea Gagliarducci

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Cultura

Giuseppe Pezzini: "Segundo Tolkien, a fantasia ajuda a recuperar o espanto da realidade".

Giuseppe Pezzini, professor em Oxford, participa atualmente no colóquio "Tolkien: a atualidade do mito", que se realiza na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma. Nesta entrevista, ele fala sobre conceitos fundamentais do pensamento de Tolkien, como a subcriação e sua teoria da fantasia.

Loreto Rios-19 de abril de 2024-Tempo de leitura: 7 acta

Giuseppe Pezzini trabalha em Oxford desde 2021, embora na verdade esteja na prestigiada universidade inglesa desde 2006, tendo aí feito toda a sua carreira académica, incluindo o doutoramento e o pós-doutoramento. Atualmente, é professor de latim e de literatura latina, além de dirigir um centro de investigação sobre Tolkien na universidade, no qual colaboram muitos dos seus colegas de Oxford.

Atualmente, participa no VIII Congresso Internacional de Poética e Cristianismo".Tolkien: O mito de Tolkien hoje"O evento terá lugar na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma, de 18 a 19 de abril, com oradores como Eduardo Segura, John Wauck e Oriana Palusci, entre outros.

O que é "sub-criação", um termo cunhado por Tolkien?

É preciso entender o prefixo "sub", no sentido de que a palavra "criação" já sabemos o que significa, "criar algo novo", algo que não existia antes, e isso é importante, não significa apenas "reorganizar" as coisas. Com o prefixo "sub", porém, significa que, quando uma criatura cria, o faz sob a autoridade de outra. Há uma autoridade superior a ela, um Criador que é quem verdadeiramente dá o ser a tudo, porque o homem não é capaz de dar efetivamente o ser ao nada.

Tolkien diz no início do Silmarillion, onde vemos como o conceito de subcriação é introduzido de forma muito clara, que os Ainur, os artistas e subcriadores por excelência no universo de Tolkien, colaboram com o desígnio de Eru, o único Deus criador do mundo de Tolkien, mas o ser da sua criação não é dado por eles, mas por Deus. Poder-se-ia usar a imagem do parto: a mulher dá à luz uma criança, mas a alma, o ser da criança, não é dado pela mulher. Isto significa "subcriar": criar sob a autoridade de outrem. Mas, além disso, e este é também um significado do prefixo "sub", significa fazê-lo "em nome", como se diria em inglês, por ordem de outro: a subcriação é algo que nos foi confiado. Portanto, podes fazê-lo porque um outro, que é o Criador com c maiúsculo, te confiou essa tarefa.

No Senhor dos Anéis, Gandalf diz a certa altura a Denethor que ele [Gandalf] é um administrador, um guardião, uma pessoa a quem foi confiada uma tarefa. Na subcriação, tenho de aceitar que o ser não é dado por mim, mas, positivamente, faço-o porque me foi confiado esse dever. Portanto, é também uma vocação, não é apenas um passatempo pessoal, um capricho, mas uma tarefa que me é dada e à qual devo responder. A subcriação é o convite à criação.

A sua conferência intitula-se "Precisarão de madeira": subcriação e ecologia integral em Tolkien. Qual é o conceito de "ecologia" na obra de Tolkien?

Etimologicamente, em grego, "ecologia" é o estudo do "oikos", que é sobretudo a casa, entendida como o mundo natural. Mas, mais precisamente, a ecologia, desenvolvendo o sentido etimológico, é o estudo das relações entre as criaturas. A ecologia, para Tolkien, não é apenas, num sentido mais restrito, a relação com a natureza, mas a relação entre todas as identidades vivas do mundo. Penso que em Tolkien a natureza não deve ser entendida como algo estático, como uma rocha.

O objeto da ecologia é tudo o que cresce, é o estudo da relação entre tudo o que cresce no mundo, e a ecologia está intimamente ligada à ideia de subcriação, porque o subcriador é sempre um jardineiro. Foi confiado a um jardineiro o crescimento de uma planta, de um campo, mas as sementes desse campo foram plantadas por outra pessoa e, por isso, a tarefa do subcriador é cuidar do crescimento desses outros elementos.

Ecologia significa cuidar das vidas que nos foram confiadas, portanto não é apenas respeito ou contemplação da vida de outras criaturas, mas é a relação que os seres vivos têm com outros seres vivos. E essa relação é sempre subcriativa, ou seja, tem como objetivo ajudar-nos a crescer, é sempre um desenvolvimento. Isto é muito interessante, porque há algumas visões ecológicas que concebem a ecologia como um "desengajamento", uma passividade, "deixo as coisas seguirem o seu curso".

A ecologia tenta ajudar a natureza a desenvolver-se. Vemos isso, por exemplo, na relação entre os Ents e as árvores, mas também Merry e Pippin crescem literalmente após o seu encontro com os Ents. O próprio Gandalf é também um ambientalista, poderíamos dizer que o seu objeto são os hobbits. Ele tem a tarefa dos Valar de cuidar das outras criaturas. A ligação entre os hobbits e Gandalf é ecológica e também subcriativa, porque os dois estão ligados.

O senhor comentou em algumas ocasiões que Tolkien considerava que a função da fantasia era "recuperar a maravilha da realidade". Qual é a teoria da imaginação de Tolkien?

Todas estas questões, de facto, subcriação, ecologia e imaginação, estão relacionadas, de diferentes pontos de vista. O que é a "imaginação"? Tolkien chama-lhe "Fantasia". Ele usa a palavra imaginação também, obviamente, mas no ensaio "On Fairy Tales", o termo que ele usa é "Fantasy". Significa, diz Tolkien numa carta, usar as nossas capacidades dadas por Deus para colaborar na criação. Quando subcriamos, o instrumento cognitivo que usamos é a imaginação, estamos a criar um mundo alternativo, ou melhor, estamos a acrescentar um ramo à árvore do mundo, que é outra imagem que Tolkien usa: a criação de Deus como se fosse uma árvore gigantesca e a subcriação como se fosse um ramo dentro dessa árvore.

A árvore da criação, ou a árvore da realidade, tal como a conhecemos, tem um certo ponto sub-criador: faz crescer uma nova planta que, no início, parece ser diferente da árvore. Essa planta nasce da imaginação, é diferente da realidade, não é mimética, não é um espelho do que já existe, é algo novo, mas depois, com o tempo, o sub-criador compreende que, na realidade, essa planta que parecia ser diferente é, de facto, um ramo escondido da árvore.

Um aspeto importante é o facto de a imaginação não poder necessariamente utilizar as regras realistas do mundo, pois nesse caso seria outra coisa. A imaginação, por natureza, confunde: as folhas verdes tornam-se cor-de-rosa, o céu cinzento ou azul torna-as roxas, e esta perturbação dos elementos da realidade está no cerne da imaginação. Esta perturbação dos elementos da realidade está no centro da imaginação. E porque é que é tão importante? Tolkien diz-o bem no ensaio "On Fairy Tales": porque ajuda a "desfamiliarizar" a realidade.

A grande tentação do homem é possuir a realidade, acreditar que ela é algo que ele já conhece. O grande risco que o homem, a criatura, corre perante a criação é o de perder o espanto. Para usar uma imagem, é como se alguém compilasse o que há na realidade e o colocasse na sua cabana, no seu "tesouro", como Smaug, o seu "tesouro": já sei isto, já o compreendo, já o sei, já o sei.

A imaginação é um dom dado por Deus aos homens para ajudar a libertar o que foi encerrado na prisão da nossa possessividade. E é por isso que tem de ser surpreendente, é por isso que não pode ser realista, é por isso que tem de haver monstros, dragões, hobbits, tudo o que nos faça desconhecer o que já conhecemos. Isso ajuda a compreendê-lo melhor e a recuperar, diz Tolkien, um olhar puro sobre a realidade, de surpresa, porque o único olhar verdadeiro sobre a criação é um olhar de espanto.

A imaginação humana ajuda a recuperar esse olhar, subvertendo as regras da realidade, e fá-lo no seio de uma experiência subcriativa, não separada da grande árvore da criação, mas como um novo ramo que lhe é acrescentado.

Tolkien afirma em suas cartas que não tinha um plano pré-estabelecido ao escrever. Afirmou que "a coisa mais católica em O Senhor dos Anéis é o seu processo de composição". Pode comentar esta ideia?

Sim, esse é um elemento importante da ideia de literatura de Tolkien. Assim como a subcriação é análoga à criação no sentido de que cria algo novo, a subcriação é análoga à criação no sentido de que é gratuita. Isto significa que - Tolkien diz bem numa carta - quando Deus criou as coisas, fê-lo por pura gratuidade, é um puro ato de misericórdia. E isso, ao nível da literatura, significa que a literatura deve ser também um dom gratuito, não deve haver nenhum cálculo por detrás. O verdadeiro escritor, o verdadeiro artista, não usa a literatura ou a arte para manipular a mente dos leitores. Deus não faz isso com a Criação, não a criou para manipular o homem, mas como um dom. Também a literatura, sub-criação, deve ser um puro dom.

Mais concretamente, significa que Tolkien não escreveu com um projeto, com uma estratégia comunicativa, com uma ideologia, nem sequer uma ideologia cristã. Ele fê-lo como um ato gratuito de afirmação da beleza. Arte e literatura são, antes de mais, a expressão de uma procura da beleza. Mas esta busca, precisamente porque é subcriativa e, portanto, porque participa da única criação, tem, como a própria criação, uma função misteriosa, oculta, nascida da sua gratuidade. A criação atrai, gera interrogações no homem, precisamente porque não tem essa intenção.

Tolkien afirma-o numa carta a uma rapariga, que a criação e a realidade existem antes de mais para serem contempladas, como algo gratuito. Mas é precisamente por isso que se começa a perguntar de onde vem. A questão do sentido, para ser verdadeiramente sentido, nasce de uma experiência de gratuidade.

Voltando à sua pergunta, Tolkien não escreve com uma estratégia, não quer reafirmar valores, nem sequer procura exprimir a sua experiência cristã. Tolkien quer fazer boa literatura, mas, ao fazê-lo, precisamente porque o faz de forma gratuita, a sua literatura torna-se plena de sentido, e esse sentido deve ser reconhecido de forma livre pelos leitores.

É por isso que Tolkien é contra a alegoria, não porque os seus textos não tenham potencialmente um sentido alegórico, ou seja, uma relação com a realidade primária, com os valores cristãos. Mas essa relação é um dom, é algo que "acontece", é essa ligação que a planta tem com a grande árvore, é um dom que vem de outro, não é o ponto de partida do artista. Se assim não fosse, a literatura não seria literatura, seria filosofia, e nem sequer seria arte, porque a arte não tem essa função. A subcriação não expressa coisas que já se sabe, é uma experiência nova, que poderíamos chamar de heurística, de descoberta de algo que não se sabe. De facto, para Tolkien, a aventura subcriativa é uma viagem a um outro mundo e, por isso, não tem estratégia: está a descobrir algo que não lhe pertence.

São Pedro, a pedra angular da Igreja

Deus escolheu os nossos missionários, como São Pedro. Não são perfeitos, não têm a patente da impecabilidade... são o que são, com tudo o que têm de bom e de mau... mas o Senhor escolheu-os.

19 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

Gosto muito da passagem em que o Senhor pergunta aos seus: "E vós, quem dizeis que eu sou? E Pedro... com grande força diz: "Tu és o Filho de Deus". O Senhor abençoa-o e faz dele a Pedra sobre a qual será construída a Igreja; mas Pedro é imediatamente admoestado por Jesus com palavras duras: "Para trás de mim, Satanás, para trás de mim" (Mt 16,13-23).

Neste texto podemos ver perfeitamente como é Jesus: escolheu Pedro, sabe como ele é, as suas virtudes, a sua dedicação e força, mas também conhece a sua pobreza e os seus limites... Sabe que, por vezes, é cobarde e se deixa guiar por critérios meramente humanos...

Mas isso não o impede de depositar nele a sua confiança, de lhe confiar a sua Igreja. Este Pedro ousado, firme, audacioso, é também cobarde, pecador e frágil, e será "o doce Cristo na terra", como Santa Catarina de Sena chamava ao Papa.

Não amamos os padres, os religiosos e as religiosas, os bispos ou o próprio Papa por causa das suas virtudes. Amamo-los sabendo que, como Pedro, são pessoas, com limitações e pobreza, mas com um desejo de santidade e de amor a Deus, mesmo que não seja evidente devido à sua pobreza... amamo-los porque o Senhor os escolheu! O Senhor não se arrepende de os ter chamado...

E o mesmo acontece com os nossos missionários: não são perfeitos, não têm a patente da impecabilidade... são o que são, com todo o bem e todo o mal que isso implica... mas o Senhor escolheu-os. São luz, são sal, são fermento que ilumina, dá bom gosto e fermenta o mundo ao qual foram enviados... Não olhamos apenas para a sua pobreza ou para os seus limites, muitos ou poucos... rezaremos por eles, teremos de os olhar com olhos de misericórdia e de caridade!

Eles não estão ali para se pregarem a si próprios, à sua ciência ou às suas opiniões, mas para pregarem Cristo e Cristo crucificado. Não procuramos imitá-los, mas sim aquele que eles pregam: Jesus Cristo.

O autorJosé María Calderón

Director das Obras Missionárias Pontifícias em Espanha.

Família

Cédric e Sophie Barut, o testemunho de um casamento "invulgar

Cédric e Sophie Barut dizem que o seu casamento é um pouco "invulgar". Depois de um acidente que o deixou numa cadeira de rodas, reconstruíram os alicerces da sua família e testemunham agora que "todas as provações podem conduzir a um bem maior".

Paloma López Campos-18 de abril de 2024-Tempo de leitura: 10 acta

Cédric e Sophie Barut formaram um casal jovem que, após oito meses de casamento, receberam um golpe que os deixou de rastos. Cédric despediu-se da mulher algumas horas antes para ir dar um passeio de bicicleta, uma coisa habitual para acalmar os nervos. No entanto, a noite chegou e Cédric ainda não tinha regressado a casa.

Preocupada, Sophie começou uma corrida em busca do marido. Conduziu pelo caminho que ele teria feito, foi a casa, telefonou-lhe... Nada. Até que contactou a polícia e as respostas começaram a surgir. Pouco depois, foi para o hospital, onde finalmente encontrou o marido.

Cédric tinha sido atropelado por um condutor embriagado. Enquanto o marido estava em coma, com complicações que os médicos apontavam a Sophie mas que ela não conseguia compreender, com o medo como companhia, a jovem esposa sentiu o mundo parar.

Este foi o início de uma odisseia que o casal enfrentou em conjunto. Desenvolveram um método de comunicação quando Cédric não conseguia falar, tentaram preencher as lacunas deixadas pela amnésia e Sophie enfrentou as perguntas e os preconceitos dos que a rodeavam. A vida profissional tornou-se complicada e tiveram de se mudar para uma casa adaptada à cadeira de rodas de Cédric. E, entretanto, Sophie escrevia o seu quotidiano.

"Accueillir", uma das esculturas em bronze de Sophie

Anos mais tarde, o seu testemunho pode ser lido num livro recentemente publicado em espanhol: "Estarei de volta antes do anoitecer". Para além da sua história, contém trechos de poesia de Cédric e menções ao esculturas que a Sophie realiza.

Nesta entrevista, os dois protagonistas falam sobre o papel que Deus desempenhou no fortalecimento do seu casamento e no seu progresso, sobre a vida que levam com os seus quatro filhos e as razões pelas quais decidiram partilhar o seu testemunho.

Sophie, porque decidiste escrever este livro e o que achaste desta decisão, Cédric?

- [Sophie]: No início, decidi escrever este livro porque um jornalista veio fazer-nos perguntas 10 anos depois do acidente e eu não me lembrava de tudo. Tive de reabrir um diário que tinha mantido desde o liceu, que continuei no meu casamento e depois durante o acidente, até à chegada do nosso primeiro filho, 5 anos mais tarde. Nessa altura, já tinha deixado de escrever, presa pela vida de mãe, mas guardei esses 7 cadernos numa gaveta fechada à chave em casa. Estava convencida de que nunca os iria ler a ninguém.

Ao reler as páginas, disse a mim próprio que tínhamos percorrido um longo caminho, que esta aventura não era uma aventura qualquer e que Deus nunca tinha deixado de nos ajudar sempre que desistíamos. Disse a mim próprio que não tinha o direito de guardar para mim todas as proezas de Deus nas nossas vidas.

Foi na altura dos atentados de Paris e os jornalistas franceses diziam que todas as religiões eram vectores de violência, e eu não podia permitir que dissessem isso. A minha religião cristã salvou-me a mim, ao meu marido e à minha família. Foi Cristo que me ajudou a amar melhor as pessoas à minha volta, a ser corajosa e a seguir em frente. Não podia ficar calada.

E depois encontrei muitas vezes esposas de pessoas com ferimentos na cabeça que eram muito infelizes, casais que se tinham separado por causa da deficiência. Dizia para mim próprio: "Se certas palavras me tocaram e me permitiram seguir em frente, porque é que não hão-de fazer o mesmo a estas mulheres? Há algo de universal nas descobertas que fiz ao longo desta provação.

- [Cédric]: Este livro é a memória que eu não tenho. Trouxe à luz o significado de tudo. É um testemunho que espero que ajude outras pessoas afectadas por esta provação. Teríamos gostado de ter um livro destes nas nossas mãos quando tudo ficou de pernas para o ar e nos apercebemos da dimensão do desafio. Tenho sempre o prazer de acompanhar a Sophie quando ela dá palestras em escolas secundárias, universidades, paróquias e associações. 

É possível manter o hábito da oração e a presença de Deus no meio de uma vida tão insólita?

- [Sophie]: A nossa vida é certamente invulgar aos olhos dos outros, mas é a nossa, é a única que conhecemos, e temos os nossos pontos de referência e o nosso ritmo. É um equilíbrio por vezes frágil, que deve ser reinventado à medida que cada dificuldade surge, mas o que é certo é que a oração tem o lugar que lhe compete. Diria mesmo que a oração se tornou indispensável. Sem ela, a deficiência fecha-nos em si mesma, criando frustrações que interferem na nossa relação. 

Tentamos ter um momento de oração em casal todas as noites para recomendar os nossos filhos e os nossos pais a Deus, para nos recomendarmos a nós próprios para o dia seguinte e para darmos graças por esse dia. O louvor é um verdadeiro motor de progresso. Dar graças por todas as coisas boas do dia: há sempre coisas boas. 

Tento ir à missa todas as manhãs e depois há o Angelus ao meio-dia, e todas as pequenas palavras que digo a Jesus, a Maria e aos anjos da guarda durante o dia. A oração tornou-se a nossa respiração. Por vezes, deixamo-la de lado porque o ritmo quotidiano nos distrai, mas as consequências são tais que a retomamos rapidamente.

- [Cédric]: Eu diria que, para mim, é ainda mais fácil ter um ritmo regular de oração, porque tenho muito tempo de silêncio, muitas frustrações para oferecer, muita ajuda para pedir.

Gosto de fazer retiros espirituais, frequentemente acompanhado por um amigo e, por vezes, por uma enfermeira. Também gosto de momentos de adoração perante a Presença Real de Cristo, nas capelas de Lyon. O Rosário, que é uma arma poderosa, também me acompanha.

O que é que lhes permitiu manterem-se fiéis aos seus votos matrimoniais?

- [Sophie]: Desde pequena que o meu ideal era formar uma família com um homem que escolhesse para toda a vida. Sempre quis que a minha vida fosse uma história bonita, uma aventura maravilhosa, e que não me arrependesse quando tudo ficasse para trás. Mas eu era muito frágil, "hipersensível", como diziam os meus pais, e tinha tendência para dramatizar cada pequena dificuldade que encontrava. Não estava "armada" para uma tal aventura.

Depressa percebi que, se quisesse viver os meus sonhos e ser feliz ultrapassando os desafios que a vida me colocava, tinha de me associar a Jesus. Sozinho, apercebi-me de que nunca conseguiria.

Podia ter cerrado os dentes e ter ficado com o Cédric por obrigação, mas não teria sido feliz, eu sei. Foi Deus que me deu amor para dar ao Cédric. Deus ajudou-me todos os dias a dar vida à nossa casa, a trazer liberdade, risos e surpresas. Estou profundamente convencida de que sem Deus a minha vida teria sido um desastre profundo, porque as provações podem fazer-nos mal se forem vividas sem amor.

- [Cédric]: Foi o meu amor eterno pela Sophie que me ajudou a manter-me fiel aos meus votos de casamento. A Sophie era a minha única hipótese de voltar a ter uma vida mais ou menos normal. Não a teria deixado por nada deste mundo.

Com base na sua experiência, que conselhos daria a um casal que se encontrasse numa situação semelhante?

Cédric e Sophie Barut (Copyright: Tekoaphotos)

- [Sophie]: O meu conselho para os casais que se encontram nesta situação é que se perguntem primeiro: qual é o meu objetivo na vida? Qual é o sentido da minha vida? O que é para mim uma vida boa, uma vida bem sucedida? Que "marca" quero deixar no início da minha vida? Quando me apresentar a Deus na hora da morte, o que é que vou levar na minha "mala" para esta última viagem? Porque, de facto, a nossa passagem por esta terra é como uma série de obstáculos. Ultrapassá-los é progredir. Mas atenção: é preciso ultrapassá-los com amor, para crescer no amor. E isso não é fácil.

E, uma vez tomada a decisão: lançar-se nos braços do Senhor, confiar tudo a Ele, chorar, chorar, rir com Ele, ter uma relação verdadeira e espontânea com Cristo. Pedir sem cessar, agradecer, contemplar. Viver o momento que nos é dado, sem projetar demasiado no futuro ou remoer o passado. Viver com confiança. Cada prova pode conduzir a um bem maior; é uma série de decisões a tomar, uma após a outra.

Mas atenção: não estou a dizer que todas as mulheres de pessoas com deficiência devem ficar com os seus maridos. Algumas deficiências, especialmente as mentais, destroem o vínculo e fazem com que a pessoa se feche totalmente na sua doença. Deus quer que sejamos felizes, mas se nos destruímos na presença de um marido que já não tem afeto por nós, podemos ser mais úteis ajudando-o "de longe", para não nos afundarmos com ele. Por vezes, a vida em comum torna-se impossível.

Temos de discernir o que Deus nos está a chamar a fazer. Cada situação é diferente. É importante sermos fiéis a nós próprios e a Deus.

O que é que há no casamento e na família que faz com que duas pessoas lutem tanto para que isso aconteça?

- [Sophie]: A procura da verdadeira alegria. O desejo muito egoísta de ser feliz, muito simplesmente.

É como um arquiteto que se depara com uma casa velha e gasta: vai dedicar toda a sua energia a restaurá-la, a reconstruí-la, a fazer sobressair todos os seus encantos, todos os seus recantos... e essa casa terá muito mais carácter do que uma casa nova e perfeita! Não tem escolha: é a sua casa.

No dia seguinte ao acidente, encontrei-me nesta situação: tudo tinha de ser construído sobre uma base tão diferente do início do nosso casamento. Que trabalho! Que aventura! Mas sentia que, se deixasse Deus atuar na minha vida, seria feliz, verdadeira e permanentemente feliz. Deus ia pôr brilho na minha vida, para além das aparências. E cumpriu as suas promessas.

- [Cédric]: O que me motivou foi encontrar um lugar no mundo. Um lugar como marido, um lugar como pai, um lugar como poeta. Porque eu sabia que nunca mais poderia trabalhar. Tinha de ser útil noutro lugar, de alguma outra forma.

Sophie, pode ter-se regozijado com os progressos mínimos de Cédric, mas como é que conseguiu manter a esperança viva?

- [Sophie]: Um amigo dizia-me: não se pode agarrar o futuro. Enquanto os médicos lhe disserem que é possível progredir, acredite num futuro melhor. Tudo é possível, sempre. Deus não se preocupa com o tempo. Ele apenas deixa a vida acontecer, um dia de cada vez. Jesus disse: "Eis que faço novas todas as coisas".

Sempre que o Cédric fazia progressos, eu ficava muito feliz. E sabia que Deus me daria os meios para viver as dificuldades que surgissem. Não tinha de as "imaginar" e de me afogar de antemão. Bastava-me viver cada dia, um dia de cada vez. Bastava enfrentar o desafio do dia.

Cédric, teve de avançar muito lentamente e no livro da Sophie vemos que por vezes se sentia muito frustrado. O que o motivou a continuar a trabalhar para recuperar?

- [Cédric]: Antes do acidente, costumava esforçar-me ao máximo na bicicleta e na corrida. Mantive esse espírito desportivo. Com a minha força de vontade, tentei fazer com que o meu corpo me obedecesse. Também queria igualar a coragem da Sophie. Vi que ela estava a lutar para que tivéssemos uma boa vida e esta era a minha forma de melhorar a vida dela: tentar recuperar o máximo de autonomia possível. Ser positiva e seguir em frente.

A conversão de Cédric é mencionada no livro e Sophie inclui muitas notas sobre as suas orações. Em que pormenores específicos se pode sentir o conforto de Deus em momentos críticos?

"Douceur", escultura de Sophie Barut
"Douceur", uma escultura de Sophie Barut

- [Sophie]: Experimentamos momentos de profunda comunhão com Deus. Uma vez, isso manifestou-se em lágrimas de alegria e de paz que não pude conter diante do tabernáculo, como se o amor de Deus caísse em cascata no meu coração aberto. Noutra ocasião, estava convencida de que Jesus estava ali ao meu lado, dizendo: "Eu vou cuidar do Cedric. Tu cuida de ser feliz ao lado dele, desenvolve os teus talentos, cultiva as tuas amizades, e o Cedric colherá a tua alegria. E no meu dia a dia, recebo tantas piscadelas de Deus, e disse a mim mesma que um dia as escreveria para não as esquecer!

Mas também há momentos de desespero em que o Céu parece vazio, apesar dos meus gritos de socorro. Nesses momentos, digo a mim próprio "tem confiança, tem paciência, um dia terás a resposta". E funciona. Mas, por vezes, é difícil esperar.

Sophie, a atitude que descreve no livro pode ser descrita como otimista - considerava-se uma pessoa otimista antes do acidente, considera-se uma pessoa otimista agora, ou acha que a atitude que tinha provém de uma fonte diferente do otimismo?

- [Sophie]: Antes do acidente, eu fazia uma tempestade num copo de água. Tinha tendência para dramatizar e complicar a minha vida. O tsunami do acidente pôs as coisas no sítio. Se eu quisesse sobreviver, tinha de me cingir à realidade do momento, acalmar a minha imaginação e construir sobre a rocha.

Creio que a confiança em Deus é mais do que otimismo. O otimismo é pensar que tudo vai correr bem. Eu não pensava que tudo ia correr bem, pensava que Deus me ia ajudar a ultrapassar o que quer que eu tivesse de passar, qualquer que fosse o estado do Cédric.

Tem vários filhos a quem não escondeu a realidade da sua história. Como é que lhes conta o que está a acontecer? Como é que os ensina a serem pacientes com o seu ritmo de vida diferente?

- [Sophie]: As crianças nasceram após o acidente do pai. Foi a única forma de o conhecerem. Por isso, não esperam mais do que ele lhes pode dar. Por vezes, compararam-no com outros pais e isso foi um pouco doloroso, mas quando lhes perguntamos agora se preferiam ter nascido noutra família, dizem que não. Amam o pai tal como ele é e não o trocariam por nada deste mundo.

O período mais difícil foi a adolescência, sobretudo devido a certas sequelas cognitivas: a sua amnésia, as suas obsessões ideológicas e as suas birras incontroláveis. Houve momentos difíceis com as crianças, mas ultrapassámo-los... ou quase! O nosso filho mais novo tem 13 anos e os outros têm 16, 18 e 20 anos.

O ritmo das nossas vidas é bastante agitado, porque tento fazer viagens regulares com 2, 3 ou 4 crianças. Nem sempre levo o Cédric comigo porque ele gosta do sossego da nossa casa de campo, ao lado dos pais dele, no meio do nada. Lá, o Cédric tem muita liberdade porque tudo foi concebido para a sua cadeira de rodas eléctrica. Pode passear sozinho na floresta com o cão e ir e vir entre a nossa casa e a casa dos pais. Já não tenho qualquer receio de o deixar lá, porque ele quer lá estar.

Por exemplo, nas viagens que eu e os meus filhos fizemos, pudemos ficar numa casa na árvore, ir ao mar, ver o Monte Branco ou esquiar nos Alpes (o Cédric detesta neve!) São momentos que me agradam particularmente e que nos deixam muito boas recordações. Faço tudo o que posso para que a deficiência não ocupe demasiado espaço na vida familiar e para que as crianças tenham uma vida tão "normal" quanto possível.

O casal Barut com os seus filhos
O casal Barut com os seus filhos

No livro, fala muito sobre a importância de falar sobre as coisas, o que é uma boa comunicação no casamento e na família?

- [Sophie]: O meu credo é que tudo pode ser dito, mas é preciso saber a quem, colocá-lo da forma correcta e escolher o momento certo. Por natureza, é-me muito difícil ficar calado sobre o que me preocupa. Felizmente, o Cédric é um ótimo ouvinte e, por vezes, dá bons conselhos (quando a sua amnésia lhe permite considerar toda a situação). Quando o Cédric está triste, encorajo-o a não conter as lágrimas. Nós deixamo-nos chorar porque nos faz sentir bem e permite-nos ir ao fundo das coisas. Exprimir a sua angústia alivia-o.

O mesmo acontece com as crianças. Tento falar com eles sobre tudo. Falo-lhes das minhas dificuldades para que eles não se sintam relutantes em falar-me das deles. Estou sempre a dizer-lhes (e ao Cédric também) que eles são a minha vida e que a felicidade deles é importante para mim, por isso não devem hesitar em vir ter comigo para que eu os possa ajudar e ouvir. A ideia é que sejamos uma família unida perante a adversidade. A nossa família deve ser um refúgio para eles, enquanto eles constroem a sua própria família.

Evangelho

A ovelha perdida. Quarto Domingo de Páscoa (B)

Joseph Evans comenta as leituras do quarto domingo de Páscoa e Luis Herrera faz uma breve homilia em vídeo.

Joseph Evans-18 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

O Senhor usa as imagens de uma ovelha, de um pastor e de um rebanho de ovelhas, tanto porque são familiares aos seus ouvintes, numa sociedade então muito rural, como porque descrevem muito bem o novo tipo de comunidade que ele está a criar.

Ele poderia ter dito: "Eu sou o rei leão e vós sois os leões da prole."O que teria dado uma ideia muito diferente: que somos chamados a ser selvagens e cruéis, dominando o nosso ambiente pela força. Mas não é esse o tipo de comunidade que Cristo quer inaugurar.

A escolha da ovelha como imagem de Jesus não é, portanto, uma mera coincidência. Vivemos num mundo altamente individualista, no qual, cada vez mais, as estruturas sociais - a família, o sentido de nação - estão a desmoronar-se. Por isso, é essencial que reforcemos a nossa convicção de que somos Igreja, de que pertencemos à Igreja Católica e de que formamos uma verdadeira comunidade, um verdadeiro rebanho.

Não somos apenas um grupo de indivíduos que se apresentam no mesmo edifício, à mesma hora, todos os domingos. Isto é verdade também porque o Evangelho de hoje não é tão suave como pode parecer à primeira vista. Jesus fala de si mesmo como o pastor misericordioso, mas fá-lo num contexto de ameaça e de crise. É o pastor que se defende do lobo que ataca, que dá a sua vida em sacrifício pelas ovelhas. A ovelha que se julga forte, que pode avançar sozinha, que se afasta, corre o sério risco de ser devorada pelo lobo, a não ser que o Bom Pastor a apanhe primeiro.

O Evangelho de hoje ensina-nos que somos chamados a ser ovelhas, com todos os aspectos positivos que esta imagem implica: a comunidade, a unidade, o deixar-se guiar e proteger por Cristo Bom Pastor e a humildade de reconhecer a nossa necessidade de proteção, mesmo que a imagem das ovelhas possa ofender o nosso orgulho. Somos chamados a ser ovelhas no sentido de que ser católico significa ser conduzido pela Igreja, ser guiado, ensinado e alimentado... Neste mundo individualista, somos chamados a ser felizes por fazer parte de um rebanho, de uma comunidade, da qual beneficiamos e para a qual contribuímos: a Igreja e, dentro dela, a nossa família, na qual também actuamos como bons pastores - ou ajudantes de Cristo - uns para os outros. Devemos resistir à tentação de nos libertarmos de todas as amarras. Essa liberdade é ilusória e auto-destrutiva. Só no rebanho de Cristo encontraremos proteção.

Homilia sobre as leituras do IV Domingo de Páscoa (B)

O sacerdote Luis Herrera Campo oferece a sua nanomiliaUma breve reflexão de um minuto para estas leituras dominicais.

Vaticano

O Pontífice elogia a temperança e considera a tortura "desumana".

Durante a Audiência desta quarta-feira de manhã da Terceira Semana da Páscoa, o Papa Francisco falou sobre a virtude da temperança, ou seja, o controlo da vontade e da sobriedade, refreando a inclinação para o prazer, procurando a justa medida em tudo. Rezou também pela libertação dos prisioneiros de guerra e descreveu a tortura como desumana.  

Francisco Otamendi-17 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Depois de ter abordado nas semanas anteriores as virtudes cardinais da prudência, da justiça e da fortalezaO Papa Francisco explicou na sua catequese por ocasião da Público desta quarta-feira da III semana da Páscoa a virtude da temperança, com base na leitura do Livro de Sirach, no versículo que diz: "Não deixes que o teu desejo e a tua força te levem a agir segundo os teus caprichos...".

O Santo Padre referiu-se, em primeiro lugar, à civilização grega, em particular a Aristóteles, e recordou as suas palavras sobre o poder sobre si mesmo, ao descrever temperança  como a capacidade de auto-controlo e a arte de não se deixar dominar por paixões rebeldes. A temperança assegura o domínio da vontade sobre os instintos, é a virtude da "moderação e da justa medida".

Domínio da vontade sobre os instintos

O Catecismo da Igreja Católica, ensinou o Papa, diz-nos que: "a temperança é a virtude moral que modera a atração dos prazeres e assegura o equilíbrio no uso dos bens criados". Ela assegura", continua o Catecismo, "o controlo da vontade sobre os instintos e mantém os desejos dentro dos limites da honestidade. A pessoa moderada orienta os seus apetites sensíveis para o bem, mantém uma sã discrição e não se deixa arrastar para seguir a paixão do seu coração" (n. 1809). 

A temperança, prosseguiu o Santo Padre, "é a virtude da justa medida. Em todas as situações, ela conduz-se com sabedoria, porque as pessoas que agem por impulso ou exuberância acabam por não ser fiáveis. Num mundo em que tanta gente se vangloria de dizer o que pensa, a pessoa temperamental prefere pensar o que diz. Não faz promessas vãs, mas compromete-se na medida em que as pode cumprir. Mesmo nos prazeres, a pessoa temperamental actua com discernimento. O livre curso dos impulsos e a total licença dada aos prazeres acabam por se voltar contra nós próprios, mergulhando-nos num estado de tédio". 

Pensar e dosear as palavras

"Quantas pessoas que quiseram experimentar tudo vorazmente descobriram que perderam o gosto por tudo! É preferível encontrar a medida certa: por exemplo, para apreciar um bom vinho, é melhor prová-lo em pequenos goles do que engoli-lo de um só trago", afirmou.

"A pessoa temperamental sabe pesar e medir bem as palavras. Não permite que um momento de raiva arruíne relações e amizades que só podem ser reconstruídas com muito esforço. Sobretudo na vida familiar, onde as inibições são menores, todos corremos o risco de não manter sob controlo as tensões, as irritações e a raiva. Há um tempo para falar e um tempo para calar, mas ambos exigem a medida certa. E isto aplica-se a muitas coisas, como estar com os outros e estar sozinho.

Perante o excesso, o equilíbrio

"O dom do temperamental é, portanto, o equilíbrio, uma qualidade tão preciosa quanto rara. Tudo, de facto, no nosso mundo nos empurra para o excesso. A temperança, pelo contrário, combina bem com atitudes evangélicas como a pequenez, a discrição, a dissimulação, a doçura", concluiu o Papa.

"Aquele que é temperante aprecia a estima dos outros, mas não faz dela o único critério de cada ação e de cada palavra (...) Não é verdade que a temperança nos torne cinzentos e sem alegria. Pelo contrário, faz com que se aproveitem melhor os bens da vida: o convívio à mesa, a ternura de certas amizades, a confiança das pessoas sábias, o espanto perante a beleza da criação. A felicidade com temperança é a alegria que floresce no coração de quem reconhece e valoriza o que há de mais importante na vida". 

Libertar prisioneiros de guerra, "tortura desumana".

Antes de dar a sua bênção, o Papa recordou as populações em guerra, referindo-se à Terra Santa, à Palestina e a Israel, aos mártires da Ucrânia e, em particular, aos prisioneiros de guerra, para que sejam libertados, e aos que são torturados. "A tortura não é humana", disse, porque "fere a dignidade da pessoa".

Na sua saudação aos peregrinos multilingues, o Papa saudou de modo especial os grupos provenientes de Inglaterra, Irlanda, Finlândia, Indonésia, Malásia, Filipinas, Coreia e Estados Unidos da América. "Na alegria de Cristo ressuscitado, invoco sobre vós e vossas famílias a misericórdia de Deus nosso Pai".

Tal como foi tornado público, o Papa Francisco fará uma viagem apostólica à Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor Leste e Singapura em setembro de 2024, naquela que será a sua mais longa viagem apostólica até à data.

O autorFrancisco Otamendi

Vaticano

"Uma das mais belas inspirações da Igreja é a JMJ".

As Jornadas Mundiais da Juventude celebraram o seu 40º aniversário em abril passado. Quatro décadas de encontros de oração, de fé e de alegria dos quais saíram muitas vocações.

Hernan Sergio Mora-17 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Este mês de abril assinala o 40º aniversário do primeiro convite do Papa João Paulo II aos jovens, entregando-lhes a Cruz da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) na Praça de S. Pedro, no Ano Santo da Redenção, plantando assim a primeira semente deste grande acontecimento.

Várias actividades em Roma comemoraram o aniversário, incluindo uma vigília, duas missas e uma procissão com a cruz da JMJ na Praça de São Pedro.

"Uma das mais belas inspirações da Igreja contemporânea são as Jornadas Mundiais da Juventude", disse o Cardeal José Tolentino de Mendonça, Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, em entrevista ao Omnes antes do início da Missa de 13 de abril de 2024.

Cardeal Mendonça durante a missa de 13 de abril

"O Papa São João Paulo II interpretou muito bem os tempos e viu a necessidade, no nosso momento histórico, pensando no presente e no futuro da Igreja, de dar uma atenção especial aos jovens, criando dentro da experiência eclesial, um espaço prioritário para o protagonismo juvenil", acrescentou. "Hoje, 40 anos depois, após o Papa Bento XVI e agora com o Papa Francisco - continuou o purpurado - percebemos que as jornadas são uma contribuição muito grande para a experiência de fé dos jovens.

Também para que se tornem - como dizia São João Paulo II - os primeiros evangelizadores dos outros jovens".

Questionado sobre os frutos vocacionais das JMJ, o Cardeal Tolentino considerou que "as Jornadas são um dos aspectos mais bonitos, porque o aumento das vocações masculinas e femininas - e também do matrimónio - tem sido um dos efeitos mais fortes nas cidades e países onde as JMJ foram celebradas".

Penso - disse o Cardeal - que cada Jornada deixa uma marca inesquecível no coração dos jovens, que se manifesta na tríplice alegria de ser Igreja, de acreditar em Jesus Cristo e de o anunciar.

Recordando ao Cardeal que, quando São João Paulo II convocou as JMJ, alguns profetas da desgraça disseram que seria um perigo juntar tantos jovens, o Cardeal respondeu:

"O extraordinário é ver que os jovens deram e continuam a dar um testemunho muito grande ao mundo, de respeito uns pelos outros, de rezar juntos no meio da rua, de dar testemunho de Cristo de uma forma serena e entusiasta".

O Centro Internacional da Juventude de San Lorenzo (CSL) acolheu a celebração no sábado, 13 de abril. O evento foi patrocinado pelo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida e pela Fundação "Giovanni Paolo II per la Gioventù", com a participação de vários movimentos juvenis, como a Comunidade Católica Shalom, que ofereceu animação musical, Franciscanos, Legionários de Cristo, seminaristas polacos e outros presentes.

No domingo, o Cardeal Lázaro You Heung-sik, Prefeito do Dicastério para o Clero, presidiu à Missa no Centro Internacional da Juventude São Lourenço. A presença dos dois cardeais, um português e outro coreano, simbolizou a ponte entre a última JMJ, em Lisboa, e a próxima, em 2027, em Seul.

A primeira JMJ

A 14 de abril de 1984, 300.000 jovens de todo o mundo chegaram a Roma, acolhidos por cerca de seis mil famílias romanas, o primeiro encontro de jovens em massa. Depois de lhes ter sido entregue a Cruz na Praça de S. Pedro, a cruz tornou-se o símbolo das JMJ, a que se juntou o ícone de Salus Populi Romani, o santo padroeiro de Roma, também oferecido por São João Paulo II.

O autorHernan Sergio Mora

Educação

Klinema, uma forma positiva de ver cinema

A Klinema é uma plataforma que filtra aspectos como o conteúdo sexual, a violência e a profanação em filmes e séries das principais plataformas de streaming. Representantes de várias instituições debateram no CEU o efeito do consumo de conteúdos audiovisuais violentos ou pornográficos, especialmente em crianças e jovens.

Maria José Atienza-16 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

Representantes de várias instituições debateram no CEU o efeito do consumo de conteúdos audiovisuais violentos ou pornográficos, especialmente nas crianças e nos jovens.

Elena Martínez (Murado em), Alejandro Gordon (A Vigilância Familiar), Begoña Ladrón de Guevara (COFAPA), Blanca Elía (Fazer uma visita guiada), Hilario Blasco (Emooti) e Miguel Ferrández, da Methos Media, reflectiram sobre questões como a idade de acesso à pornografia, a normalização de comportamentos inadequados e os dados preocupantes sobre o suicídio de jovens em relação aos conteúdos audiovisuais consumidos em Espanha.

Em resposta a este facto, foi apresentada uma alternativa: Klinema. Uma plataforma, desenvolvida por Methos Mediaque filtra aspectos como conteúdos sexuais, violentos ou profanos em filmes e séries nas principais plataformas de streaming.

Os oradores, moderados por Marieta Jaureguizar, directora de comunicação do CEUA conferência, que teve lugar no final do ano, expôs diferentes aspectos que as famílias e os educadores enfrentam num mundo mediatizado por ecrãs e hipersexualizado socialmente.

Acesso à pornografia em idades cada vez mais jovens

A este respeito, Elena Martínez salientou que o conteúdo audiovisual "que as nossas crianças e jovens consomem através de séries ou jogos de vídeo molda a forma como vêem o mundo. Em Espanha, metade dos jovens de 11 anos têm um smartphone, pelo que têm acesso ilimitado a todo o tipo de conteúdos".

Nesta linha, Blanca Elía sublinha que vivemos numa sociedade hipersexualizada. Basta olhar para algumas séries como Elite ou Sex Education, que quase todos os jovens já viram, ou para as canções e sagas literárias para adolescentes... nesta perspetiva, é muito fácil dar o salto para a pornografia", explicou Elía, que defende um esforço de "educação afetivo-sexual que tem de mostrar outra visão da sexualidade".

Um dos aspectos fundamentais desta questão é a realidade, apontada por Alejandro Gordon, do número de crianças que estão sozinhas em casa e que consomem produtos audiovisuais na solidão. "Não se trata de proibir, mas de adaptar os meios de comunicação para evitar que este tipo de conteúdos seja acedido tão facilmente. "As crianças em casa vêem o que podem ver", sublinhou Gordon, "se tudo estiver ao seu alcance, elas vêem-no".

Opção para impedir conteúdos inadequados

Este é o ponto que toca diretamente o trabalho de Klinema, uma iniciativa da Methos Media, apresentada por Miguel Ferrández, que oferece tanto a possibilidade de estabelecer filtros para visualizar os títulos das principais plataformas audiovisuais como uma seleção e recomendações de filmes e séries centrados nos valores familiares.

O Klinema não é censura, é uma forma de olhar para o cinema de uma forma positiva", sublinhou Ferrández. Através de um sistema de subscrição do plugin Klinema, os utilizadores acedem às plataformas que contrataram no seu navegador e o catálogo Klinema foi verificado quanto a conteúdos inadequados.

O utilizador pode também definir diferentes níveis de filtros. Para além deste trabalho de análise, a plataforma também oferece recomendações de filmes ou séries todas as sextas-feiras.

Vocações

"Cultivar a vida como vocação": Dia das Vocações Nativas e da Oração

No próximo domingo, 21 de abril, serão celebrados dois dias vocacionais: o Dia das Vocações Nativas, para apoiar financeiramente os seminários nos territórios de missão, e o Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

Loreto Rios-16 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

No dia 21 de abril, serão celebrados dois importantes dias relacionados com a vocação: o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, organizado em Espanha pelo Dia Mundial das Vocações, e o Dia Mundial das Vocações, que terá lugar no dia 21 de abril. Conferência Episcopal Espanhola, CONFERÊNCIA (Conferência Episcopal dos Religiosos) e CEDIS (Conferência Espanhola dos Institutos Seculares), e a Jornada das Vocações Autóctones, organizada pela OMP (Obras Missionárias Pontifícias). O lema deste ano é "Seja feita a vossa vontade. Todos discípulos, todos missionários".

Esta manhã, realizou-se uma reunião de informação na sede da Conferência Episcopal Espanhola que apresentou as duas jornadas. O padre Luis Manuel Romero, secretário do Serviço de Pastoral Vocacional da CEE, explicou que os objectivos destas duas jornadas são triplos: despertar nos jovens a questão da vocação nas suas vidas, convidar toda a Igreja a rezar pelas vocações e que surjam vocações autóctones nas igrejas jovens de outros continentes.

Explicou também que o lema deste ano se refere à necessidade de "tentar sensibilizar para o facto de que temos de cultivar a vida como uma vocação". Especificou também que se reza por todas as vocações e não apenas pelas de consagração. "Todas as vocações devem complementar-se umas às outras".

Como exemplo da variedade de vocações que podem surgir na Igreja, o primeiro orador foi o Padre Nicéforo Obama, natural da Guiné Equatorial, que explicou que, em criança, ficou impressionado com a dedicação e a devoção de algumas freiras espanholas que viviam na sua região. Mais tarde, entrou no seminário menor, com o desejo de ser ordenado sacerdote para ajudar outros a procurar em Jesus as respostas que ele já tinha encontrado. Depois de completar o ensino secundário, passou para o seminário maior (um seminário que foi praticamente fundado por Espanha, disse ele), e foi ordenado padre em 2014, assinalando este ano o décimo aniversário da sua ordenação.

O Padre Nicéforo Obama sublinhou a importância da A obra de São Pedro Apóstoloque, no âmbito das Obras Missionárias Pontifícias, é responsável pelo apoio às vocações autóctones. Sem esta obra, sublinha o sacerdote guineense, seria muito difícil para os jovens do seu país serem ordenados, uma vez que, para além dos impedimentos económicos, trata-se de uma cultura em que não se entende que seja necessário investir na educação de um filho, se ele não vai trazer rendimentos para a família com a sua profissão. Atualmente, 800 seminários no mundo dependem da Obra de S. Pedro Apóstolo.

Obama sublinhou ainda que o trabalho das vocações nos territórios de missão vai para além do trabalho pastoral. Enquanto a Igreja no Ocidente "está um pouco escondida", devido ao facto de os governos assumirem muitas obras sociais que antes dependiam apenas da Igreja, nos territórios de missão, a Igreja é o "rosto" que vai ao encontro de cada pessoa quando há uma necessidade, seja ela uma doença, problemas económicos, formação, etc. Por isso, diz Nicéforo, "apoiar uma destas vocações é ajudar muitas pessoas".

Daniel, representante dos jovens da Ação Católica Geral, partilhou depois o seu testemunho como exemplo de vocação laical. O seu processo vem da infância, pois cresceu numa família católica e, pouco a pouco, descobriu um chamamento para ser missionário na sua profissão, nos espaços sociais onde os padres e a Igreja não conseguem chegar. Esta inquietação foi-se definindo pouco a pouco no seu trabalho na Ação Católica Geral.

Por fim, Ana Cristina Ocaña, leiga consagrada da CEDIS (Conferência Espanhola dos Institutos Seculares), explicou que a vocação da secularidade consagrada implica ser 100 % leigos e 100 % consagrados ao mesmo tempo, "uma realidade não diminui a outra". É uma vocação para "permanecer no mundo", e, como Daniel também explicou anteriormente, "estar onde a Igreja não pode ir".

Por ocasião do Dia Mundial de Oração pelas Vocações, as organizações organizadoras prepararam um sítio web comum sobre o evento.

A página específica das Vocaciones Nativas, através da qual também podem ser feitos donativos, encontra-se no seguinte sítio Web aqui.

Família

"Precisamos de redescobrir a beleza do casamento".

Em 15 de abril, realizou-se o Fórum Omnes "Da essência do casamento: homem e mulher", com os oradores María Calvo e Fernando Simón. Os convidados sublinharam que umAssistimos atualmente a uma grande ignorância da beleza do casamento, que se manifesta, entre outras coisas, no desconhecimento do que é um homem e do que é uma mulher, na "ausência da capacidade de amar", num "casamento em chave emotivista" e na "substituição da genealogia pela tecnologia".    

Francisco Otamendi-16 de abril de 2024-Tempo de leitura: 8 acta

As estatísticas mostram que mais de metade dos casamentos se desfazem em Espanha, e outros países ocidentais apresentam taxas semelhantes. No entanto, Álvaro González, diretor do Mestrado de Formação Contínua em Direito Matrimonial e Direito Processual Canónico do Faculdade de Direito Canónico da Universidade de NO Presidente do Parlamento Europeu, José Manuel Durão Barroso, afirmou ontem à noite no Fórum Omnes que "existe a sensação de que o casamento está em crise, o que não é verdade". 

"Precisamos de redescobrir mais uma vez a beleza desta verdadeira maravilha que é o matrimónio, a realidade do matrimónio desde a sua própria natureza, conhecer cada vez melhor esta realidade, saber descobrir a beleza e a bondade, que se baseiam sempre na verdade", acrescentou. Álvaro GonzálezHá algum tempo, disse à Omnes que "há necessidade de profissionais bem formados para assistir e ajudar aqueles que o desejam fazer". Ontem, reiterou: "Este mestrado nasceu com a esperança de contribuir para a formação de tantas pessoas que trabalham nos tribunais eclesiásticos, com o desejo de ajudar e dar uma formação completa".

Paralelamente, na sociedade atual, é fácil constatar, para citar apenas duas ou três tendências, pais que declaram não querer "ser pais" quando tomam conhecimento da sua paternidade, mulheres em casal, ou solteiras, que decidem ter um filho por reprodução assistida, sem o parceiro masculino, privando assim a criança de uma referência paterna, ou a diminuição do número de jovens que se casam.

Oradores

Neste contexto, o Fórum organizado pela Omnes em conjunto com este mestrado de formação teve lugar ontem à tarde em Madrid, na sede de pós-graduação da Universidade de Navarra em Madrid, moderado pela chefe de redação da Omnes, María José Atienza, e patrocinado por Fundação CARFcom a presença do seu diretor-geral, Luis Alberto Rosales, e do Banco Sabadell. O título era "Da essência do matrimónio: homem e mulher", e foi apresentado pelo já referido Álvaro González e pelo diretor da Omnes, Alfonso Riobó. 

O colóquio contou com a presença de María Calvo Charro, professora de Direito Administrativo, docente do Mestrado e autora de livros sobre o homem e a mulher, a maternidade e a paternidade, como "La masculinidad robada" ou "La mujer femenina", e de Fernando Simón Yarza, professor acreditado de Direito Constitucional na Universidade de Navarra e vencedor do Prémio Tomás y Valiente 2011 para a melhor obra de Direito Constitucional. 

María Calvo: "Perdemos a capacidade de amar".

A professora María Calvo, mãe de quatro filhos, começou por dizer que "falar de casamento é falar da solução para muitos dos problemas sociais que existem atualmente. Porque é que um casamento se desfaz a cada segundo no mundo desenvolvido? Porque é que os nossos jovens não se querem casar? O que é que fizemos de errado? O que é que está a acontecer na sociedade?

"Há muitas causas, muitas razões, mas penso que podemos dar uma resposta muito genérica e, ao mesmo tempo, muito concreta: perdemos a capacidade de amar. Perdemos a capacidade de amar porque perdemos o conhecimento de nós próprios. "Sem conhecimento não há amor, é impossível amar o que não se conhece, mas o grande problema é que não nos conhecemos a nós próprios, não que não conheçamos o outro". 

"Mutação antropológica

"E porque é que não nos conhecemos", continuou, "porque nas últimas décadas vivemos realmente uma mutação antropológica. Todas as épocas históricas têm crises, mas eu acredito sinceramente que esta época tem uma crise com uma novidade radical que nunca aconteceu antes, e é esta mutação do ser humano, do conceito de ser humano, esta nova ética, esta nova metafísica que nos foi imposta, esta alteração também nos códigos simbólicos, especialmente nos códigos simbólico-familiares que se tornaram muito líquidos: é o mesmo ser pai, ser filho, ser homem, ser mulher, ser casado, ser solteiro. Há aí uma fluidez que acaba por nos levar à angústia". 

Segundo María Calvo, esta mutação antropológica "impregnou-se muito facilmente, muito rapidamente, devido aos meios tecnológicos de que dispomos, obviamente, mas também porque se está a utilizar uma linguagem performativa, muito manipuladora, muito teatral, que se pode ver na própria legislação, e este é o perigo para os jovens, que faz com que conceitos e princípios que são realmente degenerados lhes pareçam muito atractivos, e faz com que pareçam muito progressistas em relação a outros conceitos e outras realidades que são realmente perversas".

Entre outros exemplos, a professora e escritora considera que "falar de saúde reprodutiva para identificar o aborto é uma dessas manipulações de linguagem. Na verdade, estamos a falar de uma violência extrema contra a mulher e a criança; e as leis e a administração falam de saúde reprodutiva quando na verdade se trata de saúde mental e saúde espiritual, porque se tira a criança do corpo mas fica uma marca indelével na mente para toda a vida, uma fratura irreversível no coração da feminilidade. É esta a linguagem que faz com que estes postulados sejam tão facilmente filtrados, especialmente entre os jovens.

Três elementos, três demissões 

"Em que consiste esta mutação antropológica? Consegui detetar três elementos que tecem os fundamentos da nossa civilização ocidental: a falta de natureza, a renúncia à natureza humana, à alteridade sexual, à biologia; a renúncia à racionalidade e a renúncia à transcendência. Desnaturado, sem racionalidade e sem transcendência. São estes os postulados que sustentam o ser humano atual. E afectam diretamente o casamento".

Na opinião de María Calvo, "sem a natureza, sem a biologia, sem a alteridade sexual, pensar que somos iguais, idênticos, permutáveis, que o sexo não é constitutivo da pessoa e que, portanto, ser homem ou mulher depende de um sentimento, da vontade, e que é absolutamente fluido e que se pode escolher; isso causa danos horríveis ao casal. É impossível sustentar um casamento pensando que a pessoa que está ao nosso lado é idêntica, fungível, permutável, que verá o mundo pelo mesmo prisma que nós, quando na realidade há diferenças entre os sexos que devem ser tidas em conta".

Iguais, mas com diferenças

"É verdade que nós (homens e mulheres) somos iguais e que somos iguais em direitos, deveres, dignidade, humanidade e somos iguais em QI, em objectivos a atingir", salientou o professor de mestrado. "Mas, na verdade, a forma de ver a vida, a forma de amar, a sexualidade são muito diferentes e isso foi demonstrado pela ciência. Por isso, não prestar atenção a isto leva ao conflito, ao desencanto e à rutura".

"E quando somos pais isso é exacerbado porque a neuroquímica do cérebro da mulher muda realmente, e muda para proteger aquela criança que chegou tão indefesa, e isso é um misto de necessidade e de liberdade, e também a do pai, porque de repente ele torna-se protetor, percebe que tem de dar segurança, proteção, fortalecer aquela criança, e então é verdade que as diferenças que no início pareciam um pouco insignificantes, depois, quando exercemos a paternidade e a maternidade são muito exacerbadas; Mas elas são necessárias para aquela criança, para o equilíbrio daquela criança.

Fernando Simón: subjectivização do casamento

Professor de Direito Fernando Simón Yarza adoptou uma abordagem de fundamentação jurídica, a fim de "focar a dualidade sexual como caraterística essencial da instituição do casamento", e passou da análise do conceito clássico "para a conceção emotivista". O conceito clássico foi quebrado, na sua opinião, na lei espanhola 13/2005 (regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo sexo), ou nos Estados Unidos em Obergefell v. Hodges (2015). 

Trata-se de um fenómeno de "subjectivização do casamento".. Estamos perante uma mudança que altera radicalmente o significado da instituição, o que implica a subjetivação radical do casamento numa chave emotivista".

"A masculinidade e a feminilidade são arquétipos, não estereótipos", afirmou. "Não aludem a um modelo (gralhas) que se baseia simplesmente numa convicção social firme (stereos), mas a algo que está no início ou na origem (archē) da realidade. Por isso, é impossível suprimir o apelo da dualidade sexual, precisamente porque se trata de um arquétipo (Peter Kreeft)".

Órgão reprodutor, masculino e feminino em conjunto

Fernando Simón definiu o casamento entre um homem e uma mulher como "um pacto de vida abrangente. Uma união orgânica abrangente (uma expressão fascinante usada, entre outros, por John Finnis)", disse ele. "É orgânica, forma um só órgão. Ao contrário da união dos sexos, nenhuma outra união física entre duas pessoas pode formar um órgão tão unitário. O indivíduo é suficiente em si mesmo para realizar as suas funções vitais (digestivas, respiratórias, etc.) porque é capaz de coordenar organicamente as diferentes partes do seu corpo.

"A função de transmitir a vida, porém, é a única para a qual o indivíduo não é suficiente em si mesmo, mas é, para esse efeito, organicamente incompleto", sublinhou. "Em sentido estrito, é falso dizer que o indivíduo tem órgãos reprodutores. O órgão reprodutor é o homem e a mulher unidos. O dom da vida transcende o indivíduo e só pode realizar-se naturalmente na coordenação biológica do homem e da mulher que formam um único órgão. É por isso que o Génesis não é metafórico quando diz que o homem e a mulher se tornam um só corpo".

Três características do casamento emotivista

"A nova visão do casamento é essencialmente emotivista", sublinhou Fernando Simón em vários momentos, "e está cheia de aporias, contradições, e caracteriza-se por "três traços: a união afetivo-sexual, entendendo o sexual como pura convivência no contacto libidinal consentido, sem necessidade de complementaridade (1), o cuidado e apoio mútuos (2), e a partilha dos encargos domésticos (3). O problema é que o afeto sexual, para além da orientação estrutural para a vida que é própria do casamento, não deveria ter qualquer relevância jurídica", salientou Simon.

Algumas consequências das suas palavras são, na sua opinião, que "a legalização da nova visão do casamento distorce a compreensão conjugal do casamento. O sexo é entendido, na sua essência, como libido, mas é depois visto como carecendo de uma orientação estrutural e normativa para além da libido". Em segundo lugar, "obscurece a realidade de que a educação num lar com um pai e uma mãe naturais é favorável ao desenvolvimento da criança, uma tese apoiada, na minha opinião, pelo senso comum e defendida por académicos de renome. A luta contra esta posição de senso comum tem sido agressiva e levou ao cancelamento de cientistas sociais".

E ainda, na sua opinião, "o obscurecimento das correlações entre "casamento conjugal" e "procriação e educação dos filhos" conduz inexoravelmente à perda de sentido de uma multiplicidade de normas matrimoniais baseadas nesta correlação".

Nas suas conclusões, Fernando Simón observou que "o casamento é um arquétipo. Como tal, não pode ser ocultado da consciência. Para o obscurecer na consciência é preciso fazer uma violência constante, viver num ativismo violento contínuo. A lei que tenta alterar este arquétipo com ficções constitui um ato de violência sobre a sociedade. Afecta a consciência das pessoas, confundindo-as sobre o objeto dos seus desejos, sobre o objeto da justiça, sobre a verdade das coisas"..

Os desejos tornam-se direitos

Depois de Fernando Simón, María Calvo referiu-se também ao segundo fator de desestabilização do casamento, que é, na sua opinião, "a terrível perda de racionalidade que estamos a viver. Porque neste momento, e se olharmos para as leis, é incrível, por exemplo a lei sobre a transexualidade, mas muitas outras, a lei sobre o aborto também está incluída neste emotivismo e nesta sensibilidade em que caímos e nesta anulação da razão".

"Eliminámos a razão e sublimámos os desejos a um ponto em que, como diz um autor, o meu desejo é a lei", acrescentou. "Assim, se eu não quiser ter um filho, tenho direito ao aborto, ou seja, os desejos transformam-se em direitos. O problema de sublimar os desejos, os sentimentos, as emoções e de se sobrepor à razão é que não podemos amar. Não podemos amar porque o amor é o uso da razão.

Nos seus discursos, Maria Calvo analisou a alteridade sexual: "O problema agora é o que é ser homem e o que é ser mulher". "Esta ideologia de género que nega as diferenças biológicas está a causar muitos danos". "O que é ser homem. Agora os rapazes adaptaram-se culturalmente ao arquétipo feminino, é carinhoso, empático, etc.". "Há medo de ser homem e do que isso implica (autoridade, proteção, segurança).

"O meu tempo, a minha liberdade

Num inquérito realizado em 2022 pelo Instituto Valenciano de Infertilidade, 62 % das mulheres declararam abertamente que queriam estar sozinhas, não queriam casar e não queriam ter filhos. As razões são "o meu tempo e a minha liberdade". E se pensam em ter um filho, para que queremos o casamento se posso ter filhos sozinha", reflecte María Calvo, citando um estudo do Instituto Valenciano de Infertilidade, acrescentando que uma elevada percentagem de jovens espanholas pensa em ser mãe solteira, sem pai, ao longo da vida.

"Esta dispensa dos homens chegou a extremos inimagináveis", disse ela noutra altura. "Não precisamos de homens, tudo o que tem a ver com a maternidade já foi conseguido (técnicas de reprodução assistida): a genealogia é substituída pela tecnologia.

"Se perdermos Deus, perdemo-nos a nós próprios".

No que respeita à perda da transcendência, María Calvo salientou no final. "Se Deus se perde, perdemo-nos a nós próprios. Porque nos emancipamos realmente do Criador, caímos na idolatria do eu, portanto é o meu eu autorreferencial, o meu tempo, a minha liberdade. Neste egocentrismo e narcisismo, o casamento é impossível, porque, como dissemos antes, o amor é pensar no outro antes de pensar em si mesmo, como um hábito.

Na edição de maio da revista Omnes, encontrará estas e outras questões debatidas no Fórum Omnes, incluindo perguntas do público.

O autorFrancisco Otamendi

Os avós clinex

Deus, ou o teoria evolutiva da avó Seja qual for o nome que lhe queiramos dar, ele queria que os avós estivessem presentes para nos ajudarem a crescer e para nos transmitirem os conhecimentos que exigem mais experiência.

16 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Sabia que, nas comunidades de caçadores-recolectores, as crianças que têm uma avó têm 40% mais probabilidades de sobreviver? As avós são uma parte fundamental do sucesso da espécie humana, mesmo que atualmente sejam, infelizmente, descartáveis.

Ouvi-o de María Martinón, uma eminente antropóloga que cito frequentemente. A aparente prova científica que ela descreve até tem um nome carinhoso: a "teoria da avó". Em que é que consiste? O diretor do Centro Nacional de Investigação sobre a Evolução Humana explica: "A menopausa, nas mulheres, acontece demasiado cedo porque somos uma espécie de vida longa. Não se trata, portanto, de uma deterioração, mas de uma estratégia de sucesso. Ter uma avó com plenas capacidades físicas e mentais significa ter alguém que vai investir parte da sua vida para que possamos progredir. Além disso", acrescenta, "elas são um imenso reservatório de conhecimentos e de memória.

Também nas nossas comunidades urbanas do século XXI, não há dúvida de que isto é tão verdadeiro como um templo.

O avós e avôs são uma enorme mais-valia para a nossa sociedade e são eles que suportaram e continuam a suportar uma grande parte dos encargos familiares: cuidam dos netos, levam-nos à escola, às actividades extracurriculares, às aulas de catequese, preparam as refeições para os filhos, filhas e cônjuges, contribuem financeiramente para as casas ou empresas dos filhos em tempos de crise... Como são grandes os avós!

Mas ai de nós quando eles começam a deixar de ser produtivos e "convenientes" ao sistema. Dependemos deles para tudo, mas quando são eles que dependem de nós, descartamo-los. Tornam-se avós clínex.

São também, em certa medida, responsáveis por esta triste tendência. Porque muitos educaram os seus filhos para não sofrerem por nada, para fugirem ao mais pequeno problema que exija esforço ou desprendimento. A mãe e o pai estiveram sempre lá para nos tirar as castanhas do fogo; mas agora, como já não nos podem ajudar e o problema dos seus cuidados recai sobre nós, não somos capazes de o enfrentar.

A solução do eutanásia é apresentada como uma solução atractiva para o problema e são os próprios avós, na sua obsessão de poupar sofrimento aos filhos, que já pedem ajuda sob a forma de suicídio, se não conseguirem fazer face aos seus cuidados. Há dias, ouvi uma senhora idosa dizer: "Não quero ser um fardo para os meus filhos. Assim que não puder mais cuidar de mim, eles que me dêem a injeção". Pode parecer um gesto de extrema generosidade, mas, na realidade, o suicídio (quando não se trata de um desequilíbrio mental) é nada mais nada menos do que um ato de arrogância, a auto-afirmação mais radical da ISou tão grande que até posso decidir quando morrer".

Na recente declaração "Dignitas infinita publicado pela Santa Sé, recorda-se que "ajudar o suicida a tirar a própria vida é uma ofensa objetiva à dignidade da pessoa que a pede, mesmo que satisfaça o seu desejo: "devemos acompanhar a morte, mas não provocar a morte ou ajudar qualquer forma de suicídio. Recordo que o direito de cuidar e de ser cuidado por todos deve ser sempre privilegiado, para que os mais fracos, em particular os idosos e os doentes, nunca sejam descartados".

Deus, ou o teoria evolutiva da avó como lhe quisermos chamar, ele queria o avós estavam lá para nos ajudar a crescer e para nos transmitir os conhecimentos que exigem mais experiência. E o facto é que um idoso indefeso, longe de ser um obstáculo, pode ser a melhor lição de vida para os nossos filhos, porque lhes explica onde terminam todos os esforços humanos, dá-lhes a perspetiva necessária para compreenderem quem somos e para onde vamos.

Privar os nossos filhos de os verem envelhecer, de os ajudarem quando já não são capazes de se ajudar a si próprios, de os acompanharem nos seus últimos anos e no momento da morte é privá-los da lição mais importante da vida: que os seres humanos têm uma data de validade e uma dignidade que vai muito para além do facto de valermos ou não alguma coisa. Não há ninguém como uma avó em casa para explicar, com a sua presença, que somos seres finitos dotados de uma dignidade infinita.

O autorAntonio Moreno

Jornalista. Licenciado em Ciências da Comunicação e Bacharel em Ciências Religiosas. Trabalha na Delegação Diocesana dos Meios de Comunicação Social em Málaga. Os seus numerosos "fios" no Twitter sobre a fé e a vida diária são muito populares.

Vaticano

O Papa Francisco apela à paz no Médio Oriente

Para além do último apelo à paz feito pelo Papa no domingo passado, no Regina Caeli, por ocasião da intervenção do Irão no conflito israelo-palestiniano, o Santo Padre fez numerosos apelos à paz no Médio Oriente nas últimas semanas.

Giovanni Tridente-15 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Enquanto o Médio Oriente continua a ser ensanguentado por vários conflitos, o Papa Francisco não se cansa de usar a sua voz autoritária para renovar uma vez mais uma forte apelo O Presidente do Parlamento Europeu, José Manuel Durão Barroso, pediu a reconciliação e a paz também nesta região especial do mundo, e não há um dia em que não peça orações pela "atormentada Ucrânia".

De facto, nas últimas semanas, foram emitidas duas importantes mensagens, uma dirigida ao mundo árabe e outra especificamente à comunidade católica da Terra Santa, unidas pelo mesmo sentimento de angústia perante a dramática situação que se vive naquela região e pela firme convicção de que só através do diálogo e da superação das divisões é possível construir um futuro de esperança.

A mais recente intervenção surge numa mensagem enviada ao canal de televisão árabe Al Arabiya, por ocasião do fim do Ramadão. Nela, Francisco expressa a sua profunda angústia pelos conflitos que há demasiado tempo ensanguentam as "terras abençoadas" da região, desde a Palestina e Israel até à Síria e ao Líbano. "Deus é paz e quer a paz", diz o Papa, reiterando com veemência que "a guerra é sempre e apenas uma derrota: é um caminho sem direção; não abre perspectivas, mas extingue a esperança".

Dirigindo-se diretamente aos responsáveis políticos, o Pontífice exorta-os a parar com "o barulho das armas" e a pensar nas crianças, que precisam de "casas, parques e escolas, não de sepulturas e fossas". Embora entristecido pelo "sangue que corre" nestas terras, Francisco manifesta a sua confiança de que "os desertos podem florescer" e que as sementes de esperança podem brotar dos "desertos do ódio", se soubermos caminhar juntos no respeito mútuo e no reconhecimento do direito à existência de cada povo.

"Acredito e espero nisto", diz o Papa na sua Mensagem, "e comigo e com os cristãos que, no meio de tantas dificuldades, vivem no Médio Oriente: abraço-os e encorajo-os, pedindo-lhes que tenham sempre e em toda a parte o direito e a possibilidade de professar livremente a sua fé, que fala de paz e de fraternidade".

Aos católicos da Terra Santa

Durante a Semana Santa, o próprio Pontífice tinha tomado a iniciativa de enviar uma carta aos católicos da Terra Santa em vista da Páscoa deste ano. O texto exprimia uma vez mais a proximidade do Papa e a solidariedade dos católicos com esta comunidade cristã que, desde há séculos, testemunha o mistério da Paixão e da Ressurreição de Jesus nos chamados Lugares Santos.

Embora consciente do grave sofrimento que os fiéis da Terra Santa, "imersos na Paixão", estão a atravessar neste momento, o Papa encorajou-os a não perderem a esperança na Ressurreição. Chegou mesmo a chamar-lhes "tochas que ardem na noite" e "sementes de bem numa terra dilacerada pelo conflito", que pela sua capacidade de "se levantarem e irem em frente" anunciam que o Crucificado ressuscitou verdadeiramente.

Na Carta, Francisco manifestou também o seu afeto paternal por aqueles, especialmente "crianças a quem é negado um futuro, aqueles que choram e sofrem, aqueles que sentem angústia e perplexidade". E renovou o convite a todos os cristãos do mundo para que se tornem "apoio concreto" e rezem sem cessar para que "todos os habitantes da vossa querida Terra possam finalmente estar em paz".

Embora dirigidos a contextos diferentes - o mundo árabe e a comunidade católica da Terra Santa - os dois documentos papais partilham, portanto, o mesmo apelo: nestes tempos sombrios marcados pela "loucura inútil da guerra", é necessário redescobrir a esperança da Ressurreição e construir a paz com determinação, única via para o futuro de toda a região e da humanidade.

Um convite sincero a todos os crentes, mas também a todas as pessoas de boa vontade, a não cederem à violência e a continuarem a lançar as sementes de uma possível reconciliação.

O autorGiovanni Tridente

ColaboradoresFederico Piana

Artesãos da paz

Há um modo concreto de compreender a intensidade com que a Igreja promove e defende a paz no mundo: basta contar todos os homens e mulheres que, em todos os continentes, arriscam a vida para difundir os valores da fraternidade humana ensinados pelo Evangelho.

15 de abril de 2024-Tempo de leitura: 1 minuto

Há um modo concreto de compreender a intensidade com que a Igreja promove e defende a paz no mundo: basta contar todos os homens e mulheres que, em todos os continentes, arriscam a vida para difundir os valores da fraternidade humana ensinados pelo Evangelho. Seria demasiado longo contar aqui as histórias dos últimos quinze anos, mas duas delas, emblemáticas, podem ajudar a iluminar o grande empenho dos católicos em levar a paz aos povos e às nações. 

A primeira história vem do Haiti, uma nação das Caraíbas que se encontra atualmente num caos total e enfrenta a violência feroz dos bandos armados que assolam o país e agravam a sua já grande pobreza. Neste contexto, D. Pierre André Dumas, bispo da diocese de Anse-à-Veau-Miragoâne, sempre tentou levar as várias facções em conflito ao diálogo, organizando encontros com os líderes dos vários bandos armados com o objetivo de alcançar a paz. No final de fevereiro, encontrava-se na capital haitiana, Port-au-Prince, para um desses encontros, quando um atentado interrompeu os seus sonhos: agora, ferido, debate-se entre a vida e a morte. 

Outra história vem do Sudão, um país africano dilacerado por um conflito civil sangrento. Aqui há uma freira, a Irmã Comboniana Elena Balatti, que todos os dias reúne centenas de refugiados na fronteira com o Sudão do Sul que, por causa da guerra, querem fugir para um lugar seguro. A Irmã Elena, arriscando sempre a sua própria vida, coloca-os num barco e leva-os para um lugar seguro. Entre estes homens e mulheres, sudaneses e sul-sudaneses, a Irmã Elena tenta reacender a compreensão e a paz. 

Um compromisso global que une não só Monsenhor Dumas e a Irmã Elena, mas também muitos católicos de quem talvez nunca mais se ouvirá falar.

O autorFederico Piana

 Jornalista. Trabalha para a Rádio Vaticano e colabora com L'Osservatore Romano.

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Ecologia integral

Laura Iglesias. Uma convicção sobre a complementaridade entre fé e ciência

A investigação desta mulher, católica convicta, foi de grande utilidade para a identificação dos espectros estelares no contexto do desenvolvimento da astrofísica. Esta série de pequenas biografias de cientistas católicos é publicada graças à colaboração da Sociedade de Cientistas Católicos de Espanha.

Ignacio del Villar-15 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

Laura Iglesias Romero, falecida a 15 de abril de 2022, era doutora em Ciências e professora de investigação no Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC).

Grande parte da sua carreira foi passada no Instituto de Ótica "Daza de Valdés", hoje conhecido como Miguel Catalán, em honra do ilustre químico da Idade da Prata Miguel Catalán Sañudo, que foi o seu mentor.

Ocupou também o cargo de Professora Assistente de Estrutura Atómico-Molecular e Espectroscopia na Universidade Complutense de Madrid.

Em 1956, candidatou-se a uma bolsa do CSIC para estudar na Universidade de Princeton, no estado de Nova Jérsia (EUA), onde trabalhou como assistente de investigação com o Professor Allen Shenstone, então Diretor da Faculdade de Física. Em seguida, mudou-se para Washington, D.C., onde trabalhou no National Bureau of Standards durante a década de 1960.

Apesar de ter recebido várias ofertas, decidiu regressar a Espanha e reingressou no CSIC. No Instituto de Ótica Daza de Valdés, concentrou-se na obtenção e observação de espectros de elementos de transição relevantes para a astrofísica, contribuindo para a compreensão do movimento estelar e de outros componentes pesados do sistema periódico. Os seus dados foram muito úteis para a identificação de espectros estelares no contexto do desenvolvimento da astrofísica.

Para além do seu trabalho científico, ensinou Cálculo de Sistemas Ópticos, tornando-se uma especialista na matéria. Chegou mesmo a conceber um periscópio, o que lhe valeu o cargo de Chefe da Secção de Projectos da Oficina de Laboratório e Investigação do Estado-Maior Naval. Fez também uma estadia de pós-doutoramento no Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Quanto à sua fé, recebeu a catequese do Caminho Neocatecumenal de Kiko Argüello em San Antonio de la Florida (Madrid) e completou a sua formação na paróquia de Santiago (Madrid). Interrogado sobre a compatibilidade entre ciência e fé, não hesitou em afirmar que não só são compatíveis como complementares. 

O autorIgnacio del Villar

Universidade Pública de Navarra.

Sociedade de Cientistas Católicos de Espanha

Vaticano

O Papa manifesta a sua preocupação com o agravamento do conflito na Terra Santa

Este domingo, 14 de abril, o Papa Francisco rezou o Regina Caeli perante os fiéis reunidos na Praça de São Pedro. No final, pediu orações pela paz, especialmente pelo conflito israelo-palestiniano.

Loreto Rios-14 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

No Regina Caeli de hoje, o Papa Francisco recordou que "o Evangelho leva-nos de volta à noite da Páscoa. Os apóstolos estão reunidos no Cenáculo quando os dois discípulos regressam de Emaús e contam o seu encontro com Jesus, "o que lhes tinha acontecido no caminho e como o reconheceram ao partir o pão" (Lc 24, 35). E, enquanto eles exprimem a alegria da sua experiência, o Ressuscitado aparece a toda a comunidade. Jesus chega precisamente no momento em que eles partilham a história do seu encontro com Ele. Reflictamos sobre isto, sobre a importância de partilhar a nossa fé".

Neste sentido, o Papa Francisco recordou que "todos os dias somos bombardeados com mil mensagens. Muitas são superficiais e inúteis, outras revelam uma curiosidade indiscreta ou, pior ainda, nascem da fofoca e da malícia. São notícias que não servem para nada, aliás, fazem mal. Mas há também notícias bonitas, positivas e construtivas, e todos sabemos como é bom ouvir coisas boas e como nos sentimos melhor quando isso acontece. E também é bonito partilhar as realidades que, para o bem ou para o mal, tocaram a nossa vida, para podermos ajudar os outros.

O Pontífice convidou-nos então a refletir sobre "algo de que muitas vezes temos dificuldade em falar. Paradoxalmente, trata-se da coisa mais bela de que temos de falar: o nosso encontro com Jesus. Cada um de nós poderia dizer muito sobre isso: não fazendo o papel de mestre dos outros, mas partilhando os momentos únicos em que sentimos o Senhor vivo e próximo, que acendeu a alegria nos nossos corações ou enxugou as lágrimas, que transmitiu confiança e consolação, força e entusiasmo, ou perdão, ternura, paz. É importante partilhar isto na família, na comunidade, com os amigos. Assim como é bom falar das boas inspirações que nos guiaram na vida, dos pensamentos e sentimentos que surgem quando nos encontramos na presença de Deus, e também dos esforços e das fadigas que fazemos para compreender e progredir no caminho da fé, talvez também para nos arrependermos e refazermos os nossos passos. Se o fizermos, Jesus, tal como fez com os discípulos na noite de Páscoa, surpreender-nos-á e tornará os nossos encontros e os nossos ambientes ainda mais belos.

O Papa propôs-nos então estas perguntas para meditarmos: "Procuremos então recordar um momento forte da nossa vida de fé, um encontro decisivo com Jesus. E perguntemo-nos: falei dele a alguém, dei-o, com simplicidade, aos familiares, aos confrades, aos entes queridos e àqueles com quem estou em contacto? E por fim: Interessa-me, por minha vez, ouvir dos outros o que têm para me contar sobre o seu encontro com Cristo?
Que Nossa Senhora nos ajude a partilhar a nossa fé para que as nossas comunidades se tornem cada vez mais lugares de encontro com o Senhor.

Agravamento do conflito em Israel

No final da oração do Regina Caeli, o Papa indicou que estava a seguir com tristeza as notícias do agravamento da situação em Israel devido à intervenção do Irão na noite passada, que considera Israel culpado do ataque ao seu consulado em Damasco (Síria).

O Santo Padre apelou ao fim da "espiral de violência", que poderia conduzir o Médio Oriente a novos conflitos, e à oração pela paz.

Dia Mundial da Criança

Depois de saudar os peregrinos provenientes de vários países, o Papa dirigiu uma saudação especial às crianças presentes, recordando-lhes que o primeiro Dia Mundial da Criança será celebrado na Igreja nos dias 25 e 26 de maio. Além disso, o Pontífice pediu aos fiéis que acompanhem com a oração o caminho rumo a este dia e indicou às crianças que espera "todas elas": "Precisamos da vossa alegria e do vosso desejo de um mundo melhor".

Por fim, o Papa pediu orações pelas crianças que sofrem com a guerra e, como de costume, lembrou-nos que rezássemos por ele.

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Mundo

Luis Alfonso Zamorano: "As vítimas chegam a acreditar que Deus é cúmplice do abuso".

O padre Luis Alfonso Zamorano acompanha há anos as vítimas de abusos e escreveu vários livros sobre o assunto. Nesta entrevista, dá-nos alguns conselhos importantes.

Loreto Rios-14 de abril de 2024-Tempo de leitura: 6 acta

O padre Luis Alfonso Zamorano, para além de ter sido missionário no Chile durante quase duas décadas, passou anos a acompanhar as vítimas de abuso. Participou recentemente no III Congresso Latino-Americano "Vulnerabilidade e abuso: para uma visão mais ampla da prevenção", realizado na Cidade do Panamá de 12 a 14 de março. É também autor de vários livros sobre o acompanhamento de vítimas de abuso, incluindo "Vulnerabilidade e abuso: para uma visão alargada da prevenção".Deixará de ser chamado de "abandonado".". Nesta entrevista, ele dá algumas pistas importantes.

Como é que a posição da Igreja sobre a questão dos abusos evoluiu?

-É uma questão muito ampla, mas creio que desde 2018, como resultado da crise no Chile, há um antes e um depois. Nunca antes um Papa tinha feito um magistério tão ativo e abundante nesta área. Experiências como as do REPARA, em Madrid, são um farol de esperança muito poderoso. A nível jurídico, embora ainda existam muitos desafios, reformámos o sexto livro do Código de Direito Canónico, há um Vademecum e protocolos mais claros. Penso que os maiores progressos foram feitos a nível da prevenção. Por exemplo, atualmente, a maior parte das escolas da Igreja têm protocolos de prevenção bastante sérios. Mas também é verdade que, em muitas paróquias e instituições de formação, isso ainda não é discutido, e ainda não há uma formação séria para padres e leigos nesta área. Graças a Deus que nos últimos anos tem crescido exponencialmente o número de publicações, livros e congressos dedicados à investigação e prevenção dos abusos sexuais, quer de consciência quer de autoridade. Mas seria um erro sermos complacentes. Creio que ainda temos um longo caminho a percorrer em termos de verdade e de reconhecimento.

Quais são as tarefas que tem pela frente?

Ainda temos medo das vítimas e olhamo-las com desconfiança. Temos de fazer o que Jesus fez: chamou uma criança, colocou-a no centro da comunidade e disse: "Este é o mais importante": o vulnerável, o pequeno, o frágil, o ferido... Não conseguimos compreender a gravidade dos abusos sexuais e dos abusos de consciência no seio da Igreja, devido aos terríveis danos espirituais que causam quando o abusador ou aquele que encobre os crimes é alguém que representa Deus e actua em seu nome. As vítimas chegam a acreditar que Deus é cúmplice do abuso. Temos vocações divididas ao meio, vidas quebradas na sua fé, comunidades feridas e escandalizadas... Precisamos de parar de levantar as mãos para o ar e assumir a gravidade do que significa o abuso intra-eclesial.

Depois, há que ter uma formação transversal, que atravesse organicamente todos os domínios da pastoral. Em muitas paróquias e movimentos ainda quase não se fala sobre este tema.

Há muito a melhorar nos processos canónicos. Por exemplo, o tratamento dos queixosos: a vítima deve poder fazer parte do processo.

Na minha opinião, o que o Papa Francisco está a fazer com o Sínodo é uma resposta de raiz ao problema dos abusos, porque basicamente estamos a tentar rever o nosso mundo de relações dentro da Igreja, o conceito de poder, de tomada de decisões, clericalismo, etc. Sem falar diretamente de abusos, creio que, se realmente abraçarmos os princípios da sinodalidade, estaremos a atacar a raiz do problema.

Depois de ter sido vítima de uma pessoa consagrada, é possível curar-se e recuperar a confiança?

-A confiança é a grande ferida, entre outras. É um dos principais desafios, porque o abuso, quando cometido por pessoas próximas de quem nunca suspeitaríamos, é, antes de mais, uma grande traição à confiança. É possível curar? Sem dúvida. Sim, a cura é possível. O que é preciso para a curar?

Eu diria que, antes de mais, é preciso compreender o que significa curar. Curar não significa que chega uma altura em que todos os sintomas relacionados com os abusos que sofri desaparecem magicamente da minha vida. Por vezes, as manifestações do trauma a nível psicológico e emocional surgem na nossa vida das formas mais inesperadas. Pode estar bem durante muito tempo e, de repente, passar por um período de pesadelos ou voltar a ter ataques de pânico, quando estes já tinham terminado, porque está novamente sujeito a uma situação stressante que lhe recorda o momento traumático. Isso significa que não está curado? Não, significa que está a fazer uma viagem e que é uma viagem em que a cicatriz pode reabrir. Por vezes, a cura tem muito mais a ver com a atitude que temos em relação a essas feridas que nem sempre cicatrizam completamente. E é da ferida que pode sair a luz e a vida para os outros...

Dito isto, para os sobreviventes no seio da Igreja, a cura tem também a ver com justiça. O Salmo 85 diz: "A misericórdia e a fidelidade encontram-se, a justiça e a paz beijam-se.". Sem justiça, muitos sobreviventes não encontram paz. E a justiça está nas nossas mãos, enquanto Igreja, para ser feita. Sem medidas de reparação, as vítimas não se curam. Porque os danos são tão grandes, em todas as facetas da vida. Poderia falar-vos de pessoas que não conseguem ter um emprego estável, que têm longos períodos de depressão, que perderam carreiras brilhantes, porque o abuso diminuiu todas as suas energias, a sua criatividade... Para não falar da sua fé. Se continuarmos a negar-lhes justiça, penso que não é impossível, porque há sobreviventes que conseguem progredir, mas para muitos outros será muito difícil reconstruir as suas vidas.

Quais são, na sua opinião, as principais chaves para o acompanhamento das vítimas?

Penso que a primeira coisa a fazer é ouvir com aceitação incondicional, sem julgamento, e acreditar. Se alguém nos abre o seu coração num contexto de suposta confiança e confidencialidade como este, e não acreditamos nele, não o acolhemos... se questionamos o seu testemunho... podemos causar muitos danos. Eu diria, antes de mais, acreditem sempre. Não estou a falar de acreditar em alguém que aparece na televisão ou nos meios de comunicação social, mas numa pessoa que aparece num contexto presencial. Não me cabe a mim investigar a veracidade do testemunho. Cabe-me a mim aceitar o testemunho como um companheiro da pessoa.

Em segundo lugar, para eliminar a culpa, porque normalmente carregam consigo uma culpa persecutória muito intensa. Isto é terrível, porque, apesar de estarem inocentes, o agressor fê-los acreditar que foram eles que "provocaram o abuso". Mesmo que se trate de um adulto. Aqui, o único responsável pela agressão sexual é o agressor. Isso é muito libertador, e elas precisam disso.

Por outro lado, penso que, se não tivermos formação especializada, temos de aprender a recorrer a quem tem formação específica. Ou, se não tivermos, temos de nos formar bem, porque este é um trauma muito específico, com características muito particulares. Portanto, temos de ser treinados, não basta a boa vontade. Temos que ter muito cuidado com a nossa linguagem religiosa, quando usamos conceitos como o perdão: "Bom, mas depois de tantos anos, temos que virar a página". Ou "olha, guarda isto para ti, leva-o para a tua sepultura, não contes a ninguém". É um abuso que foi silenciado durante anos e, com essa frase, volta-se a silenciar a pessoa, em vez de a ajudar. O perdão é o fim de um processo. E "perdão" não significa ignorar as exigências da justiça.

Além disso, é muito importante que o laço que se estabelece nesta relação de ajuda seja um laço que possa servir à pessoa como uma experiência de contraste: se a ferida foi precisamente a quebra de confiança, o facto de a pessoa conseguir estabelecer um laço de confiança com alguém é terapêutico em si mesmo. Mas esta confiança tem de ser purificada, tem de ser verdadeira, não pode voltar a ser traída. O conselheiro não é o salvador, não sou eu que vou resolver todos os problemas da pessoa, mas não posso desiludi-la na confiança. Terei também de regular as expectativas, isso é muito importante. E, se for necessário, talvez tenha de acompanhar um processo de denúncia. Isso é discernido, porque vai depender do caso: se forem menores, é claro, temos de informar a pessoa adequada, mas se forem adultos, teremos de discernir quando, como, em que altura, se a pessoa o quer ou não, porque a decisão é dela.

Este assunto poderia ser tratado longamente, mas estas seriam as chaves para um primeiro encontro.

Houve casos de arrependimento entre os abusadores? Em muitos casos, eles parecem não ter consciência do mal que causaram.

Faz parte do seu distúrbio de personalidade. Geralmente, os agressores são muito narcisistas, anti-sociais, com traços paranóicos e borderline. Isso não significa que sejam loucos. São pessoas que podem ser brilhantes em muitas facetas da vida e são muito difíceis de distinguir. Quem me dera que fosse fácil. Com isto quero dizer que uma das dificuldades do narcisismo patológico é precisamente aceitar que há algo que não se está a fazer bem. Estamos cheios de distorções cognitivas e justificações e, por isso, há uma desconexão moral. Por isso, o trabalho consiste em ajudá-los a reconhecer gradualmente os danos terríveis que causaram.

As estatísticas de que disponho, de há uns anos a esta parte, indicam que 60 a 70 dos % não reconhecem o crime. Mas por vezes reconhecem. Ouvi recentemente o testemunho de um padre, que foi denunciado quando era mais velho, e que aceitou o facto, tendo mesmo dito: "Isto é algo que me pesou toda a vida, sempre pensei no que teria acontecido àquele adolescente. Se, antes de morrer, me for dada a oportunidade de pedir perdão e se, de alguma forma, eu puder aliviar a sua dor, aqui estou eu. Estar disposto a aceitar que algo assim aconteceu, ultrapassar o medo de que a sua imagem de homem de bem e de santo caia por terra, perante o julgamento dos seus próprios irmãos padres, não é fácil. No entanto, é também o único caminho para a vossa cura. O Papa Bento XVI deixou um itinerário muito claro: "Reconhecei abertamente os vossos crimes, submetei-vos às exigências da justiça, mas não desespereis da misericórdia de Deus". Este é o resumo do que seria um bom acompanhamento. Exige um caminho, um processo de profunda verdade e humildade, mas não é impossível.

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Dignidade infinita

Esta semana, o Dicastério para a Doutrina da Fé publicou o documento "Dignitas infinita" sobre a dignidade humana, no qual condena, entre outras coisas, a violência, a situação precária dos migrantes, o aborto, a maternidade de substituição e a teoria do género.

13 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

O Dicastério para a Doutrina da Fé publicou recentemente um Declaração intitulada "Dignitas Infinita" (Dignidade Infinita) sobre a dignidade humana. A Igreja, apoiada na razão e na Revelação, afirma que a dignidade de cada pessoa humana é "inalienável e intrínseca, desde o início da sua existência (até ao seu fim natural) como um dom irrevogável". Precisamente porque esta dignidade é intrínseca, ela permanece "para além de todas as circunstâncias" e o seu reconhecimento não pode depender do julgamento da capacidade de uma pessoa para compreender e agir livremente. Uma pessoa pode ser privada do uso da razão ou da liberdade sem perder a sua dignidade humana. A este respeito, a Declaração denuncia que "o conceito de dignidade humana é também por vezes utilizado de forma abusiva para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais são frequentemente contrários aos originalmente definidos e não raramente em contradição com o direito fundamental à vida".

A Declaração enumera um vasto leque de questões que constituem "graves violações da dignidade humana". Estas incluem o sofrimento da pobreza, a tragédia da guerra, o tráfico de seres humanos, o abuso sexual e a violência contra as mulheres, o aborto, a barriga de aluguer, a eutanásia e o suicídio assistido, a ideologia de género e a mudança de sexo. Sobre esta questão sensível, a Declaração esclarece que "isto não significa que exclua a possibilidade de uma pessoa afetada por anomalias genitais, já evidentes à nascença ou que se desenvolvam mais tarde, poder optar por receber assistência médica com o objetivo de resolver essas anomalias".

Como se pode ver, trata-se de um texto muito vasto, que aborda questões muito sérias e actuais. Por vezes, pode dar-nos a impressão de estarmos a pregar no deserto, mesmo quando se trata de questões em que a própria razão humana não tem grande dificuldade em distinguir o que está de acordo com a dignidade humana e o que lhe é contrário. No entanto, respiramos uma cultura relativista, individualista e hedonista, em que o que era óbvio se torna problemático e confuso, justificando - como diz a própria Declaração - uma multiplicação arbitrária de novos direitos, que contradizem a própria dignidade humana em que supostamente se baseiam. Convido-vos a lerem-na com calma. Com a minha bênção.

O autorCelso Morga

Arcebispo Emérito da Diocese de Mérida Badajoz

Mundo

Olivia Maurel: "Não há absolutamente nenhum 'direito' a ter um filho".

Quando Olivia Maurel descobriu, na sua juventude, que tinha sido "encomendada" pelos pais, a sua vida encaixou-se como um puzzle. O seu testemunho no parlamento da República Checa, em novembro de 2023, foi claro: não há qualquer justificação para obrigar uma criança a nascer para a separar da sua mãe biológica.

Maria José Atienza-13 de abril de 2024-Tempo de leitura: 7 acta

"O caminho para a paz exige o respeito pela vida, por cada vida humana, a começar pela do nascituro no ventre materno, que não pode ser suprimida nem transformada num produto comercial. A este respeito, considero deplorável a prática da chamada maternidade de substituição, que ofende gravemente a dignidade da mulher e da criança e se baseia na exploração das necessidades materiais da mãe. Uma criança é sempre uma dádiva e nunca o objeto de um contrato. Por isso, apelo à comunidade internacional para que se empenhe numa proibição universal desta prática. Com estas palavras duras, o Papa Francisco denunciou a prática da maternidade de substituição no início de janeiro de 2024, no seu discurso aos membros do corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé.

Algumas semanas antes deste discurso, um dos mais importantes do ano para o Papa, a jovem Olivia Maurel tinha enviado uma carta ao Santo Padre. Apesar de Olivia se declarar ateia e ativista feminista, enviou ao pontífice uma carta em que contava a sua experiência de sofrimento como mãe de aluguer e salientava que o Papa podia compreendê-la "e partilhar a angústia e a injustiça que sofri, porque conheço o seu empenho contra as 'novas formas de escravatura', a sua crítica à 'globalização da indiferença' e à 'cultura do desperdício', de que a maternidade de substituição é uma manifestação, bem como uma ameaça à família".

A maternidade de substituição, abordada em profundidade pelo Omnes na edição 727, correspondente a maio de 2023, tem sido notícia nos últimos meses. São inúmeros os relatos de pessoas, sempre ricas, que recorrem a terceiros para gestar uma criança.

Aos problemas jurídicos e à violação flagrante dos direitos humanos fundamentais juntam-se as consequências físicas e psicológicas para as mães grávidas e os seus filhos.

Preocupados com esta situação, em março de 2023, advogados, médicos e académicos de vários países assinaram a Declaração de Casablanca para a abolição da maternidade de substituição, de que a francesa Olivia Maurel se tornou o rosto visível.

Maurel, que deu uma entrevista ao Omnes nesta ocasião, espera que "a Igreja Católica seja um dos porta-estandartes da luta contra a barriga de aluguer".

Com 32 anos e a viver em França, é hoje a legítima porta-voz da luta contra a nova escravatura moderna da maternidade de substituição. O seu testemunho tem percorrido o mundo, aparecendo em numerosos meios de comunicação social de vários países. O seu objetivo é denunciar esta prática, apelar à sua abolição e, sobretudo, divulgar a sua experiência pessoal e as consequências da maternidade de substituição, tanto para as mães de aluguer como para os filhos de aluguer.

Descobriu que era uma filha de aluguer já adulta, mas antes disso sentia que "algo se passava". Como foi a sua infância e como se sentiu quando descobriu que era uma filha de aluguer?

-Os meus pais eram mais velhos do que a média dos pais dos meus amigos e eu tive um estilo de educação "mais velho".

Nunca tive com os meus pais a relação que tenho hoje com os meus filhos. Não me acariciava com eles, nunca confiei neles, apesar de ter tudo o que precisava, materialmente falando.

Atualmente, estou muito próximo dos meus filhos, com uma ligação muito estreita com eles. Eu adorava os meus pais e sei que eles me adoravam, e penso que fizeram o melhor que puderam com o que tinham. Ambos tiveram uma infância difícil, por isso não cresceram com a mentalidade que a minha geração tem, por exemplo.

Em criança, sempre que estava com os meus pais, tinha de ser acompanhada por amas, porque tinha medo que eles me abandonassem. Tinha sempre a sensação de que algo não estava bem.

Este palpite tornou-se mais intenso durante a minha adolescência. Tornei-me um adolescente muito complicado (mais difícil do que o adolescente comum, penso eu) e era extremamente difícil com os meus pais. Nessa altura, afastei-me mentalmente deles.

Por volta de 2016 - 2017, comecei a pesquisar no Google a cidade onde nasci para encontrar respostas sobre como foi o meu nascimento. Descobri então que a barriga de aluguer estava a ter lugar em Louisville (Kentucky) nesses anos.

Era como se tivesse finalmente encontrado a última peça do puzzle. A partir daí, as coisas foram por água abaixo e, desde então, a minha relação com os meus pais não tem sido muito boa.

Ela reconhece que teve uma vida materialmente confortável, mas espiritualmente dolorosa. Muitos dos argumentos a favor da maternidade de substituição baseiam-se no "desejo irreprimível" de ter um filho e na "capacidade de lhe dar uma boa vida". O que tem a dizer com base na sua experiência?

-Sim, tive uma vida muito, muito confortável do ponto de vista material. Os meus pais deram-me tudo materialmente. Nesse sentido, não posso discordar. Mas faltou-me o amor terno, materno e paterno. O facto de os pais terem recursos financeiros não significa que sejam capazes de proporcionar uma boa vida a um filho. Uma criança, até certo ponto, não quer saber de dinheiro, quer saber da presença dos seus pais, do amor, dos mimos, das palavras amáveis.

Sinceramente, quem é que se lembra da prenda que recebeu no seu quinto aniversário? No entanto, lembramo-nos de quando tivemos a nossa primeira separação e de como os nossos pais nos apoiaram ou não.

Não há absolutamente nenhum direito a ter um filho. As pessoas podem ter desejos irreprimíveis de ter uma família, e eu compreendo as situações dolorosas por que algumas famílias têm de passar, mas há outras formas de construir uma família, como a adoção.

Uma "necessidade" não é um apelo. Não é porque podemos, é porque devemos. A barriga de aluguer é ilegal em muitos países por uma razão: para proteger as mulheres e as crianças. Não é eticamente aceitável comprar um bebé e alugar o útero de uma mulher.

Não é crente, mas escreveu uma carta ao Papa Francisco há semanas a contar a sua história. Porque o fez?

Fi-lo porque sei que o Papa Francisco é importante. As suas palavras são ouvidas por muitas pessoas, e com razão, porque o seu discurso aos diplomatas, a 8 de janeiro, se tornou viral na Internet.

Muitos cristãos, católicos, recorrem à barriga de aluguer ou tornam-se mães de aluguer. Queria muito que ele sublinhasse o facto de condenar a prática da barriga de aluguer, para lembrar ao seu povo que a barriga de aluguer é atroz para os bebés e para as mulheres.

As suas palavras podem impedir algumas pessoas de recorrerem à barriga de aluguer ou de se tornarem mães de aluguer. As suas palavras também podem fazer com que as pessoas vejam o que a barriga de aluguer realmente é: uma nova escravatura.

No entanto, o mais importante é que o Papa apelou a uma proibição internacional da barriga de aluguer, que é exatamente o que a Declaração de Casablanca promove e procura alcançar. Como porta-voz da Declaração de Casablanca, sinto-me muito orgulhoso e feliz pelo facto de um homem tão influente concordar com o nosso trabalho: uma convenção internacional para a abolição da barriga de aluguer.

Em Espanha, por exemplo, o rádio A Conferência Episcopal Espanhola convidou recentemente Ana Obregón, uma atriz que utilizou o esperma do seu filho falecido para ter um filho através de uma barriga de aluguer.

Durante a entrevista, a maternidade de substituição foi apresentada como algo de belo. Como mulher e mãe, compreendo a sua dor, mas tenho uma opinião muito diferente sobre a maternidade de substituição. Sou ateia, mas decidi escrever uma carta ao presidente dos bispos espanhóis para expressar a minha desilusão relativamente a esta entrevista, porque a Igreja Católica é contra a barriga de aluguer. Não recebi qualquer resposta à minha carta, o que considero preocupante, porque não acho normal que se fale de maternidade de substituição como se fosse algo de fantástico numa estação de rádio da Igreja. Espero que a rádio reitere a posição da Igreja sobre a maternidade de substituição: ou seja, que é contra esta prática.

A barriga de aluguer tem um perfil económico claro: mulheres vulneráveis e "pais" ricos.

Como é que os Estados podem agir política e socialmente para impedir esta compra e venda de seres humanos?

-Os Estados precisam de começar a tornar a barriga de aluguer ilegal, aprovando leis rigorosas contra o recurso à barriga de aluguer nos seus próprios países, mas também leis que impeçam as pessoas de ir para o estrangeiro e trazer de volta crianças compradas. Sem isso, será difícil acabar de vez com a barriga de aluguer.

Temos de proteger estas mulheres vulneráveis. Nos últimos anos, têm-se registado cada vez mais relatos de celebridades ou casais que recorreram à barriga de aluguer.

Acha que existe uma campanha para "branquear" esta prática, para que os cidadãos a vejam como normal?

-Sim, acho que há uma campanha em todo o mundo para fazer com que a barriga de aluguer pareça "fixe".

Tomarei como exemplo o país onde vivo, a França. A maternidade de substituição é ilegal em França, mas, na minha opinião, só vimos documentários positivos na televisão sobre esta prática. Não vimos pessoas que são contra a prática da maternidade de substituição, como médicos, psicólogos, advogados ou mesmo mães de aluguer.

Só fui contactada uma vez por um jornal local no sul de França, mas não por nenhum dos principais meios de comunicação social (televisão, jornal). Tudo isto porque os meios de comunicação franceses estão nas mãos de pessoas que são a favor da maternidade de substituição e querem que esta seja legalizada em França.

Assim, estão a fazer com que as pessoas acreditem que a barriga de aluguer é bonita e não mostram o lado real da barriga de aluguer: a compra e venda de crianças, tirando as crianças das suas mães à nascença e alugando-as a mulheres vulneráveis.

Espero que em breve seja convidada a falar e a debater a maternidade de substituição no meu país. De facto, a ICAMS (Coligação Internacional para a Abolição da Barriga de aluguer) apresentou um relatório em que afirmava que os meios de comunicação social franceses eram tendenciosos em relação à barriga de aluguer.

O ICAMS demonstrou que, durante os documentários sobre a maternidade de substituição na televisão francesa, nunca havia ninguém contra a maternidade de substituição para qualificar e equilibrar as declarações das pessoas a favor da maternidade de substituição.

Tornou-se uma figura de proa na luta contra a barriga de aluguer. Que feedback recebeu e o que espera alcançar com a sua nova visibilidade?

-Recebi muitos comentários positivos de pessoas que não se atreveriam a dizer que são contra a maternidade de substituição, talvez por terem demasiado medo de serem criticadas.

As pessoas estão a falar, os olhos das pessoas estão a ser abertos e as pessoas estão a ser sensibilizadas para a realidade da barriga de aluguer. Isto é muito importante.

Também recebi muitos comentários negativos, mas não me incomodam muito. Estou sempre pronta para um debate. Espero que, com esta nova visibilidade que tenho, possa começar a fazer com que as pessoas compreendam como a maternidade de substituição é negativa e como é importante que os Estados se unam para a abolição universal da maternidade de substituição. É isso que a Declaração de Casablanca está a tentar alcançar e muitas pessoas estão a trabalhar arduamente para que seja assinado um tratado internacional.

Vaticano

O Papa Francisco visitará a Ásia e a Oceânia em setembro

O Papa Francisco deslocar-se-á à Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura em setembro de 2024, naquela que será a sua mais longa viagem apostólica até à data.

Paloma López Campos-12 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

A Santa Sé confirmou que o Papa Francisco visitará vários países da Ásia e da Oceânia em setembro. De 2 a 13 de setembro, o Santo Padre visitará a Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura.

Embora o itinerário exato da viagem apostólica não seja ainda conhecido, a Stampa Hall O Presidente da Comissão Europeia, D. Javier Solana, anunciou as datas da visita do Papa. Francisco estará em Jacarta, a capital da Indonésia, de 3 a 6 de setembro. Indonésia. Passará depois três dias, de 6 a 9 de setembro, em Port Moresby, a capital da Papua-Nova Guiné, e em Vanimo, a capital da província de Sandaun, na Papua-Nova Guiné. Em seguida, deslocar-se-á a Díli, cidade central de Timor Leste, onde permanecerá de 9 a 11 de setembro. Por fim, o Pontífice passará dois dias em Singapura.

População diversificada

Dos quatro países que o Santo Padre visitará, apenas dois têm uma população maioritariamente católica, Papua Nova Guiné e Timor Leste. A Indonésia é maioritariamente muçulmana, enquanto em Singapura o budismo é a religião mais praticada.

A diversidade da viagem não se limita à geografia ou às confissões religiosas, mas existe também uma grande diferença económica entre os países que o Santo Padre visitará. A Indonésia é a economia mais poderosa de todo o continente asiático e Singapura tem um mercado importante que lhe confere o PIB per capita mais elevado do mundo. Em contrapartida, em Timor-Leste, quase 40 % da população vive abaixo do limiar da pobreza e metade dos habitantes são analfabetos.

Itinerário não especificado

O Papa Francisco está a chegar a todos estes territórios a convite dos chefes de Estado e das autoridades eclesiásticas. No entanto, os encontros que terá com eles, bem como com as organizações e os cidadãos dos vários países, serão especificados numa data posterior, como refere a Sala Stampa.

Estados Unidos da América

Indulgência plenária para os participantes no Congresso Eucarístico

Os fiéis que assistem ao Congresso Eucarístico Nacional ou participam na Peregrinação Eucarística podem obter uma indulgência plenária.

Paloma López Campos-12 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

O Papa Francisco concedeu uma bênção apostólica aos participantes no Congresso Eucarístico Nacional nos Estados Unidos. Aqueles que participarem em qualquer um dos eventos do Reavivamento Eucarístico poderão obter uma indulgência plenária, conforme noticiado pelo Conferência dos Bispos Católicos dos EUA.

A notícia surge depois de o arcebispo Timothy Broglio ter pedido à Penitenciária Apostólica do Vaticano que concedesse uma indulgência a quem fizesse a Peregrinação Eucarística Nacional. De igual modo, o arcebispo pediu também que ele ou outro careca pudesse dar a bênção e a indulgência plenária aos participantes no congresso nacional.

Indulgência na peregrinação eucarística

O decreto emitido pelo Vaticano refere que "a indulgência plenária será concedida aos fiéis cristãos que participem na Peregrinação Eucarística Nacional em qualquer momento entre 17 de maio e 16 de julho de 2024". Os idosos, os doentes e aqueles que, por motivos graves, não podem viajar, mas que "participam em espírito" na peregrinação, também obterão a indulgência se unirem "as suas orações, dores ou incómodos a Cristo" e à viagem dos peregrinos. Para além disso, os fiéis podem aplicar a bênção recebida aos almas do Purgatório.

Como recorda a Conferência Episcopal, as condições para obter a indulgência são as seguintes

  • Participar no sacramento da confissão
  • Receber a Eucaristia
  • Rezar pelas intenções do Papa

Para facilitar a obtenção desta graça, a Penitenciária Apostólica pede aos sacerdotes que estejam disponíveis para que os peregrinos se possam confessar durante a peregrinação.

Mapa dos percursos da Peregrinação Eucarística Nacional (ilustração OSV News / cortesia Congresso Eucarístico Nacional)

Bênção Apostólica para o Congresso Eucarístico Nacional

Os participantes no Congresso Eucarístico Nacional poderão também receber a bênção papal e a indulgência plenária, que será dada pelo Arcebispo Broglio ou por outro bispo por ele designado. O dicastério vaticano pede aos que desejam receber a indulgência que, para além das condições habituais já mencionadas, "estejam verdadeiramente arrependidos e movidos pela caridade".

A Penitenciária também assinala no seu decreto para esta ocasião que "a indulgência plenária pode ser obtida pelos fiéis que, por circunstâncias razoáveis e com intenção piedosa, tenham participado nos ritos sagrados e recebido a bênção papal através dos meios de comunicação".

Mundo

A Turquia, um vizinho incómodo

Com este artigo, o historiador Gerardo Ferrara inicia uma série de três estudos em que nos dá a conhecer a cultura, a história e a religião da Turquia.

Gerardo Ferrara-12 de abril de 2024-Tempo de leitura: 7 acta

O processo de alargamento do União Europeia confrontou os seus membros fundadores com realidades, países e povos que até há pouco tempo eram considerados inimigos, "outros", exóticos, quase esquecidos.

Hoje, a Europa é obrigada a interrogar-se sobre a identidade das populações que pressionam as suas fronteiras e a compreender plenamente as realidades complexas que, se forem negligenciadas, podem transformar-se em conflitos sangrentos como os que assolaram o Velho Continente no século passado e que, durante séculos, inflamaram zonas vizinhas como os Balcãs, o Cáucaso e o Mediterrâneo oriental.

Uma dessas realidades é a Turquia, um país transcontinental (que atravessa a Europa e a Ásia) que sempre foi um ponto de encontro (e de confronto) entre o Oriente e o Ocidente.

Alguns dados

Com uma superfície de 783 356 km², a Turquia (oficialmente: República da Turquia) é um Estado que ocupa toda a península da Anatólia (com a parte oriental do país situada na Cilícia e na Plataforma Arábica) e uma pequena porção da Trácia na Europa (fronteira com a Grécia e a Bulgária). Faz fronteira com nada menos do que oito países diferentes (e poderíamos dizer mundos culturais diferentes, sendo eles a Grécia e a Bulgária, na Europa; a Geórgia, a Arménia e o Azerbaijão, no Cáucaso; o Irão, a leste; o Iraque e a Síria, portanto o mundo árabe, a sul). Tem quatro mares à sua frente: o Mediterrâneo, o Egeu, o Mar Negro e o Mar de Mármara, que divide a parte asiática da parte europeia. Tem uma população de mais de 85 milhões de habitantes, maioritariamente classificados como "turcos", mas com uma grande variedade de minorias étnicas e religiosas.

A Turquia é uma república presidencial desde 2017, oficialmente um Estado laico. O Islão é a religião predominante (99 % dos turcos consideram-se muçulmanos). Para além dos sunitas, que estão em maioria, existe também uma minoria significativa (pelo menos 10 %) de xiitas, principalmente na comunidade alevita. Existem ainda cerca de 120 000 cristãos (na sua maioria ortodoxos gregos, mas também arménios apostólicos) e uma pequena comunidade judaica, concentrada sobretudo em Istambul. As minorias cristã e judaica representam um legado microscópico de comunidades que foram outrora grandes e importantes até ao século XX.

Um pouco de história

Para começar, porque é que a Turquia tem este nome? De facto, até 1923, o que é hoje a República Turca fazia parte (na verdade, a parte principal) do Império Otomano. O termo "turco" é, de facto, um etnónimo (de "türk") para os habitantes da atual Turquia, mas também se refere aos povos turcos em geral (incluindo hunos, ávaros, búlgaros, etc.), aqueles que, vindos das estepes da Mongólia e da Ásia Central, colonizaram partes da Europa Oriental, do Médio Oriente e da Ásia durante milénios. Atualmente, fala-se também de "povos turcos", ou seja, aqueles (turcos, azeris, cazaques, turcomanos, uzbeques, tártaros, uigures, etc.) que falam línguas turcas, línguas estreitamente relacionadas que pertencem à família altaica.

O termo "turcos" foi utilizado pela primeira vez, não para designar os povos turcos em geral, mas os que ocupavam mais propriamente a Anatólia, a partir de 1071, na sequência da Batalha de Manzicerta, pela qual Bizâncio perdeu grande parte da Anatólia para os turcos seljúcidas, que já tinham começado a invadir e a ocupar as províncias desta região desde o século VI d.C.

Até então, mas também mais tarde, a Turquia atual não era um país "turco".

Se, de facto, as raízes da história da Anatólia remontam aos hititas (o povo de Língua indo-europeia cuja civilização floresceu entre os séculos XVIII e XII a.C. ), houve também outras culturas que encontraram na região um local ideal para florescer, os Urartianos (proto-arménios), os frígios, os lídios, os gálatas, sem esquecer os gregos e a sua fixação na Jónia (Anatólia ocidental, ao longo da costa do Egeu) em cidades por eles fundadas, como Éfeso). Não esqueçamos, portanto, que a Jónia foi também o local da antiga cidade de Troia, cuja ascensão e trágica destruição Homero narra.

Foi precisamente em relação à Anatólia que os gregos e os romanos utilizaram pela primeira vez o termo Ásia (e, de facto, parte da Anatólia formava a província romana da Ásia).

Após a fundação de Constantinopla pelo imperador romano Constantino no local da antiga Byzas (Bizâncio) e os esplendores do Império Romano do Oriente, também conhecido como Império Bizantino, a Anatólia, que já albergava uma população diversificada de cerca de 14 milhões de pessoas (incluindo gregos, romanos, arménios, assírios e outras populações cristãs), foi progressivamente invadida, sobretudo após a Batalha de Manzicerta (em que os turcos seljúcidas derrotaram os bizantinos), arménios, assírios e outras populações cristãs), foi progressivamente invadida, sobretudo após a Batalha de Manzicerta (em que os turcos seljúcidas derrotaram os bizantinos na sua fronteira oriental), por populações turcas que migravam da Ásia Central para a Europa e o Médio Oriente, uma migração que já tinha começado no século VI d.C. e que se considera ter começado no início do Médio Oriente no século VI d.C. d.C. e é considerada como estando no início do Império Bizantino. d.C. e é considerada uma das maiores da história.

Depois de Manzicerta, porém, Constantinopla (atualmente conhecida como Istambul) continuou a ser a capital do que restava do Império Bizantino até 1453, quando as tropas de outra tribo turca, os otomanos, lideradas pelo líder Maomé II, a sitiaram, derrotando o exército do imperador Constantino XI Paleólogo (que presumivelmente morreu durante o cerco), considerado santo e mártir pela Igreja Ortodoxa, bem como por algumas igrejas católicas de rito oriental, também pela sua tentativa de recompor o Grande Cisma) e estabeleceu o Império Otomano, fazendo da própria Constantinopla (que manteve este nome até à fundação da república turca) a sua capital.

Quanto ao topónimo Istambul, só foi oficialmente adotado por Atatürk em 1930, para libertar a cidade das suas raízes greco-romanas, que os sultões otomanos tinham evidentemente preservado muito melhor do que ele, empregando trabalhadores gregos e arménios para construir os monumentos mais famosos pelos quais ainda hoje é visitada, incluindo a Mesquita Azul e os famosos banhos, construídos pelo distinto arquiteto greco-arménio (e cristão) Sinan. Istambul, no entanto, também não é um topónimo de origem turca, mas vem de Stambùl, que por sua vez é uma contração da locução grega εἰς τὴν πόλιν (èis ten polin): "em direção à cidade". E por "polis" entende-se a cidade por excelência, com o mesmo significado que o termo latino Urbs referindo-se a Roma (Constantinopla é considerada pelos cristãos orientais como a nova Roma).

O Império Otomano atingiu o seu apogeu nos séculos XVI e XVII, abrangendo três continentes e dominando uma vasta área que incluía o sudeste da Europa, o Médio Oriente e o Norte de África, e era conhecido por ser extremamente diversificado em termos étnicos e religiosos. Embora o sultão fosse de etnia turca e islâmica, milhões dos seus súbditos não falavam turco como língua materna e eram cristãos ou judeus, sujeitos (até ao século XIX) a um regime especial de painço. De facto, o Estado foi fundado numa base religiosa e não étnica: o sultão era também o "príncipe dos crentes", ou seja, o califa dos muçulmanos de todas as etnias (árabes, turcos, curdos, etc.), que eram considerados cidadãos de primeira classe.Os cristãos das várias confissões (ortodoxos gregos, arménios, católicos e outros) e os judeus estavam sujeitos a um regime especial, o do "millet", que estabelecia que qualquer comunidade religiosa não muçulmana era reconhecida como uma "nação" dentro do império, mas com um estatuto de inferioridade jurídica (de acordo com o princípio islâmico da "dhimma"). Por conseguinte, os cristãos e os judeus não participavam oficialmente no governo do Estado, pagavam uma isenção do serviço militar sob a forma de um imposto eleitoral ("jizya") e de um imposto fundiário ("kharaj") e o chefe de cada comunidade era o seu líder religioso. Os bispos e os patriarcas eram, portanto, funcionários públicos imediatamente subordinados ao sultão.

No século XIX, o Império Otomano começou a declinar devido a derrotas militares, revoltas internas e pressões das potências europeias. De facto, as reformas conhecidas como "Tanzimat" (destinadas a "modernizar" o Estado também através de uma maior integração dos cidadãos não muçulmanos e não turcos, protegendo os seus direitos através da aplicação do princípio da igualdade perante a lei) datam deste período.

Os massacres também remontam a este período. hamidianasOs genocídios perpetrados contra a população arménia durante o reinado do sultão Abdül Hamid II, bem como, no início do século XX, os três grandes genocídios contra as três principais componentes cristãs do já moribundo Império: os Arméniosos gregos e os Assírios.

Durante o período de Hamid, ocorreu um golpe de Estado no Império Otomano em 1908, em que um movimento nacionalista, conhecido como os Jovens Turcos, tomou o poder e obrigou Abdül Hamid a restabelecer um sistema de governo multipartidário que modernizou o Estado e as forças armadas, tornando-os mais eficientes.

A ideologia dos Jovens Turcos inspirava-se nos nacionalismos europeus, mas também em doutrinas como o darwinismo social, o nacionalismo elitista e o pan-turanismo, que considerava erradamente a Anatólia oriental e a Cilícia como a pátria turca (referimos antes que os turcos são um povo de origem mongol e altaica).

De acordo com as suas visões, aspiravam a construir uma nação etnicamente pura e a livrar-se de elementos não turcos. Por conclusão lógica, um não-muçulmano não era um turco: para conseguir um Estado turco purificado de elementos perturbadores, era necessário eliminar os súbditos cristãos, ou seja, os gregos, os assírios e os arménios, estes últimos considerados tanto mais perigosos quanto, a partir da zona caucasiana do Império Russo, tinham sido formados batalhões de voluntários arménios no início da Primeira Guerra Mundial para apoiar o exército russo contra os turcos, nos quais participaram arménios deste lado da fronteira.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano aliou-se às Potências Centrais e sofreu uma pesada derrota, de tal forma que Mustafa Kemal Atatürk, um promissor herói militar, liderou uma guerra de independência turca contra as forças de ocupação estrangeiras e proclamou a República da Turquia em 1923, pondo fim ao domínio otomano.

Sob a liderança de Atatürk, a Turquia empreendeu uma série de reformas radicais para modernizar o país, incluindo a secularização, a democratização e a reforma do sistema jurídico (houve também uma reforma linguística da língua turca, expurgada de elementos estrangeiros e escrita em caracteres latinos em vez de árabes, e a capital foi transferida de Istambul para Ancara). Nos anos que se seguiram, a Turquia viu-se no centro de acontecimentos cruciais como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, bem como de mudanças políticas internas que assistiram à alternância de governos civis e militares (estes últimos considerados os guardiães da laicidade do Estado).

No século XXI, a Turquia tem continuado a desempenhar um papel importante na cena internacional, tanto política como economicamente, especialmente com a chegada de Recep Tayyip Erdoğan, presidente desde 2014, enquanto enfrenta desafios internos e externos contínuos, como tensões étnicas, questões de direitos humanos, o conflito curdo e questões geopolíticas na região do Médio Oriente.

O autorGerardo Ferrara

Escritor, historiador e especialista em história, política e cultura do Médio Oriente.

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Ecologia integral

Argüello defende a vida perante o apoio do Parlamento Europeu ao aborto

O presidente da Conferência Episcopal Espanhola, Monsenhor Luis Argüello, incentivou nas redes sociais a "lutar a favor da vida, a sua dignidade é infinita", tendo em conta a resolução do Parlamento Europeu que insta a incluir o direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A votação não é vinculativa, uma vez que é necessário o apoio dos 27 Estados-Membros.

Francisco Otamendi-11 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

O Parlamento Europeu aprovou a inclusão do aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia por 336 votos a favor, 163 contra e 39 abstenções. Uma votação simbólica, mas muito significativa, uma vez que a inclusão do aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia exigia o apoio de todos os 27 Estados-Membros da UE. O Parlamento Europeu avança agora com a resolução ao Conselho Europeu e à Comissão.

A iniciativa surge na sequência da Parlamento francêsNo início de março, o parlamento francês votou a favor da introdução do direito ao aborto como uma "liberdade garantida" na sua Constituição, com 780 deputados e senadores a votarem "sim" contra 72 "não", com o apoio explícito do Presidente da República, Emmanuel Macron, apesar de reconhecer que o seu país precisa urgentemente de aumentar a sua taxa de natalidade.

"Reconhecimento da decadência moral e democrática".

Um dos primeiros a criticar duramente a resolução do Parlamento Europeu nas redes sociais foi o arcebispo de Valladolid e presidente da Conferência Episcopal Espanhola, Monsenhor Luis Argüello, que considerou a decisão como "o reconhecimento da decadência moral".

"Para a Eurocamara, o aborto é um direito humano contra a vida humana que nasce. Quer defender a mulher em detrimento da vida que dá à luz. Pretende assegurar o progressismo face aos reaccionários, quando impede o progresso da vida. É o reconhecimento da decadência moral", escreveu Dom Argüello na rede X (antigo Twitter).

Na continuação da mensagem, o presidente da Conferência Episcopal Espanhola assegurou que "este excesso legislativo exprime a fraqueza ética daqueles que o defendem. Também vai contra a objeção de consciência e o direito de associação daqueles que têm uma posição diferente. "Lutemos a favor da vida, a sua dignidade é infinita". (as letras maiúsculas são do arcebispo).

O direito à vida é o pilar fundamental de todos os outros direitos, especialmente o direito à vida dos mais vulneráveis", afirmou Argüello há dois dias. Que bom que aqueles de nós que defenderam a dignidade dos migrantes, promovendo uma ILP (iniciativa legislativa popular), são agora contra a definição do aborto como um direito".

Bispos franceses

Também os bispos franceses se pronunciaram recentemente em defesa da vida. Na sequência da decisão do Parlamento francês, o Conselho Pontifício para a Defesa da Vida, o Academia para a Vida A Academia dos Bispos da Santa Sé emitiu uma declaração apoiando a posição da Conferência Episcopal Francesa (CEF) sobre a inclusão do aborto na Constituição francesa. A Academia considera que "a proteção da vida humana é o primeiro objetivo da humanidade" e apela a todos os governos e tradições religiosas para que se empenhem na proteção da vida.

Muito recentemente, o documento do Vaticano Dignidade infinita reiterou a condenação do aborto, recordando as palavras de São João Paulo II na "Evangelium Vitae", e sublinhando que "devemos afirmar com toda a força e clareza, também no nosso tempo, que esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de todos os direitos humanos".

"Isso envenenaria todos os direitos humanos".

Por outro lado, Rafael Domingo Oslé, professor da Universidade de Navarra (campus de Madrid), foi um dos especialistas que reagiu mais rapidamente à decisão do Parlamento Europeu e salientou que o direito ao aborto "envenenaria" todos os direitos humanos, como afirmou na rede X e na estação de rádio Cope. Na sua opinião, o aborto não vai ser incluído como um direito fundamental porque há países como Malta, Polónia, Hungria e Irlanda que vão dizer não a esse direito.

Na sua opinião, estamos perante "uma birra francesa que quer liderar a Europa e colocar-se ao mesmo nível que os Estados Unidos". É preciso dizer à França não ao direito ao aborto e sim ao dom da vida, que tem uma dimensão jurídica de direito", afirmou.

O autorFrancisco Otamendi

Cinema

O Milagre de Madre Teresa" chega às salas de cinema

Esta sexta-feira, 12 de abril, estreia em Espanha "O Milagre de Madre Teresa", uma história de ficção que entrelaça a vida da santa e a sua "noite escura" com a de uma jovem britânica de origem indiana. As receitas de bilheteira reverterão a favor da Fundação Zariya, que se ocupa dos pobres e dos doentes em diferentes cidades da Índia.

Loreto Rios-11 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

"O milagre de Madre Teresa"Madre Teresa e Eu", como o título original foi traduzido para espanhol, é um filme escrito e realizado pelo cineasta indiano Kamal Musale que será lançado nos cinemas espanhóis esta sexta-feira, 12 de abril, distribuído por Fábrica de Sonhos Europeus.

Este filme, estreado no Reino Unido em 2022, apresenta a figura da santa de uma forma diferente, através da ficção: Kavita, uma jovem britânica moderna de origem indiana, viaja para Calcutá fugindo de uma situação imprevista após sofrer um acidente de viação em Inglaterra. Na Índia, conhece a história de Madre Teresa de Calcutá através de Deepali, a sua antiga ama, que a leva a Nirmal Hriday, o lar para moribundos fundado pela santa. Ambas as histórias, com flashbacks para o passado que nos dão vislumbres da vida de Madre Teresa e da sua "noite escura", são entrelaçadas numa história ficcional, mas que ajuda o espetador do século XXI a familiarizar-se com a santa de Calcutá, ao mesmo tempo que levanta questões actuais como o aborto, a solidão na sociedade atual, o abandono, o amor pelos mais vulneráveis e a adoção.

Como salienta a distribuidora, uma das novidades do filme, que recebeu o Prémio de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema Católico "Mirabile Dictu" em 2022, é precisamente o seu género, uma vez que, "até agora, quase todas as produções audiovisuais dedicadas à Madre Teresa tinham um carácter documental. Quebrando esta tendência, 'O Milagre de Madre Teresa' é um filme de ficção, com um cenário de época".

Cartaz do filme "O Milagre de Madre Teresa".

Quanto ao elenco, os papéis principais do filme vão para Banita Sandhu, atriz britânica de origem punjabi ("outubro", 2018; "Beleza Eterna", 2019; "Sardar Udham Singh", 2021), como Kavita; Jacqueline Fritschi-Cornaz, atriz e produtora suíça com mais de trinta anos de carreira de atriz e uma das principais promotoras do filme depois de ter sido profundamente impactada pela sua primeira viagem à Índia em 2010, como Madre Teresa; e Deepti Naval, uma atriz indiano-americana de origem indiana com mais de 90 filmes no seu currículo (um deles, "A Way Home", de 2016, foi nomeado para vários Óscares e Globe Awards), como Deepali, a antiga ama de Kavita.

O realizador e argumentista Kamal Musale realizou mais de trinta filmes e ganhou vários prémios, como o prémio de Melhor Filme Indie nos European Cinematography Awards 2017 por "Bumbai Bird", bem como o de Melhor Argumento no Indian Cine Film Festival 2017 pelo mesmo filme, e o prémio pelo seu mais recente trabalho, Curry Western, no WorldFest-Houston International Film Festival, no Texas, entre outros.

Sobre "O Milagre de Madre Teresa", Kamal afirmou que "é sobre compaixão. [...] Uma pesquisa exaustiva permitiu-me explorar as complexidades da interioridade de Madre Teresa e aproximar-me dos seus tormentos interiores, dos sofrimentos de uma mulher que, a par de alegrias e tristezas, experimentou até um sentimento de fracasso naquilo que mais lhe importava: a sua fé em Deus. [...] Escolhi descobri-la através dos olhos de uma jovem moderna, vivendo na sociedade ocidental atual, que representa a busca vibrante do sentido da vida de uma geração como a atual. [...] Um dos objectivos deste filme é tocar o coração dos espectadores e inspirar as pessoas a amarem-se umas às outras, independentemente da sua origem ou religião".

Além disso, o realizador salientou alguns dos desafios da produção deste filme, como "recriar uma atmosfera autêntica da Calcutá dos anos 50", ou encontrar figurantes que parecessem ter fome, para o que foram escolhidos "agricultores magros de mais de 20 aldeias perto de Mumbai". Nirmal Hriday, a Casa dos Moribundos fundada por Santa Teresa de Calcutá, é uma réplica da casa original, que ainda está em funcionamento em Calcutá.

Além disso, é de salientar que todas as receitas de bilheteira de "O Milagre de Madre Teresa" serão doadas ao Fundação ZariyaO filme foi realizado em 2010, no 100.º aniversário do nascimento de Madre Teresa, e as receitas reverterão a favor da assistência aos pobres e doentes na Índia através das organizações Deepalaya, Genesis Foundation, Kalinga Institute of Social Sciences e Spread a Smile India.

Para mais informações sobre o filme, consultar esta página.

Trailer de "O Milagre de Madre Teresa".

O Deus cristão segundo Josep Vives Solé

Josep Vives Solé, S. J. (1928-2015), na sua obra Acreditar em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo (1983), oferece um simples trabalho de síntese sobre Deus.

11 de abril de 2024-Tempo de leitura: 4 acta

O sacerdote, teólogo e helenista espanhol Josep Vives Solé, S. J. (1928-2015), na sua obra "Crer em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo". (1983), oferece um simples trabalho de síntese sobre Deus, da filosofia ao Deus manifestado por Cristo à sua Igreja.

A partir da metafísica é possível falar de Deus: como o fundamento de todos os seres que não têm em si mesmos a sua razão total de ser; como a verdade incompreensível que sustenta as verdades que compreendemos; Aquele cuja existência afirmamos sem conhecer a Sua essência; Aquele que tudo explica, sem que Ele próprio tenha de ser explicado; Aquele que, não dependendo de nada, não pode ser demonstrado, provado ou conhecido a partir de nada; o Inidentificável, o Indenominável, o Indelimitável, o Indescritível; Aquele que não conhecemos como as coisas que conhecemos; o Mistério que afirmamos sem o conhecer; Aquele que tem a ver com a nossa realidade mas não pode ser adequadamente compreendido a partir da nossa realidade.

Mas Deus revelou-se através de Jesus Cristo à sua Igreja: Deus comunicou-se e entrou na história no final de uma linha contínua de comunicações aos homens:

"De uma forma fragmentária e de muitas maneiras, Deus falou no passado aos nossos Pais através dos Profetas; Nestes últimos tempos, falou-nos pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, por quem também fez os mundos, o qual, sendo o resplendor da sua glória e a marca da sua essência, e o sustentador de todas as coisas pela sua palavra poderosa, depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade nas alturas, com uma superioridade sobre os anjos tanto maior quanto os ultrapassa no nome que herdou" (Heb 1, 1-4).

Na história bíblica, condensada nesta passagem, Deus é antes de mais Aquele que age com a Sua palavra e que comunica na Sua ação.

No Novo Testamento, Jesus e o Espírito revelam o Pai; e o Pai comunica-se efetivamente no Filho e no Espírito. As missões históricas do Filho e do Espírito implicam as processões eternas do próprio Filho e do Espírito com o Pai: Deus não poderia exprimir-se na ordem temporal, enviando ao Pai o seu Filho e o Espírito, se não fosse, em si mesmo e na sua eternidade, Pai, Filho e Espírito.

O Filho do Pai eterno viveu e actuou no mundo e na história durante mais de trinta anos, depois de ter encarnado no seio de uma jovem virgem israelita.

Nós, que acreditamos, damos fé a homens que viveram com Ele e afirmaram, a partir de uma série de experiências - que culminaram com a Ressurreição de Jesus - que, no homem Jesus de Nazaré, o próprio Deus foi real e imediatamente comunicado. Acreditar na mensagem apostólica é acreditar que Jesus é a comunicação real e efectiva de Deus aos homens, que, em Jesus, Deus entrou e agiu na história, tornou-se visível (Imagem do Pai), revelou-se (Verbo ou Palavra de Deus), tornou-se corporal (Encarnação de Deus). Jesus Cristo não é apenas mais uma palavra sobre Deus ou de Deus, Ele é a Palavra definitiva de Deus.

A doutrina cristã da Trindade é a expressão da forma como Deus se manifestou e actuou entre nós.

A história é uma sucessão de acontecimentos relacionados entre si, interpretados e avaliados, em relação a um princípio de inteligibilidade e de sentido, por um sujeito capaz de apreender, interpretar e avaliar esses acontecimentos na sua sucessão. Esta definição pressupõe a existência de um sentido nos próprios acontecimentos. A história estuda esses acontecimentos e procura o seu sentido.

Tem-se dito por vezes que, se Deus é o Senhor da história humana, já não se pode falar de história: não haveria senão a história do Senhor da história, que a faz como lhe apetece. Mas não é assim; Deus não é o Senhor da história no sentido de que a manipula a seu bel-prazer. A conceção do mundo como um teatro de marionetas no qual Deus se diverte puxando os cordelinhos não é cristã, mas pagã.

Mas a comunicação de Deus pode ser rejeitada pelo homem; toda a Bíblia testemunha esta dinâmica de oferta e rejeição. A Palavra de Deus nunca é impositiva, mas interpelativa: interpela os homens e oferece-se a eles para dar sentido à história. Não se impõe como uma força, mas como um convite; e isto a tal ponto que, quando a mesma Palavra se torna presente aos homens em forma humana, eles podem até crucificá-la... A história é o tempo da resistência e da submissão do homem em relação a Deus. Quando terminar a possibilidade de resistência, terminará o tempo da história e começará o tempo do senhorio absoluto de Deus... Deus entrou na história através do seu Espírito, que é capaz de transformar o homem na sua liberdade, não a anulando, mas potenciando-a. Deus e o homem fazem a história... Deus e o homem fazem a história... Deus, sendo comunicação em si mesmo, sendo Pai, Filho e Espírito Santo, pode também ser comunicação fora de si mesmo como Pai, Filho e Espírito Santo. Nem o deus panteísta nem o deus deísta poderiam ter dado origem à história.

Para além dos escritos de vários santos sobre a existência e o ser de Deus, vale a pena refletir também sobre a santidade vivida pelos próprios santos, como testemunho ou sinal da existência e do ser de Deus.

A santidade atraiu uma forte atenção não só das pessoas que acreditam na existência de Deus, mas também de pensadores que se consideravam ateus.

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Evangelho

Testemunhas da ressurreição. 3º Domingo de Páscoa (B)

Joseph Evans comenta as leituras do III Domingo de Páscoa e Luis Herrera faz uma breve homilia em vídeo.

Joseph Evans-11 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

Os dois discípulos estão a contar aos apóstolos o que lhes aconteceu em Emaús e, de repente, Jesus aparece no meio deles. Ficam todos assustados e pensam que é um fantasma. Cristo tem de lhes mostrar as suas feridas. Ressuscitou com o mesmo corpo com que morreu, mas agora está glorioso. A ressurreição física de Cristo está no centro da nossa fé: não é uma metáfora.

Como disse São Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e também é vã a vossa fé.". Está na moda negar a verdadeira ressurreição de Cristo, afirmando que ele não ressuscitou literalmente dos mortos. Mas nós acreditamos que a Ressurreição de Cristo é real e corporal: Jesus pode comer e ser tocado, embora, sim, o seu corpo glorioso também tenha poderes espirituais, incluindo a capacidade de estar onde quer estar quando quer estar, de atravessar portas, de aparecer e desaparecer subitamente, e de se esconder ou revelar à vontade.

Jesus come na presença dos apóstolos e os seus receios e dúvidas transformam-se em alegria. Mais uma vez, remete-os para as Escrituras: "...".E disse-lhes: "Foi isto que vos disse quando estava convosco: que se cumpra tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos".. Depois abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras.". Podemos perguntar-nos: será que preciso de abrir o meu espírito? Todos nós gostamos de pensar que temos um espírito aberto. E, no entanto, quando se trata da Palavra de Deus, fechamo-nos muitas vezes.

Passamos do contacto com Cristo na sua palavra, na Escritura, para o contacto com Cristo no seu corpo, na Eucaristia. Ambos nos ajudam a ter um contacto real com Jesus ressuscitado, a vê-lo como algo mais do que um fantasma. Ele não é apenas uma recordação, é real, está vivo, triunfante hoje.

"Sois testemunhas disto". Somos nós que devemos levar a boa nova da morte salvadora e da Ressurreição gloriosa de Cristo aos nossos contemporâneos. Como Maria levou ardentemente a Palavra de Deus encarnada a Isabel e anunciou-a com tanto entusiasmo".A minha alma proclama a grandeza do Senhor, o meu espírito rejubila em Deus, meu Salvador."Poderíamos pedir-lhe que nos ajudasse a apanhar um pouco do seu fogo. E mais ainda quando agora tocamos e carregamos o corpo glorioso de Jesus que recebemos na Eucaristia.

Homilia sobre as leituras do 3º Domingo da Páscoa (B)

O sacerdote Luis Herrera Campo oferece a sua nanomiliaUma breve reflexão de um minuto para estas leituras dominicais.

Cultura

A nova capela da Universidade Francisco de Vitória, "coração do campus".

O Arcebispo de Madrid, Cardeal José Cobo, qualificou ontem a nova capela da Universidade Francisco de Vitoria como "o coração do campus", na sua consagração como espaço sagrado. E também "ginásio das virtudes cristãs", "lugar da Palavra de Deus", "lugar da Eucaristia", "do encontro", "para a implantação da caridade". A universidade vestiu-se a rigor para o seu 30º aniversário.    

Francisco Otamendi-10 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Havia um certo nervosismo prévio, o que é lógico, mas tudo correu bem, como salientou o Cardeal Cobo no final. Porque a Dedicação de um templo na Igreja, neste caso com o título de "Sede da Sabedoria" (Sedes Sapientiae), tem muitas rubricas, bênção da água, unção do altar e das paredes da igreja, etc., que o consagram como espaço sagrado.

A Universidade Francisco de Vitória (UFV), de inspiração católica, está a celebrar os 30 anos da sua fundação, e lá estava o reitor, Daniel Sada, a agradecer a todos os que encheram o templo no início da cerimónia, porque desde a bênção da sua primeira pedra, em setembro de 2022, a capela tem sido "mais do que um projeto de construção dentro do plano de desenvolvimento do nosso campus; uma manifestação do compromisso da UFV com o crescimento espiritual e a fé da sua comunidade universitária".

Espaço de coexistência

Um campus onde "convivem pessoas não só de diferentes grupos, movimentos ou associações da Igreja, mas também de outras crenças e religiões ou posições sobre o sentido da vida, todas elas bem-vindas", acrescentou o reitor.

A cerimónia, celebrada com uma dedicatória que reuniu mais de 500 pessoas e uma eucaristia, contou também com a presença do vigário Jesús González, Javier Cereceda, L.C., diretor territorial dos Legionários de Cristo em Espanha; Mario Palacios, arcipreste; Justo Gómez, L.C., capelão superior da UFV; e autoridades civis como a presidente da câmara de Pozuelo de Alarcón, Paloma Tejero, reitores de outras universidades, e empresários, amigos e colaboradores da universidade.

"Sinal da presença de Deus na Igreja".

A construção de uma capela, observou o Cardeal Cobo na sua homilia, depois de agradecer a "todos vós que, de uma forma ou de outra, estais envolvidos na celebração de hoje", "é construir um lugar aberto, um lugar da presença de Deus que convida todos", e acrescentou: "torna-se um sinal da presença de Deus na vida da Igreja. A sabedoria é um dom, é um dom que nos recorda que Deus está sempre onde se procura a verdade e onde se encontra a fé". 

O Cardeal recordou as palavras de São João Paulo II quando disse que "esta capela é um lugar do espírito, onde os crentes em Cristo, que participam de várias formas no estudo académico, podem parar para rezar e encontrar alimento e orientação. É um ginásio de virtudes cristãs, onde a vida recebida no batismo cresce e se desenvolve sistematicamente".

"É uma casa acolhedora e aberta a todos aqueles que, escutando a voz do Mestre, se tornam buscadores da verdade (como Nicodemos) e servem as pessoas através da sua dedicação diária a um conhecimento que não se limita a objectivos estreitos e pragmáticos". Em última análise, concluiu, "é este o mistério que esta casa abraça. Uma casa de encontro em que todos os que entram e a compõem colocam os seus dons ao serviço da realidade". "Um edifício em que todos estão ao serviço da caridade, do desdobramento da caridade". 

O projeto arquitetónico e artístico 

O projeto arquitetónico da nova capela é da autoria dos arquitectos Emilio Delgado, Felipe Samarán, professores da Licenciatura em Arquitetura na UFVe Antonio Álvarez Cienfuegos, e a Cabbsa foi responsável pela construção.

Os arquitectos Delgado e Samarán foram oradores, em maio do ano passado, numa Fórum Omnes sobre "A arquitetura sagrada no século XXI", na qual participaram também o professor emérito de projectos da Escola de Arquitetura de Madrid, Ignacio Vicens, e o pároco de Santa María de Caná (Pozuelo), Jesús Higueras.

Com capacidade para 500 pessoas, a estrutura da nova capela da UFV abriga não apenas um espaço de culto, mas também um centro de formação da fé. Sua forma elíptica, caracterizada por duas grandes cúpulas sustentadas por sete colunas, simboliza a união entre a perfeição do círculo e a direcionalidade espiritual, criando um espaço que convida à reflexão e ao encontro espiritual.

O piso subterrâneo destina-se a actividades como conferências e reuniões e reproduz a forma elíptica da igreja. A abside da capela é revestida a folha de ouro segundo um projeto do artista Alberto Guerrero Gil com a colaboração de estudantes e professores da Licenciatura em Artes Plásticas pela UFVjuntamente com o seu diretor, Pablo López Raso. O altar, o ambão e o assento são de mármore branco de Macael (Almeria). O sacrário está alojado na tenda dourada de Deus e tem duas faces, servindo a capela-mor e a capela do Santíssimo Sacramento.

Outros elementos

A capela conta ainda com uma Via Sacra interior em bronze e uma Virgem grávida, obra de Javier Viver, à espera da definitiva, que retoma a referida dedicação do templo "Sede da Sabedoria". Será uma Virgem a atender um menino Jesus que escreve num caderno ao colo, como primeiro formador.

Por baixo do altar encontra-se um relicário com as relíquias de São Pedro PovedaJosé Sánchez del Río, sacerdote e educador, fundador da Associação Teresiana; José Sánchez del Río, leigo que morreu aos 14 anos durante a Guerra de Cristero no México; e a Beata Maria Gabriela Hinojosa e 6 religiosas da Visitação, todas elas mártires.

O autorFrancisco Otamendi

Vaticano

A fortaleza faz de nós "marinheiros resilientes", encoraja o Santo Padre

O Papa encorajou a audiência de hoje a rezar pela virtude cardeal da fortaleza, para "sermos pessoas que não se assustam nem desanimam perante as provações e que tomam a sério os desafios do mundo, actuando com decisão contra o mal e a indiferença". O Presidente do Parlamento Europeu rezou também pelas vítimas das inundações no Cazaquistão e pela paz na Ucrânia, na Palestina, em Israel e em Myanmar.  

Francisco Otamendi-10 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

No Público em geral Esta quarta-feira, na Praça de S. Pedro, o Pontífice prosseguiu a sua série de catequeses sobre "os vícios e as virtudes", centrando a sua reflexão na virtude da fortaleza, com base na leitura do Salmo 31,2.4.25, depois de ter dedicado a quarta-feira passada à virtude da fortaleza. justiça

Na sua catequese nas diferentes línguas, o Papa encorajou "a treinarem-se na virtude da fortaleza para combaterem os vossos medos e encontrarem a coragem de manifestar a vossa fé com entusiasmo", como disse aos fiéis francófonos; ou a recordarem "a alegria de Cristo ressuscitado mesmo nos momentos difíceis", invocando "sobre vós e sobre as vossas famílias o amor misericordioso de Deus, nosso Pai" (peregrinos anglófonos).

Dirigindo-se aos participantes de língua espanhola, disse que "este tempo pascal aumente em nós os dons da graça, para que possamos compreender melhor a excelência do batismo e para que a eterna misericórdia do Senhor, que celebrámos no domingo passado, nos faça crescer mais na virtude da fortaleza e nas boas obras". 

Rezar pelo sofrimento do Cazaquistão e pela paz

A certa altura, durante a Audiência, o Pontífice quis "transmitir ao povo de Cazaquistão Convido-vos a rezar por todos aqueles que estão a sofrer os efeitos desta catástrofe natural. 

Em italiano, acrescentou no final, como faz em todos os seus discursos, que o seu pensamento "é dirigido aos mártires UcrâniaÀ Palestina, a Israel, que o Senhor nos dê a paz, rezemos ao Senhor pela paz. Há tanta gente a sofrer em lugares de guerra! A guerra está em todo o lado, não esqueçamos Myanmar.

"Capaz de superar o medo, até mesmo a morte".

"Na catequese de hoje, reflectimos sobre a virtude da fortaleza. É essa virtude que nos assegura um desejo firme e constante de procurar o bem. Para os antigos pensadores, não era possível imaginar um ser humano sem paixões, sem elas seríamos como pedras inertes. Todos nós temos paixões, mas elas devem ser educadas, canalizadas e purificadas na água do Batismo, com o fogo do Espírito Santo", começou o Santo Padre.

"Comecemos pela descrição dada no Catecismo da Igreja Católica: "A fortaleza é a virtude moral que, nas dificuldades, assegura a firmeza e a constância na busca do bem. Ela reafirma a decisão de resistir às tentações e de superar os obstáculos da vida moral. A virtude da fortaleza torna-nos capazes de vencer o medo, mesmo da morte, e de enfrentar as provações e perseguições". (n. 1808). Eis, portanto, a mais "combativa" das virtudes", sublinhou.

"A fortaleza ajuda-nos a enfrentar e a vencer os inimigos internos, como a ansiedade, a angústia, o medo, a culpa e muitas outras forças que se agitam dentro de nós e que tantas vezes nos paralisam. Ajuda-nos também a lutar contra os inimigos externos que surgem na nossa vida sob a forma de dificuldades de todo o género. 

E insistiu que "o cultivo desta virtude fará de nós pessoas que não têm medo nem desanimam perante as provações e que levam a sério os desafios do mundo, actuando com decisão contra o mal e a indiferença".

Face a um "Ocidente confortável", a "fortaleza de Jesus".

"No nosso Ocidente confortável, que "diluiu" um pouco tudo, que transformou o caminho da perfeição num simples desenvolvimento orgânico, que não precisa de lutar porque tudo lhe parece igual, sentimos por vezes uma nostalgia saudável dos profetas. Mas as pessoas incómodas e visionárias são muito raras". 

Precisamos de alguém que nos levante do "lugar macio" onde nos deitámos e que nos faça repetir o nosso "lugar macio" com determinação. "não" ao mal e tudo o que conduz à indiferença. Sim ao caminho que nos faz progredir na vida, para isso é necessário lutar. Reencontremos a força de Jesus no Evangelho e aprendamo-la com o testemunho dos santos", exortou o Papa.

O autorFrancisco Otamendi

Zoom

O vento sopra a calota craniana do Papa

A calota craniana do Papa Francisco é arrancada por uma rajada de vento durante a audiência de quarta-feira, 10 de abril de 2024, na Praça de São Pedro, no Vaticano.

Maria José Atienza-10 de abril de 2024-Tempo de leitura: < 1 minuto
Vaticano

Os ataques actuais à dignidade humana

Relatórios de Roma-10 de abril de 2024-Tempo de leitura: < 1 minuto
relatórios de roma88

A ideologia de género, a mudança de sexo, a guerra ou a maternidade de substituição são algumas das violações da dignidade humana que aponta. "Dignitas infinita".

"Dignitas infinita" é um esforço para reafirmar e sistematizar a posição do Vaticano sobre questões éticas actuais.


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Recursos

Três pontos para compreender a "Dignitas infinita".

Neste artigo, o padre e teólogo Ricardo Bazán analisa o tão esperado documento sobre a dignidade humana publicado esta semana pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, com temas como o aborto, a ideologia de género e a maternidade de substituição, entre outros.

Ricardo Bazán-10 de abril de 2024-Tempo de leitura: 5 acta

No passado dia 8 de abril, a declaração foi finalmente publicada. Dignidade infinita sobre a Dignidade Humana, do Dicastério para a Doutrina da Fé. 

É um documento há muito aguardado devido ao tema que aborda. Como salientou o Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, Cardeal Víctor Manuel Fernández, na apresentação do documento, foram necessários cinco anos para chegar ao produto final, algo que vale a pena destacar, uma vez que nos encontramos perante um documento maduro e de modo algum improvisado, mas que passou por várias versões e sob a supervisão de muitos especialistas daquele Dicastério. 

Neste sentido, a declaração apresenta uma primeira parte (os três primeiros capítulos) que procura lançar as bases da dignidade humana, apoiando-se no magistério de São João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Este último deu importantes contributos no quarto capítulo, onde é apresentada uma lista de graves violações da dignidade humana.

A origem da Dignidade infinita

O nome Dignidade infinitaA expressão "dignidade infinita" vem de uma citação de São João Paulo II por ocasião do Angelus com as pessoas com deficiência, para salientar que esta dignidade pode ser entendida como infinita, ou seja, que "ultrapassa todas as aparências externas ou características da vida concreta das pessoas". (Dignitas infinita, Apresentação). 

Isto permite-nos abordar um tema que é o fio condutor da declaração, a base de tudo o resto, e que é o facto de o homem possuir uma dignidade infinita que se baseia no seu próprio ser e não nas circunstâncias. 

Este aspeto é tanto mais importante para refletir nestes tempos em que a dignidade e tantas questões morais dependem de critérios totalmente arbitrários. É por isso que este documento é importante, não porque seja necessariamente inovador em termos da teoria da dignidade humana, mas porque ousa ir contra a corrente, fiel à missão da Igreja, que S. João Paulo II assinalou em Esplendor de Veritariscomo a diaconia da verdade.

Dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial

Outro ponto a salientar é a distinção que faz entre dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial. 

O primeiro é o conceito que o documento aprofunda e que consiste na dignidade que todos temos pelo simples facto de sermos pessoas, e que assenta em dois pontosexistir e ter sido desejado, criado e amado por Deus". (Dignitas infinita, n. 7). Lembra-te de que esta dignidade nunca se perde, não pode ser descartada e não depende de modo algum das circunstâncias, o que é demasiado frequente nos tempos que correm. 

O segundo significado, dignidade moralestá relacionada com a liberdade, ou seja, quando uma pessoa age contra a sua consciência, estaria a agir contra a sua própria dignidade. Trata-se de uma distinção muito útil, uma vez que a liberdade tende a ser concebida como uma mera capacidade de escolher entre uma opção ou outra, mas não é vista como uma capacidade que permite à pessoa crescer e aperfeiçoar-se precisamente quando é exercida e actuada corretamente, e muito menos quando a moralidade dos actos é entendida como dependendo do facto de ter efeitos sobre os outros ou de a pessoa sentir que fez algo de errado ou não.

Por outro lado, o dignidade social centra-se nos condicionalismos sociais em que as pessoas vivem. Estas condições podem ficar aquém do que a dignidade ontológica exige. Como não pensar em pessoas que se encontram em estado de pobreza extrema, que não têm acesso a água ou esgotos, crianças que sofrem de subnutrição, anemia e que nem sequer têm acesso aos serviços de saúde mais básicos. Por último, a dignidade existencial incide sobre as circunstâncias que não permitem à pessoa viver uma vida digna, não tanto na esfera material ou externa que contradizem a dignidade ontológica, mas que são condicionantes internas ou existenciais, como a doença, contextos familiares violentos, etc.

O Dicastério insiste numa distinção muito subtil mas potencialmente perigosa, preferindo utilizar o termo dignidade pessoal em vez de dignidade humana, uma vez que a pessoa é entendida como o sujeito capaz de raciocinar, pelo que se estivermos perante um sujeito que não possua essa capacidade, ou pelo menos não em pleno, então não será digno do reconhecimento da dignidade, por exemplo, um feto ou uma pessoa com uma doença ou deficiência mental. 

O texto, para além de todos os fundamentos que apresenta, considera que a dignidade humana está muito acima do que poderíamos pensar graças a três convicções: todos somos criados à imagem de Deus, Cristo elevou essa dignidade e a vocação à plenitude que temos, de sermos chamados à comunhão com Deus, algo que não se pode dizer de nenhuma outra criatura. 

Assim, entendemos que a Igreja deve ser a primeira a respeitar a dignidade humana, a promovê-la e a desempenhar o papel de garante da dignidade de todas as pessoas, sem exceção.

Violações da dignidade

Na apresentação do documento, o Cardeal Fernández conta como o projeto de texto foi enviado com o seguinte esclarecimento: "Esta nova redação tornou-se necessária para responder a um pedido específico do Santo Padre. O Santo Padre tinha pedido explicitamente que se prestasse maior atenção às graves violações da dignidade humana que se verificam atualmente no nosso tempo, na linha da encíclica Fratelli tutti. A Secção Doutrinal tomou, portanto, medidas para reduzir a parte inicial [...] e para elaborar mais pormenorizadamente o que o Santo Padre tinha indicado". (Dignitas infinita, Apresentação). 

Assim, o quarto capítulo oferece-nos uma lista, que não é exaustiva nem fechada, das graves violações que podemos encontrar no nosso tempo, muitas delas já conhecidas e sobre as quais o Magistério já se pronunciou, por exemplo, São João Paulo II em Evangelium vitaeEnquanto outras são violações mais presentes na sociedade contemporânea e que estão a ser gradualmente normalizadas ou são pouco faladas. 

Antes da publicação da tão esperada declaração, havia dúvidas sobre se ela abordaria a ideologia de género, uma vez que o Papa Francisco tinha declarado recentemente que "O perigo mais feio é a ideologia de género, que anula as diferenças". (Audiência do Papa Francisco com os participantes da conferência "Homem-Mulher Imagem de Deus. Por uma antropologia das vocações"). De facto, o texto aponta a teoria do género como uma das graves violações porque A "pretensão de negar a maior diferença possível entre os seres vivos: a diferença sexual. Esta diferença constitutiva não é apenas a maior que se pode imaginar, mas também a mais bela e a mais poderosa: ela realiza, no casal homem-mulher, a mais admirável reciprocidade e é, portanto, a fonte desse milagre que não pára de nos surpreender, que é a chegada de novos seres humanos ao mundo". (Dignitas infinita, n. 58).

Dignidade infinita é um contributo da Igreja para essa luta que, como sublinha o Papa Francisco, nunca acaba e nunca deve acabar (cf. Dignitas infinita, n. 63) quando se trata de direitos humanos e de dignidade humana, ao mesmo tempo que nos adverte contra a tentação de eliminar a dignidade humana como fundamento dos direitos humanos, para que estes sejam deixados ao sabor das ideologias e dos interesses dos mais fortes. 

A clareza do documento é apreciada na medida em que se refere às bases da dignidade humana, bem como às graves violações que podem ocorrer e, infelizmente, sempre ocorrerão, razão pela qual não é possível fazer uma lista exaustiva de todas as violações ou oferecer soluções para cada caso: "O respeito pela dignidade de cada pessoa é a base indispensável para a própria existência de qualquer sociedade que se pretenda fundada no direito justo e não na força do poder. É com base no reconhecimento da dignidade humana que são defendidos os direitos humanos fundamentais, que precedem e sustentam toda a convivência civilizada". (Dignitas infinita, n. 64).

Evangelização

Nicolas Torcheboeuf: "CatéGPT não se substitui à Igreja; quer ajudá-la na sua missão".

Nicolas Torcheboeuf, engenheiro e católico, é o criador de CatéGTPA chatbox está documentada principalmente no Catecismo da Igreja Católica, no Código de Direito Canónico, nos principais Concílios e nos ensinamentos dos Papas.

Hernan Sergio Mora-10 de abril de 2024-Tempo de leitura: 7 acta

Em que encíclica se fala de contraceção? Onde é que aparece a frase "ao pó voltarás"? Onde é que no Evangelho se fala dos puros de coração? Encontrar as respostas a estas perguntas tornou-se mais fácil, graças às ferramentas oferecidas pela inteligência artificial (IA) que pesquisam os textos do Magistério da Igreja, as Sagradas Escrituras ou os Doutores da Igreja para a questão colocada. Este é o objetivo do CatéGPT (caté para catecismo) que se baseia nos documentos oficiais disponíveis no sítio Web do Vaticano.

Nicolas Torcheboeuf, engenheiro e católico, é o criador de CatéGPTEste chatbot, que utiliza as ferramentas disponibilizadas pela OpenAI, a empresa que está na origem do ChatGPT para encontrar estas respostas. CatéGPT é aberto e não exige uma subscrição para o utilizar, embora ofereça a possibilidade de fazer pequenos donativos para permitir o seu crescimento.

Nesta entrevista à Omnes, Torcheboeuf explica como se envolveu no projeto. CatéGPT e a sua visão das possibilidades da Inteligência Artificial na missão pastoral da Igreja e na formação dos católicos e dos interessados. 

Quem é Nicolas Torcheboeuf e qual é o seu perfil profissional e religioso?

Permitam-me que me apresente brevemente: sou católico praticante e engenheiro. Não trabalho diretamente no domínio da inteligência artificial, mas interesso-me pelo assunto e, após o sucesso de ChatGPTComecei a desenvolver pequenas ferramentas utilizando esta tecnologia.

O que levou ao desenvolvimento do CatéGPT?

-Foram duas as principais motivações que me levaram a desenvolver CatéGPT. Em primeiro lugar, eu já estava a explorar há alguns meses as possibilidades oferecidas pelas ferramentas disponibilizadas pela OpenAIa empresa que está na origem do ChatGPT.

De um ponto de vista técnico, a forma mais simples de criar um chatbot de alto desempenho é utilizar dados que não precisem de ser actualizados regularmente, para garantir a fiabilidade das respostas. Foi assim que tivemos a ideia de desenvolver uma ferramenta de IA que funcionasse com os textos fundamentais da Igreja Católica: estes textos são públicos e a sua substância muda muito pouco ao longo do tempo. Estas duas condições permitiram desenvolver uma ferramenta fiável e estável.

A segunda motivação vem da minha experiência, como católico, de que os crentes de hoje têm um nível muito baixo de cultura religiosa e de formação doutrinal. Há vários anos que tento ajudar as pessoas a redescobrir o incrível número de documentos e textos que a Igreja produziu ao longo dos séculos e que, infelizmente, são demasiado pouco conhecidos.

Estou convencido de que os nossos contemporâneos poderiam encontrar muitos esclarecimentos para as questões que se colocam, reencontrando o ensinamento secular da Igreja. Para fazer uma boa pastoral, a Igreja não deve descurar a formação doutrinal, sob pena de correr necessariamente riscos que a podem afastar da coerência do seu ensinamento.

Na minha opinião, a Inteligência Artificial é uma oportunidade para pôr em prática parte desta síntese entre o papel pastoral da Igreja e a sua missão doutrinal.

Quantas pessoas estão a trabalhar nele?

-Principalmente eu próprio, durante o meu tempo livre. Por vezes, amigos e familiares dão-me uma ajuda no desenvolvimento da ferramenta.

No futuro, gostaria de alargar CatéGPT para a tornar mais profissional e para tentar integrá-la mais profundamente no coração da missão evangelizadora da Igreja.

O que distingue o CatéGPT de outros chatbots católicos, como o Catholic.chat ou o Magisterium AI?

-A ideia subjacente CatéGPT é completamente original, no sentido em que nenhuma destas ferramentas existia quando comecei a desenvolvê-lo. CatéGPT começou a ser publicada em maio de 2023, numa versão ainda bastante simples, e só em julho é que a Católico.chat Magistério AI.

Se compararmos CatéGPT com outros chatbots católicos, penso que se aproxima mais de Magistério AIconcentrando-se principalmente em respostas que incorporam o ensino do Magistério tão completamente quanto possível, e fazendo um esforço especial para identificar as fontes das quais as respostas são extraídas.

chatbot como Católico.chat apenas reproduz a posição da Igreja no catecismo. Por outro lado, quando descobri Magistério AI Fiquei impressionado com a sua semelhança com CatéGPT no seu modo de funcionamento. Creio que isto se deve ao facto de as duas ferramentas partilharem a mesma motivação: ajudar as pessoas a redescobrir os textos fundamentais do Magistério da Igreja Católica, fornecendo respostas completas e convidando o utilizador a aprofundar a resposta lendo os próprios textos graças a uma resposta documentada.

Uma das particularidades do CatéGPT (que mais tarde foi retomado por Magistério AI) foi a introdução de dois tipos de resposta: um modo "Ensino", que oferece uma resposta muito estruturada (uma resposta extraída da Escritura, dos Padres da Igreja, do Magistério e dos Papas) e um modo "Discussão", que se assemelha mais a um chatbot e que permite aos utilizadores aprofundar a questão, discutindo a resposta com a inteligência artificial.

Quais são as suas principais fontes documentais?

-Por enquanto, por uma questão de simplicidade, a principal fonte de documentação do CatéGPT é o conteúdo disponível no sítio Web do Vaticano. Trata-se principalmente do Catecismo da Igreja Católica, do Código de Direito Canónico, dos principais Concílios e dos ensinamentos dos Papas. 

Para ser mais eficaz, CatéGPT Teria de integrar muitos outros textos: todos os Concílios e os textos dos Padres da Igreja, para começar. Mas isso exigiria muito trabalho na base de dados. Como estou praticamente sozinho a trabalhar neste projeto, esta parte da documentação fará parte de um desenvolvimento futuro.

Como é que um projeto como o CatéGPT é financiado e mantido?

-A particularidade de CatéGPT é o facto de ser totalmente gratuito para os utilizadores. Uma vez que o seu principal objetivo é ajudar as pessoas a redescobrir o ensino da Igreja o mais amplamente possível, seria contraproducente criar um sistema de subscrição.

Por exemplo, se fosse cobrada uma taxa, CatéGPT só atrairia pessoas que já estão convencidas. Magistério AIA Comissão Europeia, por exemplo, optou por colocar cada vez mais restrições para incentivar os utilizadores a subscreverem. Não me parece que esta seja uma boa estratégia para levar a cabo a missão da CatéGPT.

Embora o sítio seja gratuito, há um custo significativo envolvido. É por isso que estamos a apelar a que as pessoas façam donativos para CatéGPT. Graças à generosidade dos doadores, estas contribuições permitem financiar o sítio, sem obter lucros. Enquanto conseguirmos manter esta situação, penso que CatéGPT será viável e poderá prosseguir o seu desenvolvimento.

Na sua opinião, quais são as lacunas na formação dos católicos?

-O meu povo morre por falta de conhecimento" (Oséias 4,6). A observação do profeta Oséias é cruelmente observada hoje. A este respeito, penso que o pontificado de Bento XVI foi uma oportunidade maravilhosa para esta geração, que teve a oportunidade de o encontrar nas Jornadas Mundiais da Juventude em Madrid ou na esplanada dos Inválidos.

Em comparação com o longo pontificado de João Paulo II, poder-se-ia pensar que estes 7 anos foram um período de transição para a Igreja. Pelo contrário, a eleição do Cardeal Ratzinger para o trono de S. Pedro foi providencial para a Igreja.

Precisávamos dessas palavras fortes contra a confusão e o relativismo, proferidas com tanta delicadeza da vossa parte. Hoje em dia, temos de continuar esta herança, e é por isso que o CatéGPTPalavras do Papa aos jovens: "Mas como podes amar alguém que não conheces?" (Génova, 18 de maio de 2008).

Nos últimos anos, tem-se dado muita importância à evangelização. Mas como realizar esta missão vital para a Igreja se nós, leigos, não somos capazes de dar um testemunho claro daquilo em que acreditamos? Redescubramos, então, toda a riqueza da Igreja que se encontra nos seus textos, nos escritos dos seus santos e doutores.

Releiamos as Escrituras à luz do Magistério. E quando nos tivermos reapropriado destes textos, teremos fortalecido a nossa Fé e poderemos contar com o Espírito Santo para realizar plenamente a nossa obra de evangelização. Creio que hoje é vital não perder esta etapa de formação, que é muitas vezes negligenciada.

Que influência terá a IA na formação dos católicos?

-Gosto de dizer que a Inteligência Artificial é inteligente na medida em que não substitui a inteligência humana. É um instrumento e deve continuar a sê-lo. 

Se os católicos não se dão ao trabalho de abrir o Catecismo ou não têm o hábito de mergulhar nas Sagradas Escrituras, todos nós podemos fazer o mesmo. CatéGPT Podemos querer, mas a IA não terá qualquer influência na formação dos católicos.

A única coisa que a IA pode fazer - e foi isso que tentámos fazer com CatéGPT - é responder às perguntas dos utilizadores da forma mais exacta e direta possível, tendo o cuidado de fornecer todas as referências em que se baseiam as respostas.

Desta forma, os utilizadores aperceber-se-ão de que as respostas às suas perguntas se encontram, em grande parte, nos numerosos textos da Igreja e, a pouco e pouco, quererão consultar as fontes que a IA lhes envia.

Voltar a Católico.chatPenso que a sua diferença fundamental em relação a CatéGPT (o Magistério AI) é que não se concentra nestes textos do Magistério e contenta-se em responder a perguntas. Na minha opinião, um instrumento deste género não é adequado.

O objetivo da inteligência artificial não deve ser o de assumir prematuramente o trabalho intelectual do seu utilizador; aí reside o perigo da IA. Pelo contrário, se explorarmos todo o poder da IA com as suas grandes capacidades geradoras, estou convencido de que poderemos voltar a colocar a tónica na educação dos católicos. Mas os católicos devem estar conscientes das suas deficiências e sentir a necessidade de se educarem a si próprios.

Poderá a fé católica, na sua expressão e difusão, sentir-se ameaçada pela IA? Sabemos que o papel da família, dos catequistas e dos padres é fundamental no ensino da fé católica. Qual será o seu papel num futuro em que a interação pessoal diminuirá e em que estaremos mais interessados naquilo que podemos encontrar de forma independente na Internet?

-Na minha opinião, CatéGPT Responde em primeiro lugar a uma necessidade de formação dos católicos e não substitui de modo algum ninguém na Igreja, mas procura antes ajudá-la na sua missão.

Nunca poderemos dar a uma Inteligência Artificial sabedoria suficiente para desempenhar um papel pastoral na Igreja. 

Imagino que nenhuma IA, por mais poderosa que fosse, seria capaz de perceber, como fez Salomão, os sentimentos da mãe do bebé que ele devia detetar entre as duas mulheres que lhe eram apresentadas. 

A IA pode ser útil para reafirmar a nossa fé num mundo cada vez mais relativista e cego pelo sentimentalismo. Mas nunca será suficiente para proporcionar todas as condições para que floresça uma verdadeira vida de fé. Espero apenas que possa ajudar a lançar uma base sólida sobre a qual os vários actores da Igreja possam construir.

Por outro lado, a Igreja nunca poderá prescindir do seu papel pastoral, principalmente através dos seus sacerdotes, e nenhuma inteligência artificial será capaz de responder às necessidades espirituais de cada pessoa. A graça continuará sempre a passar através dos sinais sensíveis que são os sacramentos. As pessoas podem descobrir a fé católica por si próprias, talvez através de CatéGPTMas tudo isto não dará frutos se esta fé não florescer na sua família ou na sua comunidade e se não aprofundarem a sua busca da verdade com os pastores da Igreja.

Temos de ver estas ferramentas de inteligência artificial como novos meios de evangelização e formação, mas, devido à sua natureza virtual, só podem dar frutos se a sua utilização for seguida de uma interação pessoal (a começar pela vida sacramental). Hoje, na minha opinião, CatéGPT faz parte do mesmo movimento que o desenvolvimento da presença de padres ou religiosos nas redes sociais. Tal como acontece com a IA, a emergência de Influenciadores Os católicos podem ser perigosos. Mas se estiverem especialmente atentos e justificarem a sua presença nas redes sociais por uma forte preocupação com a evangelização, podem muito bem usar a IA como gancho para envolver novas pessoas em busca da verdade e fazer a transição do mundo virtual da IA e das redes sociais para o mundo concreto da Igreja expressa através dos seus sacerdotes e comunidades.

Se pensarmos em transportar CatéGPT A um nível mais elevado, seria necessário chegar a estes sacerdotes influentes e trabalhar em conjunto para responder às necessidades tanto de formação doutrinal como de acompanhamento espiritual e pastoral. Portanto, sim, a IA pode ser uma pequena revolução para a Igreja, mas só contribuirá para reforçar a forma como a fé católica é atualmente expressa e difundida.

O autorHernan Sergio Mora

Iniciativas

Orações pelos inimigos. A Ucrânia e a Terra Santa

Em contextos de guerra e violência, uma das frases de Jesus Cristo no Sermão da Montanha ressoa de forma particularmente forte: "Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem". (Mt 5,44). Hoje, em diferentes partes do mundo, há cristãos que procuram viver este mandamento.

Loreto Rios-10 de abril de 2024-Tempo de leitura: 4 acta

Devido aos diversos confrontos bélicos que estão a ocorrer atualmente em diferentes partes do planeta, o Papa Francisco afirmou em várias ocasiões que estamos a viver um período de "A Terceira Guerra Mundial em pedaços". Em 24 de fevereiro, a guerra na Ucrânia completou dois anos, enquanto em 7 de outubro de 2023 eclodiu outro conflito na Terra Santa, entre Israel e a Palestina, que parece ser apenas o início de outra longa guerra.

Amar os inimigos

Como podem atuar os cristãos que se encontram em tais situações? O Padre Mateusz Adamski, sacerdote polaco, é atualmente pároco da paróquia da Assunção da Virgem Maria em Kiev (Ucrânia) e vice-reitor do seminário da Assunção da Virgem Maria em Kiev (Ucrânia) e vice-reitor do seminário da Assunção da Virgem Maria em Kiev (Ucrânia). Redemptoris MaterO Presidente do Parlamento Europeu afirma claramente que estes últimos dois anos, embora cheios de sofrimento, foram também "... um período de grande esperança para o futuro".um tempo de graça"em que"pudemos tocar verdadeiramente o Deus vivo".

Apesar do receio de que "as pessoas estão psicologicamente cansadas"e que"há vários paroquianos que estão no exército"A paróquia da Assunção, em Kiev, tomou uma iniciativa importante: rezar em comunidade pelos inimigos. Porque num contexto de guerra, como comenta o Padre Mateusz, "convida a refletir sobre o mandamento de amar o inimigo"e este "manifesta-se especialmente nas orações comuns com o povo de Deus pelos nossos inimigos".

O Padre Mateusz explica: "o mandamento do Sermão da Montanha"fez com que os paroquianos experimentassem uma purificação".no seu caminho de fé, mesmo que isso signifique ir contra si próprios."e este "fortalece-os na sua fé através da oração comum".

Imitar o perdão de Cristo

O mesmo indica para Omnes, o pai Pedro ZafraÉ o vigário paroquial da mesma paróquia em Kiev, que está na Ucrânia há mais de dez anos. Este padre de Córdova explica que "aA oração contínua pelos inimigos da nossa comunidade paroquial está na ordem do dia."e salienta, em particular, que, diariamente, ".em cada Eucaristia, especialmente na oração dos fiéis, rezamos por todos aqueles que perderam a vida neste conflito, pelos combatentes, pela paz na Ucrânia, pela paz no mundo.". Sublinha que a comunidade está a rezar para que ".o Senhor mude o coração dos nossos inimigos e, antes de mais, mude também o nosso coração". 

Além disso, todos os domingos realizam uma adoração ao Santíssimo Sacramento na qual rezam pela paz, enquanto todas as sextas-feiras, durante a Via Sacra, louvam os seus perseguidores. "Pedimos ao Senhor que nos ajude a entrar neste sofrimento, nesta cruz. Como Ele próprio, enquanto éramos seus inimigos, intercedeu por nós junto do Pai, dizendo: "Perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem", assim devemos nós fazer. Esta é a missão de cada cristão e é também a nossa missão, e vemos que é algo fundamental, sobretudo para dar sentido ao sofrimento, porque muitas vezes concentramo-nos mais naquilo que é a justiça humana. Mas a justiça de Jesus Cristo é aquela que reza pelos inimigos, aquela que é capaz de responder ao mal com o bem, de responder ao mal com a oração."diz ele.

Como exemplo de perdão, o Padre Pedro Zafra dá o exemplo de um testemunho próximo, quando um casal de idosos, com seis filhos, perdeu um deles que estava a combater na frente. "No funeral, tanto os seus pais como os seus irmãos disseram publicamente: "Perdoamos os nossos inimigos, perdoamos aqueles que mataram o nosso filho e o nosso irmão". É também um testemunho de como o Senhor actua no coração de cada pessoa, que, apesar do ódio que está na ordem do dia, há também estes milagres, em que experimentamos que Deus é bom e que Deus está presente e não nos deixa sozinhos, mas manifesta a sua presença e o seu amor através desta situação difícil em que nos sentimos apoiados, nos sentimos confortados por Jesus Cristo. Além disso, através dos sacramentos, da Eucaristia e da Confissão, podemos aceder a este perdão, podemos ver como o Senhor muda também o nosso coração.".

Também na Rússia foram promovidas propostas de oração pela paz. Em maio de 2022, realizou-se em Moscovo uma oração comunitária do Rosário pela paz, em ligação direta com o Papa Francisco do Vaticano. Na capital russa, a cerimónia foi presidida por Monsenhor Paolo Pezzi, Arcebispo Metropolitano da Mãe de Deus em Moscovo desde 2007, e contou com a presença de mais de uma centena de pessoas.

"Devemos também rezar pelos culpados".

As orações pela paz não se limitam à guerra na Ucrânia. Frei Manuel pertence à Custódia da Terra Santa, a ordem, fundada por São Francisco de Assis, que foi encarregada pela Santa Sé de guardar os lugares que testemunharam a Encarnação de Cristo, e explica que "... a Custódia da Terra Santa é um lugar de paz e de paz no mundo.No meu santuário de Betfagé, que tem um bairro cristão construído pela Custódia, e que se encontra numa zona árabe bastante radical, às terças, quintas e sábados encontramo-nos para rezar o terço pela paz. É comovente ver cristãos, na sua maioria palestinianos, que se reúnem convencidos de que a paz é possível se soubermos permanecer unidos no Deus da paz e que Maria, Rainha da Paz, é a nossa força.".

Além disso, foram organizadas várias jornadas de oração pela paz e pelos inimigos na Terra Santa. 

Nos primeiros dias do conflito, a 17 de outubro de 2023, os monges beneditinos residentes no Monte Sião organizaram uma jornada de oração na Basílica da Dormição, com o lema A Igreja sob a cruz. A basílica esteve aberta durante vinte e quatro horas, a partir da meia-noite de 17 de outubro. Durante o dia, foi celebrada uma Eucaristia às 7h30 e foram lidos todos os salmos da Bíblia (150 no total), enquanto os jovens rezavam uma oração inspirada nas orações de Taizé.

Nesta iniciativa, não faltou a oração pelos inimigos, uma vez que, disse o abade beneditino, Padre Nikodemus Schnabel, "Acreditamos que cada ser humano é criado à imagem de Deus. Mesmo um assassino, mesmo uma pessoa que tenha pecados terríveis, continua a ser um ser humano, uma pessoa criada à imagem de Deus. Todos nós rezamos pelas vítimas, mas também devemos rezar pelos culpados! Rezemos pelas pessoas que cometeram crimes indescritíveis, que mataram, para que se apercebam do que fizeram, se arrependam e peçam perdão, e possam encontrar a misericórdia de Deus.". 

Cultura

A linguagem "inclusiva" começa a regredir na Alemanha

Depois de anos a tentar inocular essa linguagem através das escolas, dos meios de comunicação social e das administrações públicas, algumas delas começaram recentemente a recuar.

José M. García Pelegrín-9 de abril de 2024-Tempo de leitura: 4 acta

Em 1 de abril, entrou em vigor na Baviera uma proibição da utilização da chamada linguagem inclusiva, tanto no ensino (escolas e universidades) como na administração pública.

Em meados de março, o governo regional aprovou uma extensão do regulamento que, mesmo antes disso, obrigava os organismos oficiais - incluindo as escolas públicas, que constituem a grande maioria - a utilizar as regras ortográficas oficiais alemãs, que não prevêem uma linguagem tão inclusiva.

Agora, esta nova regra vai um pouco mais longe, proibindo expressamente diferentes formas de expressar essa "inclusão" ou "neutralidade".

Para compreender o âmbito de aplicação deste regulamento, é importante esclarecer que, na Alemanha, a competência para a utilização da língua nos organismos públicos é atribuída ao Länder (Estados Federados) e não ao Pacote (governo central, o que em Espanha se chamaria o Estado).

Conselho Ortográfico Alemão

Em segundo lugar, não existe uma "Academia da Língua Alemã" no mundo germanófono. Existe um "Conselho Ortográfico Alemão" que se define como "um organismo intergovernamental responsável pela manutenção da uniformidade da ortografia no mundo germanófono e pelo seu desenvolvimento, se necessário, com base em regras ortográficas".

São 41 membros de sete países ou regiões (Alemanha, Áustria, Suíça, Liechtenstein, Província Autónoma de Bolzano-Alto Adige e Comunidade Germanófona da Bélgica). O Luxemburgo é membro com direito a voz mas sem voto. Em meados de dezembro de 2023, o Conselho decidiu novamente contra a inclusão de "caracteres especiais" nas regras de ortografia da língua alemã. 

Por outro lado, a linguagem "inclusiva" começou a exprimir-se com a divisão dos sexos ("Zuschauerinnen und Zuschauer": "espectadores"); mas por razões de economia linguística - na brochura oficial de um organismo público chegou-se a dizer que, nos campos de concentração, "os nacionais-socialistas torturavam mulheres e homens judeus" - procuraram-se outras formas de expressão, como os "caracteres especiais" referidos pelo Conselho.

Estes caracteres incluem formas como Zuschauer_innen, ZuschauerInnen, Zuschauer*innen ou, que se generalizou recentemente e foi adoptada por um grande número de meios de comunicação social, os dois pontos intermédios: Zuschauer:em. 

Como é que se pronunciam estas palavras, por exemplo "Zuschauer:innen"? Quando este fenómeno surgiu, era possível observar - sobretudo na rádio e na televisão - duas formas de o pronunciar: ou com uma pequena pausa ou com um som "oclusivo" (uma espécie de "ataque de soluços", segundo os seus detractores).

Mas também aqui se aplica o princípio da economia do discurso: nos últimos tempos, há cada vez menos essa pausa ou som oclusivo. O resultado é que "Zuschauerinnen", o plural feminino, é pronunciado. Em vez de inclusão, consegue-se o contrário: a exclusão involuntária (?) do masculino, ou será uma tentativa deliberada de substituir o "masculino genérico" pelo "feminino genérico"?

Não é de surpreender que, devido ao carácter pesado e ambíguo desta linguagem, um grande número de cidadãos "comuns" a rejeite; todos os inquéritos sobre o assunto revelam uma elevada percentagem de pessoas que se opõem a este tipo de "caracteres".

A população contra a linguagem inclusiva

Segundo o "Barómetro de tendências RTL/ntv" (julho de 2023), quase três quartos dos inquiridos (73%) são contra esta linguagem. Apenas 22% dos inquiridos consideram positivo que as pessoas falem ou escrevam desta forma.

Por género, os homens opõem-se mais (77% contra, 18% a favor) do que as mulheres (70% para 26%). O único grupo com uma maioria a favor é o dos apoiantes do partido "Os Verdes" (58%). 

Perante estes números, a tentativa de impor esta língua por praticamente todos os meios de comunicação social - com a rádio e a televisão estatais à cabeça - e também pelas administrações públicas, apesar da oposição da maioria da população, é dificilmente compreensível.

No entanto, algumas administrações públicas já estão a começar a recuar, como demonstra a decisão tomada pela Baviera.

Mas este não foi o único: por exemplo, o Estado federado de Hesse também anunciou que, na correspondência oficial, só utilizará "linguagem normalizada e compreensível", com base nas directrizes do Conselho Ortográfico Alemão.

Já antes, em 2021, o ministério regional (equivalente a "conselho") da educação e cultura da Saxónia decidiu que a linguagem "inclusiva" não seria utilizada nas escolas e nas autoridades de supervisão escolar.

O ministério reafirmou-o em julho de 2023, ao alargar a diretiva através de um decreto: remete igualmente para o Conselho Ortográfico Alemão, que, segundo o ministério saxónico, "salienta que a língua escrita deve ser livre de barreiras e ter em conta as pessoas que têm dificuldade em ler ou escrever mesmo textos simples, bem como as que aprendem alemão como segunda língua ou língua estrangeira".

Língua inclusiva nos Länder

Recentemente, a plataforma "Redaktionsnetzwerk Deutschland (RND)" publicou um resumo da situação nos Länder. De acordo com este relatório, Schleswig-Holstein também proíbe a utilização de caracteres especiais, ou seja, se um aluno os utilizar no seu exame, isso é considerado uma "falta".

O mesmo se aplica na Saxónia-Anhalt, onde a sua utilização também é criminalizada. Isto apesar de o Ministério da Educação da Saxónia-Anhalt terra esforça-se por utilizar termos neutros em termos de género, disse o ministério à RND: a administração tem vindo a utilizar a forma feminina e masculina dividida desde 1992.

Os outros onze Länder têm uma posição mais aberta relativamente à linguagem inclusiva. Por exemplo, o Ministério Regional da Cultura da Baixa Saxónia sublinha: "É importante que, no sector escolar, todas as pessoas - independentemente da sua identidade de género - sintam que são tratadas corretamente.

O objetivo é escolher "uma linguagem compreensível que não discrimine ninguém". Segundo o RND, a mesma opinião é defendida em Mecklenburg-Vorpommern e na Renânia-Palatinado.

Apenas dois Länder, Bremen e Saarland, são claramente a favor da utilização destes caracteres especiais e a administração pública destes Länder fá-lo.

Recursos

"Porque até então não tinham compreendido a Escritura, que ele havia de ressuscitar dos mortos".

Neste artigo, é analisada a passagem evangélica Jo 20,9: "Porque até então não tinham compreendido a Escritura, que ele ressuscitaria dos mortos".

Rafael Sanz Carrera-9 de abril de 2024-Tempo de leitura: 9 acta

Depois de ter narrado os factos relacionados com a ressurreição (Jo 20, 1-9), João sente-se obrigado a pedir desculpa pela sua incredulidade e conclui com uma explicação: "Porque até então não tinham compreendido a Escritura, que ele ressuscitaria dos mortos" (Jo 20, 9). Com estas palavras, o evangelista explica porque é que, só agora, perante o túmulo vazio e os panos de linho dobrados, os dois discípulos ("tinham": no plural: Pedro e João) acreditam na ressurreição de Jesus. Esta noção já tinha sido antecipada em Jo 2,22: "Depois de ter ressuscitado dos mortos, os discípulos lembraram-se de que ele tinha dito isto e acreditaram na Escritura e na palavra que Jesus tinha dito".

Esta ideia não é exclusiva de João, como podemos ver nas palavras de Jesus aos discípulos de Emaús: "Depois disse-lhes: "Como sois insensatos e estúpidos para acreditar no que os profetas disseram! Não era necessário que o Messias sofresse isto e entrasse assim na sua glória? E, começando por Moisés e por todos os profetas, explicou-lhes o que dele se dizia em todas as Escrituras [...]. E disse-lhes: "Foi isto que eu vos disse quando estava convosco: que se cumpra tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos". Depois abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras.. E disse-lhes: "Assim está escrito: 'O Messias há-de sofrer e ressuscitará ao terceiro dia'..." (Lucas 24,25-27.44-46).

A mesma necessidade de compreender as Escrituras para interpretar corretamente a morte e ressurreição de Cristo é encontrada em Paulo: "Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras" (1 Coríntios 15:3-4).

No entanto, o Evangelho de João não menciona nenhuma passagem da Escritura da qual se possa deduzir que o Senhor iria ressuscitar dos mortos. Por isso, temos de procurar essas referências nas outras passagens que falam da ressurreição no Novo Testamento. Assim encontramos:

  • Salmo 2, 7 citado em Actos 13, 32-37: sobre a ressurreição e o reinado eterno de David. Na exegese destes dois textos, Jesus surge como o rei messiânico prometido, o Filho de Deus, cuja ressurreição cumpre as promessas divinas, nomeadamente no que diz respeito ao reinado eterno e universal do seu Filho.
  • Salmo 16, 10 citado em Actos 2, 27ss e Actos 13, 35: sobre a incorruptibilidade do corpo ressuscitado. Estas passagens estão interligadas para relacionar a ressurreição de Jesus com a incorruptibilidade do corpo do Messias.
  • Salmo 110, 1.4 mencionado em Hebreus 6, 20: sobre a ressurreição e o sacerdócio eterno de Melquisedeque. Ambas as passagens bíblicas estão relacionadas com a ressurreição de Jesus e com o seu papel de sumo sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec.
  • Em Isaías 53, 10-12 referido em Romanos 4, 25: sobre a ressurreição de Jesus e o seu significado salvífico universal. Estas passagens de Isaías 53 e Romanos 4 estão relacionadas com a compreensão cristã da ressurreição de Jesus e do seu significado para a salvação da humanidade.
  • Em Mateus 16, 21; 17, 23; 20, 19 (e par.) encontramos as previsões de Jesus sobre a Sua ressurreição. Estas são as previsões que o próprio Jesus fez sobre a Sua morte e ressurreição.

Antes de começarmos a estudar cada passagem em pormenor, é relevante destacar dois aspectos cruciais destes textos do Antigo Testamento em relação à ressurreição de Jesus.

1. escassez e obscuridade de citações. Encontramos poucas referências do Antigo Testamento para apoiar a ressurreição de Jesus no Novo Testamento. Essas passagens, para além de não serem abundantes, são obscuras e não parecem estar relacionadas com a ressurreição à primeira vista. De facto, para o dr. William Lane CraigFoi precisamente esta dificuldade que levou muitos académicos a rejeitarem a visão do século XIX de que os discípulos chegaram a acreditar que Jesus tinha ressuscitado através da leitura dessas passagens do Antigo Testamento. Na realidade, o caminho dos discípulos foi inverso: da evidência da ressurreição para uma compreensão mais profunda das Escrituras.

2ª perspetiva inovadora. No entanto, apresenta-se aqui um paradoxo interessante: antes de acreditar na ressurreição de Jesus, ninguém teria interpretado estes textos do Antigo Testamento desta forma. Só depois de terem verificado a autenticidade da ressurreição é que os discípulos foram buscar textos de apoio ao Antigo Testamento. Isto implicou uma leitura inovadora das passagens, com uma perspetiva que não teriam considerado legítima sem a convicção de que Jesus tinha ressuscitado. Assim, a ressurreição de Jesus transformou a interpretação dos textos antigos: tornou-se a chave hermenêutica que ilumina todo o Antigo Testamento.

Um último esclarecimento importante: embora as referências bíblicas à ressurreição de Jesus Cristo sejam poucas e pouco claras, os quatro grandes temas que elas abordam - o reino eterno de David, a incorruptibilidade e a vitória sobre a morte, o sacerdócio eterno de Melquisedeque e a justificação através do seu sacrifício - fornecem-nos uma chave hermenêutica para compreender toda a Escritura. Estes quatro temas, de certa forma, funcionam como ferramentas interpretativas para centenas de passagens do Antigo Testamento. Vejamos brevemente o que são.

A ressurreição e o reinado eterno de David

Por um lado, temos o Salmo 2, que representa a unção de um rei messiânico, isto é, destinado a reinar sobre as nações. Neste contexto, o versículo 7 diz: "Anunciarei o decreto do Senhor, que me disse: 'Tu és meu filho, hoje te gerei'". A coroação e a unção de um rei em Israel era um acontecimento solene e significativo, pois a sua investidura estabelecia o reconhecimento divino da sua autoridade.

Duas grandes promessas messiânicas estão presentes no Salmo 2: a realeza universal e a filiação divina que lhe está subjacente. Estas promessas, embora se refiram à dinastia de David, só se cumprirão com a ressurreição de Jesus Cristo. É este o entendimento de Paulo e Barnabé, que, na sua pregação em Antioquia, ligam o Salmo 2 a Jesus Cristo e à sua ressurreição: "Trazemos-vos a boa nova de que a promessa que Deus fez aos nossos pais, cumpriu-a a nós, seus filhos, ressuscitando Jesus de entre os mortos. Assim está escrito no salmo segundo: "Tu és o meu Filho, hoje te gerei. E o facto de o ter ressuscitado de entre os mortos, para nunca mais voltar à corrupção, é expresso desta forma: "Cumprir-te-ei as santas e seguras promessas feitas a David" [Is 55,3]. É por isso que diz noutro lugar: "Não deixarás que o teu santo se corrompa" [Sl 16,10]. David ... experimentou a corrupção. Mas aquele que Deus ressuscitou não experimentou a corrupção" (Act 13,32-37). Argumentam que a ressurreição de Jesus representa o cumprimento das promessas de Deus a David de lhe dar um trono para sempre (Act 13,36-37). E assim, como estas promessas se cumprem em Jesus, ele é o verdadeiro herdeiro do trono de David; o verdadeiro Rei, Filho de Deus, do Salmo 2.

As promessas de Deus de conceder uma linhagem perpétua ao rei David encontram-se em muitos sítios do Antigo Testamento Assim, vemos como a ressurreição de Jesus é um acontecimento que liga o Antigo e o Novo Testamento, revelando a fidelidade de Deus às suas promessas e o seu plano redentor para a humanidade através de Jesus Cristo.

A incorruptibilidade do corpo ressuscitado

As passagens do Salmo 16 e dos Actos 2 e 13 estão interligadas para realçar o modo como a ressurreição cumpre as profecias sobre a não corrupção do corpo do Messias.

O Salmo 16, 10 proclama: "Porque não me abandonarás na região dos mortos, nem deixarás que o teu fiel veja a corrupção". Este versículo é citado duas vezes em Actos 2,27.31, para sublinhar que Deus não deixará que o seu Santo experimente a corrupção: "Porque não me abandonarás no lugar dos mortos, nem deixarás que o teu Santo experimente a corrupção. Ensinaste-me os caminhos da vida, encher-me-ás de alegria com a tua face. Irmãos, deixai-me falar-vos com franqueza: o patriarca David morreu e foi sepultado, e o seu túmulo está entre nós até hoje. Mas, como era profeta e sabia que Deus lhe tinha prometido com juramento colocar no seu trono um dos seus descendentes, prevendo-o, falou da ressurreição do Messias, dizendo que não o deixaria no lugar dos mortos e que a sua carne não conheceria a corrupção" (Actos 2, 27-31). Pedro conclui que - tal como o patriarca David, que morreu e foi sepultado - o salmo profetiza a ressurreição do Messias.

É importante notar que, embora o salmo em si não trate da ressurreição, mas de evitar a morte, Pedro dá ao salmo uma interpretação inovadora, dizendo que ele profetizava a ressurreição do Messias. Esta interpretação inovadora só é possível após o acontecimento da ressurreição; antes disso, não teria sido legítima.

Há também outra referência ao Salmo 16:10 em Actos 13:35-37, como já vimos, onde é apresentado um argumento semelhante para a ressurreição como um pré-requisito para a não-corrupção do corpo. Em suma, a incorruptibilidade do corpo de Jesus e a sua vitória sobre a morte estão intrinsecamente ligadas à sua ressurreição.

A ressurreição e o sacerdócio eterno de Melquisedeque

Tanto o Salmo 110 como Hebreus 6 estão relacionados com a figura de Jesus e o seu papel de Sumo Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque.

O Salmo 110 começa com um convite divino: "O Senhor falou ao meu Senhor: 'Senta-te à minha direita, e farei dos teus inimigos um escabelo para os teus pés'". Aqui, o Senhor (Deus Pai) convida o Messias (Cristo) a ocupar um lugar de honra e de autoridade à sua direita. Esta posição simboliza a exaltação e o poder do Messias sobre todas as coisas. É, portanto, um salmo real e messiânico.

Mais adiante, no v. 4, diz: "O Senhor jurou e não se arrepende: 'Tu és um sacerdote eterno, segundo o rito de Melquisedec'". Acaba de falar da autoridade do Messias como Rei (v. 1) e agora do seu papel de sacerdote. A combinação das duas funções é significativa, pois afirma que o Messias será um "sacerdote eterno segundo o rito de Melquisedec", um personagem misterioso, descrito no Antigo Testamento como sacerdote do Deus Altíssimo e rei de Salém (Jerusalém). Esta referência é crucial porque ele exerceu funções sacerdotais antes da instituição do sacerdócio levítico.

Hebreus 6:20 refere-se a Jesus como o eterno Sumo Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. Isto tem implicações profundas. Quando Jesus ressuscita e sobe ao céu, entra no santuário celestial não feito por mãos humanas. Ele leva consigo o seu próprio sangue como sacrifício pelo pecado, semelhante ao papel do sumo sacerdote no Antigo Testamento durante o Dia da Expiação. A menção do "rito de Melquisedeque" indica que Jesus, na Sua ressurreição, exerce o Seu sacerdócio de uma forma superior e eterna, transcendendo o sistema levítico. O Seu sacrifício é perfeito e completo. Tanto na Sua autoridade como Rei como na Sua função sacerdotal segundo a ordem de Melquisedeque, a Sua divindade é exibida e o Seu papel central na redenção da humanidade é revelado.

A Ressurreição de Jesus e o seu significado salvífico universal

Isaías 53:10-12 diz: "O Senhor quis esmagá-lo com sofrimento, e dar a sua vida como expiação; ele verá a sua descendência, prolongará os seus anos, e o que o Senhor quiser prosperará pela sua mão. Com o trabalho da sua alma, ele verá a luz, o justo ficará satisfeito com o conhecimento. O meu servo justificará a muitos, porque suportou os seus crimes. Dar-lhe-ei uma multidão por sua parte, e ele terá uma multidão por seu despojo. Porque expôs a sua vida à morte e foi contado entre os pecadores, levou o pecado de muitos e intercedeu pelos pecadores". Esta passagem revela-nos duas coisas. Por um lado, Isaías profetiza aqui o Servo Sofredor, uma figura messiânica - imediatamente associada a Jesus - que sofrerá e dará a sua vida em expiação dos pecados do povo. E, por outro lado, a ideia poderosa de que, apesar de expor a sua vida à morte e de ser contado entre os pecadores, ele será exaltado: "Ele verá a luz... prolongará os seus anos": isto simboliza a ressurreição como triunfo sobre a morte e garantia de vida eterna.

Por outro lado, Romanos 4, 24-25 diz: "Nós, que cremos naquele que ressuscitou dos mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor, que foi entregue pelos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação". Aqui, o apóstolo Paulo relaciona magistralmente a ressurreição de Jesus com a nossa justificação. Jesus foi entregue pelos nossos pecados, mas ressuscitou para a nossa justificação. Ou seja, a Sua ressurreição corrobora a Sua obra redentora e o Seu papel como Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

A relação entre as duas passagens reside no facto de ambas falarem do sofrimento, da morte e da exaltação do Servo (Jesus). A ressurreição de Jesus não só valida a sua identidade como o Servo Sofredor de Isaías, mas é também uma confirmação do cumprimento da sua missão salvadora. De facto, a oferta de Jesus - como eterno Sumo Sacerdote - foi aceite pelo Pai como o sacrifício perfeito pelos nossos pecados.

As previsões de Jesus sobre a sua ressurreição

Mateus, em particular, apresenta-nos três momentos cruciais em que Jesus anuncia o seu destino e a sua ressurreição, e a forma como os discípulos reagem a essas previsões.

Em Mateus 16, 21, Jesus começa a desvendar - a caminho de Jerusalém-que sofrerá, será executado e ressuscitará ao terceiro dia. Esta primeira predição, embora clara nos seus termos, parece ter confundido os discípulos, pois a ideia de sofrimento e ressurreição não lhes entra na mente.

A confusão persiste mesmo depois da segunda predição, narrada em Mateus 17,23. Após a maravilhosa revelação do Monte da Transfiguração, Jesus repete a sua condenação iminente, mas, apesar de estar mais familiarizado com a ideia, nem sequer os três que lhe são mais próximos a compreendem.

Na terceira predição - Mateus 20,19 - Jesus acrescenta pormenores específicos sobre a sua entrega aos gentios e o seu destino na cruz. No entanto, mesmo com esta clarificação adicional, os discípulos continuam a não compreender a realidade do que Jesus lhes está a anunciar.

É por isso que João nos diz: "Porque até então não tinham compreendido a Escritura, que ele ressuscitaria dos mortos" (Jo 20,9). De facto, os discípulos só compreenderam as Escrituras e as predições de Jesus sobre a sua ressurreição depois dos acontecimentos da própria ressurreição. Apesar das claras predições de Jesus, os discípulos só vieram a compreender plenamente o seu significado depois da ressurreição. Só então começaram a perceber como as Escrituras se alinhavam com as predições de Jesus sobre a ressurreição.

Conclusão

A ressurreição de Jesus torna-se a chave hermenêutica que ilumina toda a Escritura. Esta perspetiva interpretativa inovadora surge após o acontecimento da ressurreição, que levou os discípulos a procurar textos da Escritura que a apoiassem. Além disso, embora as referências à ressurreição sejam poucas, os temas que abordam - o reino eterno de David, a incorruptibilidade, o sacerdócio eterno de Melquisedec e a justificação - fornecem ferramentas interpretativas, de modo que funcionam como chaves para a compreensão de numerosas passagens do Antigo Testamento.

O autorRafael Sanz Carrera

Doutor em Direito Canónico

Vaticano

Vaticano publica documento há muito aguardado sobre a dignidade humana

Na conferência de imprensa de apresentação do documento, o Cardeal Fernández comentou que espera que este texto tenha o mesmo impacto que "Fiducia supplicans".

Andrea Acali-8 de abril de 2024-Tempo de leitura: 9 acta

Foi publicada a tão esperada declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé.Dignidade infinitasobre o tema da dignidade humana". O prefeito, Cardeal Fernandez, na sua apresentação, recorda que foram necessários cinco anos para preparar o documento, com uma modificação final substancial "para responder a um pedido do Santo Padre, que explicitamente exortou a centrar a atenção nas graves violações actuais da dignidade humana no nosso tempo, na sequência da encíclica "...".Fratelli tuttiO drama da pobreza, a situação dos migrantes, a violência contra as mulheres, o tráfico de seres humanos e a guerra.

A Declaração recorda que "o respeito pela dignidade de cada pessoa constitui a base indispensável da própria existência de qualquer sociedade que pretenda fundar-se no direito justo e não na força do poder. É com base no reconhecimento da dignidade humana que são defendidos os direitos fundamentais do homem, que precedem e estão na base de toda a convivência civilizada. A cada pessoa e, ao mesmo tempo, a cada comunidade humana pertence, portanto, a tarefa da realização concreta e efectiva da dignidade humana, cabendo aos Estados não só protegê-la, mas também garantir as condições necessárias para que ela floresça na promoção integral da pessoa humana".

A Declaração está estruturada em quatro partes: "Nas três primeiras partes, recorda os princípios fundamentais e os pressupostos teóricos, a fim de fornecer esclarecimentos importantes que possam evitar a confusão frequente na utilização do termo 'dignidade'. Na quarta parte, apresenta algumas situações problemáticas actuais em que a imensa e inalienável dignidade que corresponde a cada ser humano não é adequadamente reconhecida. Denunciar estas graves e actuais violações da dignidade humana é um gesto necessário, porque a Igreja alimenta a profunda convicção de que a fé não pode ser separada da defesa da dignidade humana, a evangelização da promoção de uma vida digna e a espiritualidade do compromisso com a dignidade de todos os seres humanos".

Dignidade humana

O documento, publicado por ocasião do 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, recorda, antes de mais, que "a dignidade infinita" de cada pessoa humana, feita à imagem e semelhança de Deus, é "inalienavelmente fundada no seu próprio ser". É a "dignidade ontológica" que "nunca pode ser apagada e permanece válida para além de quaisquer circunstâncias em que os indivíduos se possam encontrar". A Declaração faz depois referência a três outros conceitos de dignidade: moral, social e existencial, que podem falhar mas nunca apagar a dignidade ontológica de cada ser humano.

A Igreja "proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente do seu estatuto na vida ou das suas qualidades". Este anúncio baseia-se em três convicções: o amor de Deus Criador, a Encarnação de Cristo e o destino do homem chamado à comunhão com Deus à luz da Ressurreição. No entanto, a dignidade humana pode ser manchada pelo pecado: aqui reside a resposta pessoal de cada um para fazer crescer e amadurecer a sua dignidade, com o contributo decisivo da fé para a razão.

O documento do Dicastério recorda depois "alguns princípios essenciais que devem ser sempre respeitados" da Declaração Universal dos Direitos do Homem e esclarece mal-entendidos que surgiram em torno do conceito de dignidade. Como, por exemplo, a proposta de utilizar a definição de dignidade pessoal, que implicaria que apenas aqueles capazes de raciocinar seriam reconhecidos como pessoas. A consequência seria que "o nascituro e os idosos não auto-suficientes não teriam dignidade pessoal, nem os deficientes mentais". Em vez disso, a Igreja insiste no reconhecimento de uma "dignidade intrínseca" de cada ser humano. Critica, em seguida, a utilização abusiva do conceito de dignidade para "justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais são frequentemente colocados em oposição ao direito fundamental à vida, como se quisessem garantir a capacidade de exprimir e realizar cada preferência individual ou desejo subjetivo. A dignidade é então identificada com uma liberdade isolada e individualista, que procura impor certos desejos e propensões subjectivas como "direitos", garantidos e financiados pela comunidade. Mas a dignidade humana não pode ser baseada em critérios puramente individuais, nem pode ser identificada apenas com o bem-estar psicofísico do indivíduo. Pelo contrário, a defesa da dignidade humana baseia-se nas exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem da arbitrariedade individual nem do reconhecimento social. Os deveres decorrentes do reconhecimento da dignidade do outro e os correspondentes direitos que daí decorrem têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo, assente na natureza humana comum. Sem essa referência objetiva, o conceito de dignidade está, de facto, sujeito às mais diversas arbitrariedades e aos interesses do poder".

O documento recorda que a dignidade do ser humano inclui também a capacidade de assumir obrigações para com os outros e a importância da liberdade, abordando o que a condiciona, limita e obscurece, bem como a questão do relativismo.

Durante a apresentação, Fernandez chamou à dignidade humana "um pilar fundamental da doutrina cristã". O cardeal argentino baseou-se na anterior declaração sobre as bênçãos, "Fiducia supplicans", que "teve sete mil milhões de visitas na Internet", citando uma sondagem que mostra que, em Itália, entre os menores de 35 anos, 75% dos inquiridos concordam com esse documento. "O de hoje é muito mais importante e gostaríamos que tivesse o mesmo nível de impacto, porque o mundo precisa de redescobrir as imensas implicações da dignidade humana". O Presidente do Parlamento Europeu deixou claro, no entanto, que estas palavras não eram uma auto-defesa após a acesa polémica das últimas semanas sobre "Fiducia supplicans".

O Prefeito destacou o "crescimento da Igreja na compreensão da dignidade, até à rejeição total da pena de morte, ponto culminante da reflexão sobre a inviolabilidade da vida humana" e contou duas anedotas. A primeira foi sobre a escolha do título: tinham pensado em "Para além de todas as circunstâncias", porque é a chave para compreender toda a Declaração, mas depois escolheram uma citação de um discurso proferido por João Paulo II aos deficientes em 1980, durante a sua primeira viagem à Alemanha. A outra era pessoal, quando, num momento pessoal difícil em Buenos Aires, por ocasião da sua nomeação como reitor da Universidade Católica, Bergoglio lhe disse: "Não, Tucho, levanta a cabeça porque não te podem tirar a dignidade...".

A última secção da Declaração "aborda algumas violações concretas e graves" da dignidade humana, começando pela "tragédia da pobreza", que afecta não só os países ricos e pobres, mas também as desigualdades sociais: "Todos somos responsáveis, embora em maior ou menor grau, por esta desigualdade gritante". Há também a guerra, que "com o seu rasto de destruição e dor, mina a dignidade humana a curto e a longo prazo". Para além de fazer eco do apelo "guerra nunca mais", o documento reitera que "a íntima relação entre fé e dignidade humana torna contraditório que a guerra se baseie em convicções religiosas".

Migrantes

E ainda os migrantes, "entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza": o seu acolhimento "é um modo importante e significativo de defender a dignidade inalienável de toda a pessoa humana". O tráfico de seres humanos é também "considerado uma grave violação da dignidade humana" e é definido como um "crime contra a humanidade": "A Igreja e a humanidade não devem renunciar à luta contra fenómenos como o comércio de órgãos e tecidos humanos, a exploração sexual de crianças, o trabalho escravo, incluindo a prostituição, o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo e o crime organizado internacional". É reafirmado o empenhamento da Igreja na luta contra o flagelo dos abusos sexuais.

Violência contra as mulheres

A violência contra as mulheres é objeto de grande destaque: "É um escândalo mundial, cada vez mais reconhecido. Embora se reconheça em palavras a igual dignidade das mulheres, nalguns países as desigualdades entre mulheres e homens são muito graves e, mesmo nos países mais desenvolvidos e democráticos, a realidade social concreta testemunha que, muitas vezes, não se reconhece às mulheres a mesma dignidade que aos homens". Para além de condenar as várias formas de discriminação, "entre as formas de violência exercidas contra as mulheres, como não mencionar a compulsão ao aborto, que afecta tanto a mãe como o filho, muitas vezes para satisfazer o egoísmo dos homens? E como não mencionar a prática da poligamia? "Neste contexto de violência contra as mulheres, o fenómeno do feminicídio não pode ser suficientemente denunciado. Nesta frente, o empenhamento de toda a comunidade internacional deve ser compacto e concreto".

Aborto

Em seguida, reitera a condenação do aborto sem exclusão, recordando as palavras de São João Paulo II na "Evangelium Vitae", e reafirma que "é preciso afirmar com toda a força e clareza, também no nosso tempo, que esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de todos os direitos humanos". Neste sentido, "o empenho generoso e corajoso de Santa Teresa de Calcutá na defesa de cada pessoa concebida merece ser recordado".

Maternidade substituta

Condena a "prática da maternidade de substituição, através da qual a criança imensamente digna se torna um mero objeto": "Viola, acima de tudo, a dignidade da criança" que tem "o direito, em virtude da sua dignidade inalienável, a ter uma origem plenamente humana e não artificialmente induzida, e a receber o dom de uma vida que manifesta, ao mesmo tempo, a dignidade de quem dá e de quem recebe". O reconhecimento da dignidade da pessoa humana implica também o reconhecimento da dignidade da união conjugal e da procriação humana em todas as suas dimensões. Neste sentido, o desejo legítimo de ter um filho não pode ser transformado num "direito a um filho" que não respeita a dignidade do próprio filho enquanto destinatário do dom gratuito da vida. É então contra "a dignidade da própria mulher que é forçada ou escolhe livremente submeter-se a isso. Com tal prática, a mulher dissocia-se da criança que nela cresce e torna-se um mero meio ao serviço do lucro ou do desejo arbitrário de outrem".

Eutanásia

Outro capítulo importante é dedicado à eutanásia, "um caso particular de violação da dignidade humana, mais silencioso, mas que está a ganhar muito terreno. Tem a particularidade de utilizar uma conceção errada da dignidade humana para a virar contra a própria vida". "É muito difundida a ideia de que a eutanásia ou o suicídio assistido são compatíveis com o respeito pela dignidade da pessoa humana. Perante este facto, é preciso reafirmar com força que o sofrimento não faz perder à pessoa doente aquela dignidade que lhe é intrínseca e inalienável, mas pode tornar-se uma ocasião para reforçar os laços de pertença recíproca e para tomar consciência da preciosidade de cada pessoa para toda a humanidade. É certo que a dignidade da pessoa em estado crítico ou terminal exige um esforço adequado e necessário da parte de todos para aliviar o seu sofrimento através de cuidados paliativos adequados e evitando qualquer obstinação terapêutica ou intervenção desproporcionada [...]. Mas esse esforço é totalmente diferente, diferente, até mesmo contrário à decisão de eliminar a própria vida ou a dos outros sob o peso do sofrimento. A vida humana, mesmo na sua condição dolorosa, é portadora de uma dignidade que deve ser sempre respeitada, que não pode ser perdida e cujo respeito permanece incondicional". Conceitos semelhantes para o cuidado das pessoas com deficiência e vulneráveis, para as quais "a inclusão e a participação ativa na vida social e eclesial de todos aqueles que, de alguma forma, são marcados pela fragilidade ou pela deficiência devem ser encorajadas na medida do possível".

Ideologia do género

Uma condenação explícita diz respeito à teoria do género. Ao mesmo tempo que reafirma o respeito devido a cada pessoa e a condenação de toda a discriminação baseada na orientação sexual, com um apelo à despenalização da homossexualidade nos países onde continua a ser crime, a Declaração "recorda que a vida humana, em todas as suas componentes, físicas e espirituais, é um dom de Deus, que deve ser acolhido com gratidão e posto ao serviço do bem. Querer dispor de si mesmo, como prescreve a teoria do género, independentemente desta verdade fundamental da vida humana como dom, não significa outra coisa senão ceder à antiga tentação do ser humano de se tornar Deus e de entrar em competição com o verdadeiro Deus de amor que nos é revelado no Evangelho". A diferença sexual é, portanto, "não só a maior diferença que se pode imaginar, mas também a mais bela e a mais poderosa [...], o respeito pelo próprio corpo e pelo corpo dos outros é essencial face à proliferação e à reivindicação de novos direitos avançados pela teoria do género [...]. Todas as tentativas de obscurecer a referência à diferença sexual ineliminável entre homem e mulher devem, por conseguinte, ser rejeitadas". Neste contexto, "qualquer intervenção para mudar de sexo, como regra geral, corre o risco de ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da conceção. Isto não exclui a possibilidade de uma pessoa que sofra de anomalias genitais já evidentes à nascença ou que se desenvolvam mais tarde poder optar por receber assistência médica para resolver essas anomalias".

Violência digital

Por último, o documento analisa a violência digital, alertando para a criação de um mundo de crescente exploração, exclusão e violência, facilitada pelo progresso tecnológico: "Estas tendências representam um lado negro do progresso digital. Nesta perspetiva, para que a tecnologia sirva a dignidade humana e não a prejudique, e para promover a paz em vez da violência, a comunidade humana deve ser proactiva na abordagem destas tendências, respeitando a dignidade humana e promovendo o bem".

Respondendo a uma pergunta durante a apresentação, o cardeal acabou por afirmar que o inferno é compatível com a liberdade humana, que Deus respeita, mas fica a questão que o Papa Francisco levanta frequentemente sobre a possibilidade de o inferno estar vazio.

O autorAndrea Acali

-Roma

Recursos

Texto em inglês da Declaração "Dignitas infinita" sobre a Dignidade Humana

Texto da Declaração Dignidade infinita sobre a dignidade humana apresentado na segunda-feira, 8 de abril, na Sala Stampa.

Maria José Atienza-8 de abril de 2024-Tempo de leitura: 42 acta

Segue-se uma tradução do texto da Declaração para espanhol. Dignidade infinita sobre a dignidade humana apresentado esta manhã na Sala de Imprensa da Santa Sé.

Apresentação 

No Congresso de 15 de março de 2019, a então Congregação para a Doutrina da Fé decidiu iniciar "a redação de um texto que sublinhe a indispensabilidade do conceito de dignidade da pessoa humana no âmbito da antropologia cristã e ilustre o alcance e as implicações benéficas a nível social, político e económico, tendo em conta os últimos desenvolvimentos do tema no campo académico e as suas compreensões ambivalentes no contexto atual". Um primeiro projeto a este respeito, elaborado com a ajuda de alguns peritos durante o ano de 2019, foi considerado insatisfatório, numa Consulta restrita da Congregação, a 8 de outubro do mesmo ano. 

A Secção Doutrinária elaborou ex novo outro projeto de texto, com base nos contributos de vários peritos. Este projeto foi apresentado e discutido numa consulta restrita a 4 de outubro de 2021. Em janeiro de 2022, o novo projeto foi apresentado à Sessão Plenária da Congregação, durante a qual os membros encurtaram e simplificaram o texto. 

Em 6 de fevereiro de 2023, o novo texto corrigido foi avaliado numa Consulta restrita que propôs algumas modificações adicionais. A nova versão foi apresentada às Sessões Ordinárias do Dicastério (Feira IV) em 3 de maio de 2023. Os membros concordaram que o documento, com algumas modificações, poderia ser publicado. O Santo Padre aprovou a Deliberata desta Feira IV no decurso da Audiência que me foi concedida a 13 de novembro de 2023. Nessa ocasião, pediu-me também que destacasse no texto alguns temas intimamente relacionados com o tema da dignidade, como o drama da pobreza, a situação dos migrantes, a violência contra as mulheres, o tráfico de seres humanos, a guerra e outros. Para honrar o mais possível esta indicação do Santo Padre, a Secção Doutrinal do Dicastério dedicou um Congresso para aprofundar a carta encíclica Fratelli tutti, que oferece uma análise original e um aprofundamento do tema da dignidade humana "para além de todas as circunstâncias". 

Por carta de 2 de fevereiro de 2024, em vista da Feira IV de 28 de fevereiro seguinte, foi enviado aos membros do Dicastério um novo projeto de texto, consideravelmente modificado, com o seguinte esclarecimento: "Esta reformulação tornou-se necessária para responder a um pedido específico do Santo Padre. O Santo Padre tinha pedido explicitamente que se prestasse maior atenção às graves violações da dignidade humana que se verificam atualmente no nosso tempo, na sequência da encíclica Fratelli tutti. Por isso, a Secção Doutrinal tomou medidas para reduzir a parte inicial [...] e desenvolver mais pormenorizadamente o que o Santo Padre tinha indicado". A Sessão Ordinária do Dicastério aprovou finalmente o texto da presente Declaração a 28 de fevereiro de 2024. Durante a Audiência que me foi concedida, juntamente com o Secretário da Secção Doutrinal, D. Armando Matteo, a 25 de março de 2024, o Santo Padre aprovou a presente Declaração e ordenou a sua publicação. 

O texto, que levou cinco anos a produzir, permite-nos compreender que estamos perante um documento que, pela seriedade e centralidade da questão da dignidade no pensamento cristão, exigiu um considerável processo de maturação para chegar à redação final que hoje publicamos. 

Nas três primeiras partes, a Declaração recorda os princípios fundamentais e os pressupostos teóricos, a fim de fornecer esclarecimentos importantes que possam evitar a confusão frequente na utilização do termo "dignidade". Na quarta parte, apresenta algumas situações problemáticas actuais em que a imensa e inalienável dignidade de cada ser humano não é adequadamente reconhecida. Denunciar estas graves e contínuas violações da dignidade humana é um gesto necessário, porque a Igreja está profundamente convencida de que a fé não pode ser separada da defesa da dignidade humana, a evangelização da promoção de uma vida digna e a espiritualidade do compromisso com a dignidade de todos os seres humanos. 

Esta dignidade de todos os seres humanos pode, de facto, ser entendida como "infinita" (dignitas infinita), como afirmou São João Paulo II num encontro com pessoas que sofrem de certas limitações ou deficiências, para mostrar como a dignidade de todos os seres humanos ultrapassa todas as aparências externas ou características da vida concreta das pessoas.

O Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti, quis sublinhar com particular insistência que esta dignidade existe "para além de todas as circunstâncias", convidando todos a defendê-la em todos os contextos culturais, em todos os momentos da existência de uma pessoa, independentemente de qualquer deficiência física, psicológica, social ou mesmo moral. Neste sentido, a Declaração procura mostrar que estamos perante uma verdade universal, que todos somos chamados a reconhecer, como condição fundamental para que as nossas sociedades sejam verdadeiramente justas, pacíficas, saudáveis e, em suma, autenticamente humanas. 

A lista dos temas escolhidos pela Declaração não é certamente exaustiva. No entanto, os temas abordados são precisamente aqueles que nos permitem exprimir vários aspectos da dignidade humana que podem estar obscurecidos na consciência de muitas pessoas atualmente. Alguns serão facilmente partilhados por diferentes sectores das nossas sociedades, outros menos. No entanto, todos eles nos parecem necessários porque, no seu conjunto, ajudam a reconhecer a harmonia e a riqueza da reflexão sobre a dignidade que brota do Evangelho.

Esta Declaração não pretende esgotar um tema tão rico e decisivo, mas pretende fornecer alguns elementos de reflexão que nos ajudem a tê-lo presente no complexo momento histórico que estamos a viver para que, no meio de tantas preocupações e ansiedades, não nos percamos e nos exponhamos a sofrimentos mais lacerantes e profundos. 

Víctor Manuel Card. Fernández 

Prefeito

Introdução 

1) (Dignitas infinita) Toda a pessoa humana, independentemente das circunstâncias e do estado ou situação em que se encontre, é titular de uma dignidade infinita, que assenta inalienavelmente no seu próprio ser. Este princípio, plenamente reconhecível até pela simples razão, está na base do primado da pessoa humana e da proteção dos seus direitos. A Igreja, à luz da Revelação, reafirma e confirma em absoluto esta dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida em Cristo Jesus. É desta verdade que ela tira as razões do seu empenhamento a favor dos mais fracos e dos menos capazes, insistindo sempre "no primado da pessoa humana e na defesa da sua dignidade para além de todas as circunstâncias". 

2. Esta dignidade ontológica e o valor único e eminente de cada mulher e de cada homem que existe neste mundo foram consagrados com autoridade na Declaração Universal dos Direitos do Homem (10 de dezembro de 1948) pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Ao comemorar o 75º aniversário deste Documento, a Igreja vê a oportunidade de proclamar mais uma vez a sua convicção de que, criado por Deus e redimido por Cristo, todo o ser humano deve ser reconhecido e tratado com respeito e amor, precisamente por causa da sua dignidade inalienável. Este aniversário oferece também à Igreja a oportunidade de esclarecer alguns mal-entendidos que muitas vezes surgem em torno da dignidade humana e de abordar algumas questões concretas, sérias e urgentes relacionadas com ela.

3. Desde o início da sua missão, a Igreja, impulsionada pelo Evangelho, esforçou-se por afirmar a liberdade e promover os direitos de todos os seres humanos. Nestes últimos tempos, graças à voz dos Papas, ela procurou formular mais explicitamente este compromisso através do renovado apelo ao reconhecimento da dignidade fundamental devida à pessoa humana. São Paulo VI afirmou que "nenhuma antropologia é igual à antropologia eclesial da pessoa humana, mesmo considerada individualmente, em termos da sua originalidade, dignidade, intangibilidade e riqueza dos seus direitos fundamentais, sacralidade, educabilidade, aspiração ao pleno desenvolvimento e imortalidade". 

4. São João Paulo II, em 1979, afirmava durante a III Conferência Episcopal Latino-Americana, em Puebla: "A dignidade humana é um valor evangélico que não pode ser desrespeitado sem grande ofensa ao Criador. Esta dignidade é violada, a nível individual, quando valores como a liberdade, o direito de professar a sua religião, a integridade física e psíquica, o direito aos bens essenciais, à vida, não são devidamente tidos em conta. É violado, a nível social e político, quando as pessoas não podem exercer o seu direito de participação ou são sujeitas a coacções injustas e ilegítimas, ou sujeitas a torturas físicas ou psicológicas, etc. [...] Se a Igreja está presente na defesa ou na promoção da dignidade humana, fá-lo em conformidade com a sua missão, que, embora de carácter religioso e não social ou político, não pode deixar de considerar o homem na integridade do seu ser".

5. Em 2010, diante da Pontifícia Academia para a Vida, Bento XVI afirmou que a dignidade da pessoa é "um princípio fundamental que a fé em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado sempre defendeu, especialmente quando não é respeitada em relação aos sujeitos mais simples e indefesos". Noutra ocasião, dirigindo-se aos economistas, disse que "a economia e as finanças não existem apenas para si mesmas; são apenas um instrumento, um meio. O seu objetivo é unicamente a pessoa humana e a sua plena realização em dignidade. Este é o único capital a salvar. 

6. Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco convidou a Igreja a "confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano" e a "descobrir que 'ao fazê-lo, confere-lhe uma dignidade infinita'", sublinhando com força que esta imensa dignidade representa um dado original a ser reconhecido com lealdade e acolhido com gratidão. É precisamente neste reconhecimento e aceitação que se pode fundar uma nova convivência entre os seres humanos, que declina a sociabilidade num horizonte de autêntica fraternidade: só "reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, podemos fazer nascer um desejo mundial de fraternidade entre todos". Segundo o Papa Francisco, "esta fonte da dignidade humana e da fraternidade encontra-se no Evangelho de Jesus Cristo", mas é também uma convicção a que a razão humana pode chegar através da reflexão e do diálogo, uma vez que "em todas as situações, a dignidade dos outros deve ser respeitada, não porque não inventemos ou assumamos a dignidade dos outros, mas porque há de facto um valor neles que transcende as coisas materiais e as circunstâncias, e que exige que sejam tratados de forma diferente. Que cada ser humano possua uma dignidade inalienável é uma verdade que responde à natureza humana para além de qualquer mudança cultural". De facto, conclui o Papa Francisco, "o ser humano tem a mesma dignidade inviolável em todas as épocas da história, e ninguém pode sentir-se autorizado pelas circunstâncias a negar esta convicção ou a não agir em conformidade". Nesta perspetiva, a sua encíclica Fratelli tutti é já uma espécie de Carta Magna para as tarefas actuais de salvaguarda e promoção da dignidade humana. 

Uma clarificação fundamental 

7. Embora exista atualmente um consenso bastante generalizado sobre a importância e mesmo sobre o alcance normativo da dignidade e do valor único e transcendente de cada ser humano, a expressão "dignidade humana" corre muitas vezes o risco de se prestar a múltiplos significados e, por conseguinte, a possíveis mal-entendidos e "contradições que nos levam a perguntar se a igual dignidade de todos os seres humanos [...], [é] verdadeiramente reconhecida, respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias". Tudo isto nos leva a reconhecer a possibilidade de uma distinção quádrupla do conceito de dignidade: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e, finalmente, dignidade existencial. O sentido mais importante continua a ser, como se disse até agora, o ligado à dignidade ontológica que corresponde à pessoa enquanto tal pelo simples facto de existir e de ter sido querida, criada e amada por Deus. Esta dignidade nunca pode ser eliminada e permanece válida para além de todas as circunstâncias em que os indivíduos se possam encontrar. Quando falamos de dignidade moral, referimo-nos, como acabámos de considerar, ao exercício da liberdade da criatura humana. Esta, embora dotada de uma consciência, está sempre aberta à possibilidade de agir contra ela. Ao fazê-lo, o ser humano comporta-se de uma forma "não digna" da sua natureza de criatura amada por Deus e chamada a amar os outros. Mas essa possibilidade existe. E não só. A história testemunha que o exercício da liberdade contra a lei do amor revelada pelo Evangelho pode atingir níveis incalculáveis de maldade infligida aos outros. Quando isso acontece, somos confrontados com pessoas que parecem ter perdido todo o traço de humanidade, todo o traço de dignidade. A este respeito, a distinção aqui introduzida ajuda-nos a discernir precisamente entre o aspeto da dignidade moral, que pode de facto "perder-se", e o aspeto da dignidade ontológica, que nunca pode ser anulada. E é precisamente por isso 

Perspectivas bíblicas 

11. A revelação bíblica ensina que todos os seres humanos possuem uma dignidade intrínseca, porque foram criados à imagem e semelhança de Deus: "Deus disse: 'Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança' [...] Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou" (1 Coríntios 5,1).Gen 1, 2627). A humanidade tem uma qualidade específica que a torna não redutível à pura materialidade. A "imagem" não define a alma ou as capacidades intelectuais, mas a dignidade do homem e da mulher. Ambos, na sua relação mútua de igualdade e de amor recíproco, cumprem a função de representar Deus no mundo e são chamados a cuidar e a nutrir o mundo. Ser criado à imagem de Deus significa, portanto, que possuímos dentro de nós um valor sagrado que transcende todas as distinções sexuais, sociais, políticas, culturais e religiosas. A nossa dignidade é conferida, não reivindicada ou merecida. Cada ser humano é amado e acarinhado por Deus por sua própria causa e é, por isso, inviolável na sua dignidade. Na ÊxodoNo coração do Antigo Testamento, Deus mostra-se como aquele que ouve o grito dos pobres, vê a miséria do seu povo, preocupa-se com os mais pequenos e os oprimidos (cf. Ex 3, 7; 22, 20-26). O mesmo ensinamento volta a aparecer no Código Deuteronómico (cf. Dt 12-26): aqui o ensinamento sobre os direitos é transformado num "manifesto" da dignidade humana, em particular a favor da tripla categoria do órfão, da viúva e do estrangeiro (cf. Dt 24, 17). Os antigos preceitos do Êxodo são recordados e actualizados pela pregação dos profetas, que representam a consciência crítica de Israel. Os profetas Amós, Oséias, Isaías, Miquéias e Jeremias dedicam capítulos inteiros à denúncia da injustiça. Am 2, 6-7; 4, 1; 5, 11-12). Isaías pronuncia uma maldição contra aqueles que espezinham os direitos dos pobres, negando-lhes toda a justiça: "Ai dos que estabelecem decretos iníquos e publicam prescrições vexatórias, para oprimirem os pobres em juízo e privarem do seu direito os humildes do meu povo" (É 10, 1-2). Este ensinamento profético está registado na literatura sapiencial. O Siraque equipara a opressão dos pobres a um assassínio: "quem mata o seu vizinho que lhe rouba o sustento, quem não paga o salário do trabalhador derrama sangue" (Sim 34, 22). No SalmosA relação religiosa com Deus implica a defesa dos fracos e dos necessitados: "protegei os desamparados e os órfãos, fazei justiça aos humildes e aos necessitados, defendei os pobres e os indigentes e livrai-os das mãos dos culpados" (Sal 82, 3-4).

12. Jesus nasceu e cresceu em condições humildes e revelou a dignidade dos necessitados e dos trabalhadores. Ao longo do seu ministério, Jesus afirmou o valor e a dignidade de todos os que são portadores da imagem de Deus, independentemente do seu estatuto social e das circunstâncias externas. Mt 9, 10-11), as mulheres (cf. Jn 4, 1-42), crianças (cf. Mc 10, 14-15), os leprosos (cf. Mt 8, 2-3), os doentes (cf. Mc 1, 29-34), os estrangeiros (cf. Mt 25, 35), as viúvas (cf. Lc 7, 11-15). Ele cura, alimenta, defende, liberta, salva. É descrito como um pastor que cuida de uma única ovelha perdida (cf. Jo 1,5) Mt 18, 12-14). Ele próprio se identifica com os seus irmãos mais pequeninos: "Como o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes" (Lc 18,12-14).Mt 25, 40). Na linguagem bíblica, os "pequeninos" não são apenas as crianças por idade, mas os indefesos, os mais insignificantes, os marginalizados, os oprimidos, os descartados, os pobres, os marginalizados, os ignorantes, os doentes, os degradados pelos grupos dominantes. O Cristo glorioso julgará segundo o amor ao próximo, que consiste em ter socorrido o faminto, o sedento, o estrangeiro, o nu, o doente, o encarcerado, com os quais ele próprio se identifica (cf. Mt 25, 34-36). Para Jesus, o bem feito a cada ser humano, independentemente dos laços de sangue ou de religião, é o único critério de julgamento. O apóstolo Paulo afirma que cada cristão deve comportar-se de acordo com as exigências da dignidade e do respeito pelos direitos de todos os seres humanos (cf. Jo 10,5) Rm 13,8-10), segundo o novo mandamento da caridade (cf. 1 Co 13, 1-13).

13. O desenvolvimento do pensamento cristão estimulou e, posteriormente, acompanhou o progresso da reflexão humana sobre o tema da dignidade. A antropologia cristã clássica, baseada na grande tradição dos Padres da Igreja, pôs em evidência a doutrina do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e o seu papel único na criação. O pensamento cristão medieval, perscrutando criticamente o legado do pensamento filosófico antigo, chegou a uma síntese da noção de pessoa, reconhecendo o fundamento metafísico da sua dignidade, como atestam as seguintes palavras de São Tomás de Aquino: "pessoa significa aquilo que em cada natureza é mais perfeito, aquilo que subsiste na natureza racional". Esta dignidade ontológica, na sua manifestação privilegiada através da ação humana livre, foi mais tarde sublinhada sobretudo pelo humanismo cristão do Renascimento. Mesmo na visão de pensadores modernos como Descartes e Kant, que questionaram alguns dos fundamentos da antropologia cristã tradicional, os ecos da Revelação podem ser fortemente percebidos. Partindo de reflexões filosóficas mais recentes sobre o estatuto da subjetividade teórica e prática, a reflexão cristã foi depois acentuando a profundidade do conceito de dignidade, chegando no século XX a uma perspetiva original, como a do personalismo. Esta perspetiva não só retoma a questão da subjetividade, mas aprofunda-a no sentido da intersubjetividade e das relações que ligam as pessoas humanas entre si. A abordagem antropológica cristã e contemporânea também se enriqueceu com o pensamento proveniente desta última visão. 

Os tempos de defesa dos fracos e dos necessitados: "Protegei os desamparados e os órfãos, fazei justiça aos humildes e aos necessitados, defendei os pobres e os indigentes, livrai-os das mãos dos culpados" (Sl 82,3-4). 

Hora atual 

14. Hoje em dia, o termo "dignidade" é sobretudo utilizado para sublinhar o carácter único da pessoa humana, incomensurável em relação a todos os outros seres do universo. Neste contexto, compreende-se a forma como o termo dignidade é utilizado na Declaração das Nações Unidas de 1948, que fala da "dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana". Só este carácter inalienável da dignidade humana permite falar de direitos humanos. 

15. Para esclarecer melhor o conceito de dignidade, é importante notar que a dignidade não é concedida à pessoa por outros seres humanos, com base em certos dons e qualidades, para que possa eventualmente ser retirada. Se a dignidade fosse concedida à pessoa por outros seres humanos, então seria dada de forma condicional e alienável, e o próprio significado da dignidade (por mais digna de grande respeito que seja) estaria exposto ao risco de ser abolido. Na realidade, a dignidade é intrínseca à pessoa, não é conferida a posteriori, é anterior a qualquer reconhecimento e não pode ser perdida. Por conseguinte, todos os seres humanos possuem a mesma dignidade intrínseca, independentemente do facto de serem ou não capazes de a exprimir adequadamente. 

16. É por isso que o Concílio Vaticano II fala da "excelsa dignidade da pessoa humana, da sua superioridade sobre todas as coisas e dos seus direitos e deveres universais e invioláveis". Como recorda o incipit da Declaração conciliar Dignitatis Humanae, "os homens do nosso tempo estão cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana, e cresce o número daqueles que exigem que os homens, nas suas acções, gozem e usem o seu juízo responsável e a sua liberdade, guiados por uma consciência de dever e não movidos pela coação". Esta liberdade de pensamento e de consciência, tanto individual como colectiva, baseia-se no reconhecimento da dignidade humana "tal como é conhecida pela palavra revelada de Deus e pela própria razão natural". O mesmo magistério eclesial amadureceu, cada vez mais, o significado desta dignidade, juntamente com as exigências e implicações que lhe estão associadas, chegando à compreensão de que a dignidade de cada ser humano é tal para além de todas as circunstâncias.

2. A Igreja proclama, promove e torna-se garante da dignidade humana. 

17. A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição ou qualidade de vida. Esta proclamação baseia-se numa tríplice convicção que, à luz da fé cristã, confere um valor incomensurável à dignidade humana e reforça as suas exigências intrínsecas. 

Uma imagem indelével de Deus 

18. Antes de mais, segundo a Revelação, a dignidade da pessoa humana deriva do amor do seu Criador, que lhe imprimiu os traços indeléveis da sua imagem (cf. Gn 1, 26), chamando-a a conhecê-Lo, a amá-Lo e a viver numa relação de aliança com o próprio Deus e de fraternidade, justiça e paz com todos os outros homens e mulheres. Nesta visão, a dignidade não se refere apenas à alma, mas à pessoa como unidade inseparável e, portanto, inerente também ao seu corpo, que participa, a seu modo, da imagem de Deus da pessoa humana e é também chamado a participar da glória da alma na bem-aventurança divina. 

Cristo eleva a dignidade do homem 

19. Uma segunda convicção provém do facto de a dignidade da pessoa humana ter sido revelada em toda a sua plenitude quando o Pai enviou o seu Filho que assumiu plenamente a existência humana: "o Filho de Deus, no mistério da Encarnação, confirmou a dignidade do corpo e da alma que constituem o ser humano". Assim, ao unir-se de certo modo a cada ser humano através da sua encarnação, Jesus Cristo confirmou que cada ser humano possui uma dignidade inestimável, pelo simples facto de pertencer à mesma comunidade humana, e que esta dignidade nunca poderá ser perdida. Ao proclamar que o Reino de Deus pertence aos pobres, aos humildes, aos desprezados, aos que sofrem no corpo e no espírito; ao curar todo o tipo de doenças e enfermidades, mesmo as mais desumanizantes como a lepra; ao afirmar que o que é feito a estas pessoas é feito a Ele, porque Ele está presente nestas pessoas, Jesus trouxe a grande novidade do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, e também, e sobretudo, daqueles que eram qualificados como "indignos". Este novo princípio da história da humanidade, segundo o qual o ser humano é tanto mais "digno" de respeito e de amor quanto mais fraco, miserável e sofredor for, a ponto de perder a sua própria "figura" humana, mudou o rosto do mundo, dando origem a instituições que cuidam de pessoas em condições desumanas: recém-nascidos abandonados, órfãos, idosos solitários, doentes mentais, pessoas com doenças incuráveis ou malformações graves e pessoas que vivem na rua. 

Uma vocação à plenitude da dignidade 

20. A terceira convicção diz respeito ao destino último do ser humano: após a criação e a encarnação, a ressurreição de Cristo revela-nos um outro aspeto da dignidade humana. De facto, "a razão mais alta da dignidade humana consiste na vocação do homem à união com Deus", destinada a durar para sempre. Assim, "a dignidade [da vida humana] está ligada não só à sua origem, à sua origem divina, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no seu conhecimento e no seu amor". À luz desta verdade, Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: "o homem que vive" é "a glória de Deus", mas "a vida do homem consiste na visão de Deus"". 

21. Por conseguinte, a Igreja crê e afirma que todos os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus e recriados no Filho feito homem, crucificado e ressuscitado, são chamados a crescer sob a ação do Espírito Santo para refletir a glória do Pai, à sua imagem, participando na vida eterna (cf. Jo 10, 15-16.17.22-24; 2 Cor 3, 18; Ef 1, 3-14). De facto, "a Revelação [...] manifesta a dignidade da pessoa humana em toda a sua plenitude". 

Um compromisso com a própria liberdade 

22. Embora cada ser humano possua, desde o início da sua existência, uma dignidade inalienável e intrínseca, como dom irrevogável, cabe à sua escolha livre e responsável exprimi-la e manifestá-la em plenitude ou maculá-la. Alguns Padres da Igreja - como Santo Ireneu ou São João Damasceno - estabeleceram uma distinção entre a imagem e a semelhança de que fala o Génesis, permitindo assim uma visão dinâmica da própria dignidade humana: a imagem de Deus é confiada à liberdade do ser humano para que, sob a orientação e a ação do Espírito, a sua semelhança com Deus cresça e cada pessoa atinja a sua máxima dignidade. Cada pessoa é chamada a manifestar, no plano existencial e moral, o horizonte ontológico da sua dignidade, na medida em que, com a sua própria liberdade, se orienta para o verdadeiro bem, como resposta ao amor de Deus. Assim, na medida em que é criada à imagem de Deus, por um lado, a pessoa humana nunca perde a sua dignidade e nunca deixa de ser chamada a abraçar livremente o bem; por outro lado, na medida em que a pessoa humana responde ao bem, a sua dignidade pode manifestar-se, crescer e amadurecer livremente, de forma dinâmica e progressiva. Isto significa que o ser humano deve também esforçar-se por viver de acordo com a sua dignidade. Compreende-se, portanto, em que sentido o pecado pode ferir e obscurecer a dignidade humana como um ato contrário a ela, mas ao mesmo tempo nunca pode apagar o facto de o ser humano ser criado à imagem de Deus. A fé, portanto, contribui decisivamente para ajudar a razão na sua perceção da dignidade humana, e para aceitar, consolidar e esclarecer os seus traços essenciais, como salientou Bento XVI: "sem a ajuda correctiva da religião, a razão pode também ser vítima de distorções, como quando é manipulada por ideologias ou aplicada de forma parcial em detrimento da plena consideração da dignidade da pessoa humana. Foi este abuso da razão que esteve na origem do tráfico de escravos e de muitos outros males sociais, nomeadamente da difusão das ideologias totalitárias do século XX". 

3. A dignidade, fundamento dos direitos e deveres do Homem 

23. Como já recordou o Papa Francisco, "na cultura moderna, a referência mais próxima do princípio da dignidade inalienável da pessoa é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que São João Paulo II definiu como "um marco no longo e difícil caminho do género humano" e como "uma das mais altas expressões da consciência humana". Para resistir às tentativas de alterar ou eliminar o significado profundo desta Declaração, vale a pena recordar alguns princípios essenciais que devem ser sempre respeitados. 

Respeito incondicional pela dignidade humana 

24. Em primeiro lugar, embora haja uma crescente consciencialização para a questão da dignidade humana, existem ainda hoje muitos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado. Alguns propõem que é melhor usar o termo "dignidade pessoal" (e direitos "da pessoa") em vez de "dignidade humana" (e direitos "do homem"), porque entendem a pessoa apenas como "um ser capaz de raciocinar". Consequentemente, defendem que a dignidade e os direitos são inferidos da capacidade de conhecimento e de liberdade, de que nem todos os seres humanos são dotados. Assim, o nascituro não teria dignidade pessoal, nem o idoso incapacitado, nem o deficiente mental. A Igreja, pelo contrário, insiste no facto de que a dignidade de cada pessoa humana, precisamente porque é intrínseca, permanece "para além de todas as circunstâncias", e o seu reconhecimento não pode de modo algum depender do juízo sobre a capacidade de compreender e agir livremente. Caso contrário, a dignidade não seria, enquanto tal, inerente à pessoa, independente do seu condicionamento e, por conseguinte, merecedora de respeito incondicional. Só o reconhecimento da dignidade intrínseca do ser humano, que nunca pode ser perdida, desde a conceção até à morte natural, pode garantir a esta qualidade um fundamento inviolável e seguro. Sem qualquer referência ontológica, o reconhecimento da dignidade humana oscilaria à mercê de apreciações diversas e arbitrárias. A única condição, portanto, para que se possa falar de dignidade como inerente à pessoa é que ela pertença à espécie humana, de modo que "os direitos da pessoa são direitos humanos". 

Uma referência objetiva para a liberdade humana 

25. Em segundo lugar, o conceito de dignidade humana é também por vezes utilizado de forma abusiva para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais são frequentemente contrários aos originalmente definidos e, não raro, em contradição com o direito fundamental à vida, como se fosse necessário garantir a capacidade de exprimir e realizar cada preferência individual ou desejo subjetivo. A dignidade é então identificada com uma liberdade isolada e individualista, que procura impor como "direitos", garantidos e financiados pela comunidade, certos desejos e preferências subjectivos. Mas a dignidade humana não pode ser baseada em padrões meramente individuais, nem pode ser identificada apenas com o bem-estar psicofísico do indivíduo. Pelo contrário, a defesa da dignidade humana assenta nas exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem da arbitrariedade individual nem do reconhecimento social. Os deveres que decorrem do reconhecimento da dignidade dos outros, e os correspondentes direitos que daí derivam, têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo assente na natureza humana comum. Sem esta referência objetiva, o conceito de dignidade fica, de facto, sujeito às mais diversas arbitrariedades e aos interesses do poder. 

A estrutura relacional da pessoa humana 

26. A dignidade da pessoa humana, à luz do carácter relacional da pessoa, ajuda também a superar a perspetiva redutora de uma liberdade autorreferencial e individualista, que procura criar os seus próprios valores sem ter em conta as normas objectivas do bem e a relação com os outros seres vivos. De facto, corre-se cada vez mais o risco de limitar a dignidade humana à capacidade de tomar decisões discricionárias sobre si mesmo e sobre o próprio destino, independentemente do dos outros, sem ter em conta a pertença à comunidade humana. Numa tal conceção errónea da liberdade, os deveres e os direitos não podem reconhecer-se mutuamente para se cuidarem uns dos outros. Na realidade, como nos recorda São João Paulo II, a liberdade é colocada "ao serviço da pessoa e da sua realização através do dom de si e do acolhimento dos outros". No entanto, quando a liberdade é absolutizada num sentido individualista, esvazia-se do seu conteúdo original e contradiz a sua própria vocação e dignidade". 

27. A dignidade do ser humano inclui assim também a capacidade, inerente à própria natureza humana, de assumir obrigações para com os outros.

28. A diferença entre o ser humano e os outros seres vivos, sublinhada pelo conceito de dignidade, não deve fazer esquecer a bondade dos outros seres criados, que existem não só em relação ao ser humano, mas também com o seu valor próprio e, portanto, como dons que lhe foram confiados para serem salvaguardados e alimentados. Assim, enquanto o conceito de dignidade é reservado ao ser humano, a bondade criatural do resto do cosmos deve ser afirmada ao mesmo tempo. Como sublinhou o Papa Francisco: "Precisamente por causa da sua dignidade única e porque é dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas [...]: "Cada criatura possui a sua própria bondade e perfeição [...] As várias criaturas, apreciadas no seu próprio ser, reflectem, cada uma a seu modo, um raio da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. Por isso, o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, a fim de evitar um uso desordenado das coisas". Além disso, "hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível sustentar um "antropocentrismo situado". Ou seja, reconhecer que a vida humana é incompreensível e insustentável sem as outras criaturas". Nesta perspetiva, "não é irrelevante para nós que tantas espécies estejam a desaparecer, que a crise climática esteja a pôr em perigo a vida de tantos seres". De facto, faz parte da dignidade do homem cuidar do ambiente, tendo em conta, em particular, a ecologia humana que preserva a sua própria existência. 

A libertação do ser humano dos condicionamentos morais e sociais. 

29. Estes pressupostos básicos, por mais necessários que sejam, não são suficientes para garantir o crescimento da pessoa em coerência com a sua dignidade. Apesar de "Deus ter criado o homem racional, conferindo-lhe a dignidade de pessoa dotada de iniciativa e de controlo sobre as suas acções" em vista do bem, o livre arbítrio prefere muitas vezes o mal ao bem. É por isso que a liberdade humana, por sua vez, precisa de ser libertada. Na carta aos Gálatas, "para a liberdade, Cristo nos libertou" (Gl 5,1), São Paulo recorda a tarefa própria de cada cristão, sobre cujos ombros repousa uma responsabilidade de libertação que se estende ao mundo inteiro (cf. Rm 8,19ss). Trata-se de uma libertação que, a partir do coração de cada um, é chamada a difundir e a manifestar a sua força humanizadora em todas as relações. 

30. A liberdade é um dom maravilhoso de Deus. Mesmo quando nos atrai com a sua graça, Deus fá-lo de tal modo que a nossa liberdade nunca é violada. Seria, portanto, um grave erro pensar que, longe de Deus e da sua ajuda, podemos ser mais livres e, por conseguinte, sentirmo-nos mais dignos. Separada do seu Criador, a nossa liberdade só pode enfraquecer e escurecer. O mesmo se passa se a liberdade for imaginada como independente de qualquer referência que não seja ela própria e se qualquer relação com uma verdade anterior for entendida como uma ameaça. Como consequência, o respeito pela liberdade e pela dignidade dos outros também falhará. Assim o explica o Papa Bento XVI: "uma vontade que se crê radicalmente incapaz de procurar a verdade e o bem não tem razões e motivos objectivos para agir, mas apenas aqueles que provêm dos seus interesses momentâneos e passageiros; não tem uma "identidade" a guardar e a construir através de escolhas verdadeiramente livres e conscientes. Não pode, portanto, reclamar o respeito de outras "vontades", também elas desligadas do seu ser mais profundo, e que podem fazer prevalecer outras "razões" ou mesmo nenhuma "razão". A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para a convivência pacífica é, na realidade, a origem da divisão e da negação da dignidade do ser humano". 

31. Além disso, seria irrealista afirmar uma liberdade abstrata, livre de qualquer condicionamento, contexto ou limite. Pelo contrário, "o bom exercício da liberdade pessoal exige determinadas condições económicas, sociais, jurídicas, políticas e culturais", que muitas vezes não estão reunidas. Neste sentido, podemos dizer que uns são mais "livres" do que outros. O Papa Francisco insistiu neste ponto em particular: "Alguns nascem em famílias abastadas, recebem uma boa educação, crescem bem alimentados ou possuem capacidades naturalmente excecionais. Não precisarão certamente de um Estado ativo e exigirão apenas a liberdade. Mas é óbvio que a mesma regra não se aplica a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num agregado familiar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de má qualidade e com poucas hipóteses de cura adequada para as suas doenças. Se a sociedade se reger prioritariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para eles, e a fraternidade será apenas mais uma expressão romântica". Por isso, é indispensável compreender que "a libertação da injustiça promove a liberdade e a dignidade humana" a todos os níveis e em todas as relações das acções humanas. Para que a verdadeira liberdade seja possível, "temos de trazer a dignidade humana de volta ao centro e construir sobre esse pilar as estruturas sociais alternativas de que necessitamos". Do mesmo modo, a liberdade é frequentemente obscurecida por numerosas condicionantes psicológicas, históricas, sociais, educativas e culturais. A liberdade real e histórica precisa sempre de ser "libertada". E o direito fundamental à liberdade religiosa também deve ser reafirmado. 

32. Ao mesmo tempo, é evidente que a história da humanidade mostra progressos na compreensão da dignidade e da liberdade do homem, mas não sem sombras e perigos de retrocesso. Testemunho disso é a aspiração crescente - também por influência cristã, que continua a ser um fermento mesmo numa sociedade cada vez mais secularizada - de erradicar o racismo, a escravatura e a marginalização das mulheres, das crianças, dos doentes e dos deficientes. Mas este árduo caminho está longe de estar concluído. 

4. Algumas violações graves da dignidade humana 

33. À luz das reflexões feitas até agora sobre a centralidade da dignidade humana, esta última secção da Declaração aborda algumas violações concretas e graves da dignidade humana. Fá-lo no espírito do magistério da Igreja, que encontrou a sua plena expressão no magistério dos últimos Papas, como já foi recordado. Por exemplo, o Papa Francisco, por um lado, não se cansa de apelar ao respeito pela dignidade humana: "Todo o ser humano tem o direito de viver com dignidade e de se desenvolver integralmente, e este direito fundamental não pode ser negado por nenhum país. Tem-no mesmo que seja ineficaz, mesmo que nasça ou cresça com limitações. Porque isso não põe em causa a sua imensa dignidade de pessoa humana, que não se baseia nas circunstâncias mas no valor do seu ser. Quando este princípio elementar não é salvaguardado, não há futuro nem para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade. Por outro lado, não deixa de chamar a atenção de todos para as violações concretas da dignidade humana no nosso tempo, apelando a todos e a cada um de nós para um abalo de responsabilidade e um compromisso ativo. 

34. Ao assinalar algumas das numerosas violações da dignidade humana no nosso mundo contemporâneo, podemos recordar o que o Concílio Vaticano II ensinou a este respeito. Há que reconhecer que se opõe à dignidade humana "tudo o que atenta contra a vida - o homicídio de qualquer género, o genocídio, o aborto, a eutanásia e até o suicídio voluntário". É também contra a nossa dignidade "tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como a mutilação, a tortura moral ou física, as tentativas sistemáticas de dominar a mente dos outros". E, finalmente, "tudo o que ofende a dignidade humana, como as condições de vida sub-humanas, a detenção arbitrária, a deportação, a escravatura, a prostituição, o tráfico de mulheres e de crianças, ou as condições de trabalho degradantes que reduzem o trabalhador à condição de mero instrumento de lucro, sem respeito pela liberdade e responsabilidade da pessoa humana". É igualmente necessário mencionar aqui a questão da pena de morte: esta última viola igualmente a dignidade inalienável de todo o ser humano, independentemente das circunstâncias. Pelo contrário, há que reconhecer que "a firme rejeição da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de cada ser humano e aceitar que ele ou ela tem um lugar neste universo. Porque, se eu não o nego a

36. Um dos fenómenos que mais contribui para a negação da dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. Como já sublinhou São João Paulo II, "uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo consiste precisamente nisto: que relativamente poucos possuem muito e muitos não possuem quase nada. É a injustiça da má distribuição dos bens e serviços originalmente destinados a todos". Além disso, seria ilusório fazer uma distinção superficial entre "países ricos" e "países pobres". Bento XVI já reconheceu que "a riqueza mundial está a crescer em termos absolutos, mas também aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais são empobrecidas e nascem novas formas de pobreza. Nas zonas mais pobres, alguns grupos gozam de uma espécie de superdesenvolvimento consumista e esbanjador, que contrasta inaceitavelmente com situações persistentes de miséria desumanizante. Continua a existir "o escândalo das disparidades dolorosas", onde a dignidade dos pobres é duplamente negada, quer pela falta de recursos disponíveis para satisfazer as suas necessidades básicas, quer pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem ao seu lado. 

37. Portanto, com o Papa Francisco, devemos concluir que "a riqueza aumentou, mas com desigualdade, e por isso o que acontece é que "nascem novas formas de pobreza". Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios de outros tempos que não podem ser comparados com a realidade atual". Como resultado, a pobreza alastra "de múltiplas formas, como na obsessão de reduzir os custos do trabalho, que não se dá conta das graves consequências que isso provoca, porque o desemprego que se produz tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza". Entre estes "efeitos destrutivos do império do dinheiro", há que reconhecer que "não há pior pobreza do que aquela que priva as pessoas do trabalho e da dignidade do trabalho". Se algumas pessoas nascem num país ou numa família onde têm menos oportunidades de desenvolvimento, temos de reconhecer que isso está em contradição com a sua dignidade, que é exatamente a mesma que a de quem nasce numa família rica ou num país rico. Todos somos responsáveis, ainda que em graus diferentes, por esta desigualdade gritante. 

A guerra 

38. Outro drama que nega a dignidade humana é o provocado pela guerra, hoje como sempre: "as guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas outras afrontas à dignidade humana [...] "multiplicam-se dolorosamente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumirem as formas daquilo a que eu poderia chamar uma "terceira guerra mundial por etapas"". Com o seu rasto de destruição e de dor, a guerra é um atentado à dignidade humana a curto e a longo prazo: "embora reafirmando o direito inalienável à legítima defesa, bem como a responsabilidade de proteger aqueles cuja existência está ameaçada, temos de admitir que a guerra é sempre uma "derrota da humanidade". Nenhuma guerra vale as lágrimas de uma mãe que viu o seu filho mutilado ou morto; nenhuma guerra vale a perda da vida, mesmo de uma única pessoa humana, um ser sagrado, criado à imagem e semelhança do Criador; nenhuma guerra vale o envenenamento da nossa Casa Comum; e nenhuma guerra vale o desespero daqueles que são forçados a deixar a sua pátria e são privados, de um momento para o outro, da sua casa e de todos os laços familiares, de amizade, sociais e culturais que foram construídos, por vezes ao longo de gerações". Todas as guerras, pelo facto de contradizerem a dignidade humana, são "conflitos que não resolvem os problemas, antes os aumentam". Isto é ainda mais grave no nosso tempo, em que se tornou normal a morte de tantos civis inocentes fora do campo de batalha. 

39. Por conseguinte, ainda hoje a Igreja não pode deixar de fazer suas as palavras dos Papas, repetindo com São Paulo VI: "Nunca mais a guerra! Nunca mais a guerra!", e pedindo, com São João Paulo II, "em nome de Deus e em nome da humanidade: Não mateis! Não preparem os homens para a destruição e o extermínio! Pensem nos vossos irmãos e irmãs que sofrem a fome e a miséria! Respeitem a dignidade e a liberdade de cada um deles! Este é o grito da Igreja e de toda a humanidade, especialmente no nosso tempo. Por fim, o Papa Francisco sublinha que "não podemos pensar na guerra como uma solução, porque os riscos serão provavelmente sempre maiores do que a hipotética utilidade que lhe é atribuída. Perante esta realidade, é muito difícil hoje sustentar os critérios racionais desenvolvidos noutros séculos para falar de uma possível "guerra justa". Nunca mais a guerra! Como a humanidade cai muitas vezes nos mesmos erros do passado, "para construir a paz, é necessário deixar para trás a lógica da legitimidade da guerra". A relação íntima entre fé e dignidade humana torna contraditório basear a guerra em convicções religiosas: "aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não estão a seguir o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião".

Trabalho migrante 

40. Os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. Não só a sua dignidade é negada nos seus países, como a sua própria vida é posta em risco, porque não têm meios para constituir família, trabalhar ou alimentar-se. Quando chegam aos países que os deveriam acolher, "não são considerados dignos de participar na vida social como qualquer outra pessoa, e esquece-se que têm a mesma dignidade intrínseca que qualquer outra pessoa. [...] Nunca se dirá que não são humanos, mas na prática, pelas decisões e pela forma como são tratados, fica expresso que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos". Por isso, é sempre urgente recordar que "cada migrante é uma pessoa humana que, como tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos e em todas as situações". O seu acolhimento é uma forma importante e significativa de defender "a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião". 

Tráfico de pessoas 

41. O tráfico de seres humanos deve também ser considerado uma grave violação da dignidade humana. Não é novidade, mas o seu desenvolvimento assume dimensões trágicas visíveis para todos, e o Papa Francisco denunciou-o em termos particularmente fortes: "Reafirmo que o "tráfico de seres humanos" é uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se consideram civilizadas. Os exploradores e os clientes, a todos os níveis, devem fazer um sério exame de consciência diante de si mesmos e diante de Deus! A Igreja renova hoje o seu forte apelo a defender sempre a dignidade e a centralidade de cada pessoa, no respeito dos direitos fundamentais, como sublinha a sua doutrina social, e apela a que os direitos sejam verdadeiramente alargados onde não são reconhecidos a milhões de homens e mulheres em todos os continentes. Num mundo em que se fala tanto de direitos, quantas vezes a dignidade humana é, de facto, ultrajada! Num mundo onde se fala tanto de direitos, parece que o dinheiro é a única coisa que tem direitos. Caros irmãos e irmãs, vivemos num mundo onde o dinheiro domina. Vivemos num mundo, numa cultura onde reina o fetichismo do dinheiro". 

42. Por estas razões, a Igreja e a humanidade não devem abandonar a luta contra fenómenos como "o comércio de órgãos e tecidos humanos, a exploração sexual de crianças, o trabalho escravo, incluindo a prostituição, o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo e a criminalidade organizada internacional. Tal é a dimensão destas situações e o peso que estão a ter em vidas inocentes, que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declaratório que tem um efeito apaziguador nas consciências. Temos de assegurar que as nossas instituições sejam verdadeiramente eficazes na luta contra todos estes flagelos. Perante formas tão diversas e brutais de negação da dignidade humana, temos de estar cada vez mais conscientes de que "o tráfico de seres humanos é um crime contra a humanidade". Nega a dignidade humana em substância, pelo menos de duas maneiras: "desfigura a humanidade da vítima, ofendendo a sua liberdade e a sua dignidade. Mas, ao mesmo tempo, desumaniza aqueles que o praticam". 

Abuso sexual 

43. A profunda dignidade inerente ao ser humano na sua totalidade de mente e corpo permite-nos também compreender porque é que todo o abuso sexual deixa marcas profundas no coração daqueles que o sofrem: são, de facto, feridos na sua dignidade humana. É "um sofrimento que pode durar toda a vida e que nenhum arrependimento pode remediar". Este fenómeno, muito difundido na sociedade, atinge também a Igreja e constitui um sério obstáculo à sua missão". Daí o seu empenhamento inabalável em pôr fim a todas as formas de abuso, começando pelo interior. 

Violência contra as mulheres 

44. A violência contra as mulheres é um escândalo mundial cada vez mais reconhecido. Embora a igual dignidade das mulheres seja reconhecida em palavras, nalguns países as desigualdades entre mulheres e homens são muito graves e, mesmo nos países mais desenvolvidos e democráticos, a realidade social concreta testemunha que as mulheres não são frequentemente reconhecidas como tendo a mesma dignidade que os homens. O Papa Francisco sublinha este facto quando afirma que "a organização das sociedades em todo o mundo está ainda longe de refletir claramente que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e os mesmos direitos que os homens. Afirma-se uma coisa com palavras, mas as decisões e a realidade gritam outra mensagem. É um facto que "são duplamente pobres as mulheres que sofrem situações de exclusão, de abuso e de violência, porque são frequentemente menos capazes de defender os seus direitos". 

45. São João Paulo II já reconhecia que "há ainda muito a fazer para que o facto de ser mulher e mãe não implique discriminação. É urgente alcançar em toda a parte uma efectiva igualdade dos direitos humanos e, portanto, salário igual para trabalho igual, proteção da mãe-trabalhadora, progressão justa na carreira, igualdade dos cônjuges no direito de família, reconhecimento de tudo o que diz respeito aos direitos e deveres do cidadão num regime democrático". As desigualdades nestes domínios são formas diferentes de violência. Recordou ainda que "é tempo de condenar com determinação, utilizando os meios legislativos de defesa adequados, as formas de violência sexual que frequentemente atingem as mulheres. Em nome do respeito pela pessoa, não podemos também deixar de denunciar a generalizada cultura hedonista e comercial que promove a exploração sistemática da sexualidade, levando as raparigas, ainda muito jovens, a cair em ambientes corruptos e a fazer um uso mercenário do seu corpo". Entre as formas de violência exercidas contra as mulheres, como não mencionar a coação ao aborto, que afecta tanto a mãe como o filho, tantas vezes para satisfazer o egoísmo dos homens? E como não mencionar também a prática da poligamia que - como nos recorda o Catecismo da Igreja Católica - é contrária à igual dignidade da mulher e do homem e é também contrária ao "amor conjugal que é único e exclusivo"? 

46. Neste contexto de violência contra as mulheres, o fenómeno do feminicídio nunca será suficientemente condenado. Nesta frente, o compromisso de toda a comunidade internacional deve ser sólido e concreto, como reiterou o Papa Francisco: "O amor a Maria deve ajudar-nos a gerar atitudes de reconhecimento e gratidão para com as mulheres, para com as nossas mães e avós que são um bastião de vida nas nossas cidades. São elas que, quase sempre em silêncio, levam a vida por diante. É o silêncio e a força da esperança. Obrigado pelo vosso testemunho [...] mas olhando para as mães e as avós, quero convidar-vos a lutar contra uma praga que afecta o nosso continente americano: os numerosos casos de feminicídio. E por detrás de tantos muros. Convido-vos a lutar contra esta fonte de sofrimento, apelando à promoção de uma legislação e de uma cultura de repúdio de todas as formas de violência". 

Aborto 

47. A Igreja não cessa de recordar que "a dignidade de cada ser humano é intrínseca e vale desde o momento da conceção até à morte natural. É precisamente a afirmação desta dignidade que constitui o pressuposto indispensável para a proteção de uma existência pessoal e social, e também a condição necessária para a realização da fraternidade e da amizade social entre todos os povos da terra". Com base neste valor intangível da vida humana, o magistério da Igreja sempre se pronunciou contra o aborto. A este propósito, São João Paulo II escreve: "Entre todos os crimes que o homem pode cometer contra a vida, o aborto provocado tem características que o tornam particularmente grave e ignominioso [...] Hoje, porém, a perceção da sua gravidade enfraqueceu progressivamente na consciência de muitos. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei é um sinal claro de uma crise muito perigosa do sentido moral, que se torna cada vez mais incapaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Perante uma situação tão grave, mais do que nunca é necessária a coragem de enfrentar a verdade e de chamar as coisas pelo seu próprio nome, sem ceder a compromissos de conveniência ou à tentação do auto-engano. A este respeito, ressoa categoricamente a reprovação do Profeta: "Ai daqueles que chamam bem ao mal e mal ao bem; que dão as trevas à luz e a luz às trevas" (Is 5, 20). É precisamente no caso do aborto que se assiste à difusão de uma terminologia ambígua, como "interrupção da gravidez", que tende a esconder a sua verdadeira natureza e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este mesmo fenómeno linguístico seja um sintoma de um mal-estar das consciências. Mas não há palavras que possam mudar a realidade das coisas: o aborto provocado é a eliminação deliberada e direta, seja qual for a sua forma, de um ser humano na fase inicial da sua existência, desde a conceção até ao nascimento". As crianças que vão nascer "são as mais indefesas e inocentes de todas, a quem hoje se nega a sua dignidade humana para se fazer delas o que se quiser, tirando-lhes a vida e promovendo uma legislação para que ninguém o possa impedir". Por isso, deve afirmar-se com toda a força e clareza, mesmo no nosso tempo, que "esta defesa da vida por nascer está intimamente ligada à defesa de todos os direitos humanos. Ela pressupõe a convicção de que o ser humano é sempre sagrado e inviolável, em todas as situações e em todas as fases do seu desenvolvimento. É um fim em si mesmo e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se esta convicção cair, não restarão bases sólidas e permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficarão sempre sujeitos às conveniências circunstanciais dos poderosos no poder. A razão, por si só, é suficiente para reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas se a olharmos também na perspetiva da fé, "toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama vingança diante de Deus e configura-se como uma ofensa ao Criador do homem". O empenhamento generoso e corajoso de Santa Teresa de Calcutá na defesa de cada pessoa concebida merece ser aqui mencionado. 

Barriga de aluguer 

48. A Igreja também se posiciona contra a prática da maternidade de substituição, em que a criança, imensamente digna, é transformada num mero objeto. A este respeito, as palavras do Papa Francisco são muito claras: "o caminho para a paz exige o respeito pela vida, por cada vida humana, a começar pela do nascituro no ventre materno, que não pode ser suprimida nem transformada num produto comercial. A este respeito, considero deplorável a prática da chamada maternidade de substituição, que ofende gravemente a dignidade da mulher e da criança e se baseia na exploração das necessidades materiais da mãe. Uma criança é sempre uma dádiva e nunca o objeto de um contrato. Apelo, pois, à comunidade internacional para que se empenhe numa proibição universal desta prática. 

49. A prática da maternidade de substituição viola, antes de mais, a dignidade da criança. Com efeito, toda a criança, desde o momento da conceção e do nascimento, e depois, à medida que cresce e se torna adulta, possui uma dignidade intangível que se exprime claramente, embora de forma única e diferenciada, em cada fase da sua vida. A criança tem, portanto, direito, em virtude da sua dignidade inalienável, a ter uma origem plenamente humana e não artificialmente induzida, e a receber o dom de uma vida que manifeste, ao mesmo tempo, a dignidade de quem a dá e de quem a recebe. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana implica também o reconhecimento da dignidade da união conjugal e da procriação humana em todas as suas dimensões. Neste sentido, o desejo legítimo de ter um filho não pode transformar-se num "direito a um filho" que não respeite a dignidade do próprio filho enquanto destinatário do dom gratuito da vida.  

50. A prática da maternidade de substituição viola, ao mesmo tempo, a dignidade da própria mulher, que a ela é forçada ou que a ela se submete livremente. Com esta prática, a mulher dissocia-se da criança que cresce nela e torna-se um mero meio ao serviço do lucro ou do desejo arbitrário de outros. Isto está em total contraste com a dignidade fundamental de cada ser humano e com o seu direito a ser sempre reconhecido por si próprio e nunca como um instrumento para outra coisa. 

Eutanásia e suicídio assistido 

51. Há um caso particular de violação da dignidade humana, mais silencioso, mas que está a ganhar muito terreno. Tem a particularidade de utilizar uma conceção errada da dignidade humana para a virar contra a própria vida. Essa confusão, muito comum nos dias de hoje, vem à tona quando se discute a eutanásia. Por exemplo, as leis que reconhecem a possibilidade de eutanásia ou de suicídio assistido são por vezes referidas como "leis de morte com dignidade". Existe uma convicção generalizada de que a eutanásia ou o suicídio assistido são compatíveis com o respeito pela dignidade da pessoa humana. Perante este facto, deve ser fortemente reafirmado que o sofrimento não faz com que o doente perca a dignidade que lhe é intrínseca e inalienável, mas pode tornar-se uma oportunidade para reforçar os laços de pertença mútua e para se tornar mais consciente de como cada pessoa é preciosa para toda a humanidade. 

52. De facto, a dignidade da pessoa doente, em estado crítico ou terminal, exige que todos envidem os esforços adequados e necessários para aliviar o seu sofrimento através de cuidados paliativos apropriados e evitando qualquer exagero terapêutico ou intervenção desproporcionada. Estes cuidados respondem ao "dever constante de compreender as necessidades da pessoa doente: a necessidade de assistência, o alívio da dor, as necessidades emocionais, afectivas e espirituais". Mas esse esforço é totalmente diferente, diferente, até mesmo contrário à decisão de eliminar a própria vida ou a dos outros sob o peso do sofrimento. A vida humana, mesmo na sua condição dolorosa, é portadora de uma dignidade que deve ser sempre respeitada, que não pode ser perdida e cujo respeito permanece incondicional. De facto, não há condições sem as quais a vida humana deixa de ser digna e pode, portanto, ser suprimida: "a vida tem a mesma dignidade e o mesmo valor para cada pessoa: o respeito pela vida dos outros é o mesmo que é devido à sua própria existência". Ajudar o suicida a suicidar-se é, portanto, uma ofensa objetiva à dignidade da pessoa que o pede, mesmo que satisfaça o seu desejo: "devemos acompanhar a morte, mas não provocar a morte ou ajudar qualquer forma de suicídio. Recordo que o direito de cuidar e de ser cuidado por todos deve ser sempre privilegiado, para que os mais fracos, nomeadamente os idosos e os doentes, nunca sejam descartados. A vida é um direito, não a morte, que deve ser acolhida, não fornecida. E este princípio ético diz respeito a todos, não apenas aos cristãos ou aos crentes". Como já foi dito, a dignidade de cada pessoa, por mais fraca ou sofredora que seja, implica a dignidade de todos.

O descarte de pessoas com deficiência 

53. Um critério para verificar a atenção efectiva à dignidade de cada pessoa é, naturalmente, a atenção dada aos mais desfavorecidos. Infelizmente, o nosso tempo não se distingue por essa atenção: de facto, está a instalar-se uma cultura do descarte. Para contrariar esta tendência, a condição das pessoas com deficiências físicas ou mentais merece uma atenção e um cuidado especiais. Esta condição de especial vulnerabilidade, tão relevante nos relatos evangélicos, questiona universalmente o que significa ser pessoa humana, precisamente a partir de um estado de deficiência ou incapacidade. A questão da imperfeição humana tem também implicações claras do ponto de vista sócio-cultural, uma vez que, nalgumas culturas, as pessoas com deficiência sofrem por vezes marginalização, se não mesmo opressão, sendo tratadas como verdadeiros "párias". Na realidade, todo o ser humano, qualquer que seja a sua condição de vulnerabilidade, é dotado de dignidade pelo simples facto de ser querido e amado por Deus. Por estas razões, a inclusão e a participação ativa na vida social e eclesial de todos aqueles que, de alguma forma, são marcados pela fragilidade ou pela deficiência devem ser encorajadas na medida do possível. 

54. Numa perspetiva mais ampla, convém recordar que "a caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que está por detrás de todas as acções realizadas a favor dos pobres [...] "preocupar-se com a fragilidade, com a fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da fragilidade significa força e ternura, luta e fecundidade, no meio de um modelo funcionalista e privatista que conduz inexoravelmente a uma "cultura do descarte". [Significa tomar conta do presente na sua situação mais marginal e angustiante, e ser capaz de lhe dar dignidade". Isto gera certamente uma atividade intensa, porque "devemos fazer tudo o que for necessário para salvaguardar a condição e a dignidade da pessoa humana". 

Teoria do género 

55. A Igreja deseja, antes de mais, "reiterar que cada pessoa, independentemente da sua orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, tendo o cuidado de evitar "qualquer sinal de discriminação injusta" e, particularmente, qualquer forma de agressão e violência". Por esta razão, deve ser denunciado como contrário à dignidade humana o facto de, nalguns lugares, não poucas pessoas serem presas, torturadas e mesmo privadas do bem da vida, apenas devido à sua orientação sexual. 

56. Ao mesmo tempo, a Igreja sublinha os elementos críticos decisivos presentes na teoria do género. A este respeito, o Papa Francisco recordou: "o caminho para a paz exige o respeito pelos direitos humanos, segundo a formulação simples mas clara contida na Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo 75º aniversário celebrámos recentemente. Trata-se de princípios racionalmente evidentes e comummente aceites. Infelizmente, nas últimas décadas, as tentativas de introduzir novos direitos, não totalmente compatíveis com os originalmente definidos e nem sempre aceitáveis, deram origem a colonizações ideológicas, entre as quais se destaca a teoria do género, que é extremamente perigosa porque apaga as diferenças na sua pretensão de igualar todos". 

57. No que diz respeito à teoria do género, cuja consistência científica é muito debatida na comunidade dos especialistas, a Igreja recorda que a vida humana, em todas as suas componentes, físicas e espirituais, é um dom de Deus, que deve ser acolhido com gratidão e posto ao serviço do bem. Querer dispor de si mesmo, como prescreve a teoria do género, sem ter em conta esta verdade fundamental da vida humana como dom, não significa outra coisa senão ceder à velha tentação do ser humano de se tornar Deus e entrar em competição com o verdadeiro Deus de amor que nos é revelado no Evangelho.

58. Um segundo aspeto da teoria do género é que ela pretende negar a maior diferença possível entre os seres vivos: a diferença sexual. Esta diferença constitutiva não é apenas a maior que se pode imaginar, mas também a mais bela e a mais poderosa: ela realiza, no casal homem-mulher, a mais admirável reciprocidade e é, portanto, a fonte desse milagre que não pára de nos surpreender, que é a vinda de novos seres humanos ao mundo. 

59. Neste sentido, o respeito pelo próprio corpo e pelo corpo dos outros é essencial face à proliferação e à reivindicação de novos direitos avançados pela teoria do género. Esta ideologia "apresenta uma sociedade sem diferenças de sexo e esvazia o fundamento antropológico da família". É portanto inaceitável que "certas ideologias deste género, que pretendem responder a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurem impor-se como um pensamento único que determina até a educação das crianças". Não se deve ignorar que "o sexo biológico (sexus) e o papel sociocultural do sexo (gender) podem ser distinguidos mas não separados". Por isso, qualquer tentativa de esconder a referência à diferença sexual evidente entre homens e mulheres deve ser rejeitada: "não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências, onde há elementos biológicos impossíveis de ignorar". Só quando cada pessoa humana pode reconhecer e aceitar esta diferença em reciprocidade é que se pode descobrir plenamente a si própria, a sua dignidade e a sua identidade. 

Mudança de sexo 

60. A dignidade do corpo não pode ser considerada inferior à da pessoa enquanto tal. O Catecismo da Igreja Católica convida-nos expressamente a reconhecer que "o corpo humano participa da dignidade da 'imagem de Deus'". Esta verdade merece ser recordada, sobretudo quando se trata de mudança de sexo. De facto, o ser humano é inseparavelmente composto de corpo e alma, e o corpo é o lugar vivo onde a interioridade da alma se desenvolve e se manifesta, inclusive através da rede de relações humanas. Constituindo o ser da pessoa, a alma e o corpo partilham assim da dignidade que caracteriza todo o ser humano. Neste sentido, é preciso lembrar que o corpo humano participa da dignidade da pessoa, pois é dotado de significados pessoais, especialmente na sua condição sexual. É no corpo, de facto, que cada pessoa se reconhece como gerada por outras, e é através do corpo que um homem e uma mulher podem estabelecer uma relação amorosa capaz de gerar outras pessoas. Sobre a necessidade de respeitar a ordem natural da pessoa humana, o Papa Francisco ensina que "o que é criado precede-nos e deve ser recebido como um dom. Ao mesmo tempo, somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de mais, aceitá-la e respeitá-la tal como foi criada". Por isso, qualquer operação de mudança de sexo, regra geral, corre o risco de pôr em causa a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da conceção. Isto não significa que esteja excluída a possibilidade de uma pessoa afetada por anomalias genitais, que já são evidentes à nascença ou que se desenvolvem mais tarde, poder optar por receber assistência médica com o objetivo de resolver essas anomalias. Neste caso, a operação não constituiria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido. 

Violência digital 

61. O avanço das tecnologias digitais, embora ofereça muitas possibilidades para a promoção da dignidade humana, tende cada vez mais a criar um mundo em que a exploração, a exclusão e a violência estão a aumentar e podem mesmo minar a dignidade da pessoa humana. Basta pensar como é fácil, através destes meios de comunicação, pôr em perigo a boa reputação de qualquer pessoa com notícias falsas e calúnias. Sobre este ponto, o Papa Francisco sublinha que "não é saudável confundir a comunicação com o mero contacto virtual. De facto, o ambiente digital é também um território de solidão, manipulação, exploração e violência, até ao caso extremo da dark web. Os meios digitais podem expor as pessoas ao risco de dependência, isolamento e perda progressiva de contacto com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas. Novas formas de violência são difundidas através das redes sociais, por exemplo, o ciberbullying; a Web é também um canal de difusão de pornografia e de exploração de pessoas para fins sexuais ou através de jogos de azar". E é assim que, onde as possibilidades de ligação aumentam, acontece paradoxalmente que o mundo inteiro se encontra, na realidade, cada vez mais isolado e empobrecido nas relações interpessoais: "na comunicação digital, tudo quer ser mostrado e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que sondam, despem e divulgam, muitas vezes anonimamente. O respeito pelo outro é quebrado e, desta forma, ao mesmo tempo que o desloco, ignoro e mantenho afastado, posso invadir descaradamente a sua vida até ao extremo". Estas tendências representam o lado negro do progresso digital. 

62. Nesta perspetiva, se a tecnologia deve servir a dignidade humana e não prejudicá-la, e se deve promover a paz em vez da violência, a comunidade humana deve ser pró-ativa na abordagem destas tendências, no respeito pela dignidade humana e na promoção do bem: "Neste mundo globalizado, "os meios de comunicação social podem ajudar-nos a sentirmo-nos mais próximos uns dos outros, a perceber um renovado sentido de unidade na família humana e a sermos levados à solidariedade e a um compromisso sério com uma vida mais digna para todos. [...] Podem ajudar-nos nesta tarefa, sobretudo hoje, quando as redes de comunicação humana atingiram níveis de desenvolvimento sem precedentes. Em particular, a Internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é bom, é um dom de Deus. Mas é necessário verificar constantemente se as actuais formas de comunicação nos orientam efetivamente para um encontro generoso, para a procura sincera de toda a verdade, para o serviço, para a proximidade dos últimos, para a tarefa de construir o bem comum". 

Conclusão 

63. No 75º aniversário da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Papa Francisco reiterou que este documento "é como uma estrada mestra, na qual foram dados muitos passos em frente, mas faltam ainda tantos e, por vezes, infelizmente, voltamos para trás. O compromisso com os direitos humanos nunca termina! A este respeito, estou próximo de todos aqueles que, sem proclamações, na vida concreta de cada dia lutam e pagam pessoalmente para defender os direitos daqueles que não contam". 

64. É neste espírito, com a presente Declaração, que a Igreja exorta vivamente a que o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de todas as circunstâncias, seja colocado no centro do empenho pelo bem comum e de toda a ordem jurídica. De facto, o respeito pela dignidade de cada pessoa é a base indispensável para a própria existência de qualquer sociedade que se pretenda fundada no direito justo e não na força do poder. É com base no reconhecimento da dignidade humana que são defendidos os direitos fundamentais do homem, que precedem e sustentam toda a convivência civilizada. 

65. A cada pessoa e, ao mesmo tempo, a cada comunidade humana cabe, portanto, a tarefa da realização concreta e efectiva da dignidade humana, cabendo aos Estados não só protegê-la, mas também garantir as condições necessárias para que ela floresça na promoção integral da pessoa humana: "na atividade política é preciso lembrar que 'para além de todas as aparências, cada pessoa é imensamente sagrada e merece o nosso afeto e a nossa dedicação'". 

66. Também hoje, perante tantas violações da dignidade humana que ameaçam gravemente o futuro da humanidade, a Igreja não cessa de encorajar a promoção da dignidade de cada pessoa humana, independentemente das suas qualidades físicas, psíquicas, culturais, sociais e religiosas. Fá-lo na esperança, certa da força que brota de Cristo ressuscitado, que já levou a dignidade integral de cada homem e mulher à sua plenitude definitiva. Esta certeza torna-se um apelo nas palavras do Papa Francisco a cada um de nós: "Peço a cada pessoa neste mundo que não se esqueça daquela dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar". 

O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao Prefeito abaixo assinado, juntamente com o Secretário da Secção Doutrinal do Dicastério para a Doutrina da Fé, a 25 de março de 2024, aprovou a presente Declaração, decidida na Sessão Ordinária deste Dicastério a 28 de fevereiro de 2024, e ordenou a sua publicação. 

Dado em Roma, no Dicastério para a Doutrina da Fé, no dia 2 de abril de 2024, 19º aniversário da morte de São João Paulo II. 

Víctor Manuel Card. Fernández 

Iniciativas

Dr. Chiclana: "Vamos aprofundar a solidão e o sacerdócio".

A solidão foi considerada por muitos padres como o segundo desafio, depois da vida espiritual, e o principal risco para a sua vida emocional, de acordo com uma investigação efectuada pelo psiquiatra Carlos Chiclana e os seus colaboradores Laura García-Borreguero e Raquel López Hernández. Agora, o Dr. Chiclana confirma um novo estudo de investigação sobre "solidão e sacerdócio".  

Francisco Otamendi-8 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

A solidão foi diagnosticada como um dos grandes males da atualidade, ao ponto de constituir uma epidemia que a Covid-19 acentuou. Era provável que a solidão aparecesse nas primeiras pesquisas do psiquiatra Carlos Chiclana sobre os aspectos afectivos da vida sacerdotal. E assim foi.

O seu estudo 2022/2023 descreveu os "desafios, riscos e oportunidades da vida afectiva do sacerdote", na qual participaram mais de 130 sacerdotes, diáconos e seminaristas de várias dioceses e instituições da Igreja Católica, com 605 respostas abertas e 1039 ideias diferentes classificadas em diferentes temas.

"Fizemos uma pesquisa qualitativa com cinco perguntas abertas sobre os desafios que pareciam mais significativos para a vida afectiva de um padre, os riscos que apreciavam, as oportunidades que viam, o que os ajudava em particular na sua formação sobre a afetividade e o que lhes faltava na formação e que agora sentem que os teria ajudado", explicou à Omnes.

Desafio e risco para a afetividade

O trabalho, que acaba de ser publicado no número de fevereiro da revista Scripta Theologica, foi o resultado de "novas hipóteses de investigação sobre a solidão sentida pelos padres", disse a Dra. Chiclana à Omnes. 

"Referiram-na como um desafio e foi o principal risco referido (para a sua afetividade), mas não sabemos se estavam a referir-se à solidão física pelo isolamento que podem ter, à solidão afectiva por não se sentirem amados, à solidão institucional por falta de apoio, à solidão psicológica por terem um sistema de vinculação inseguro, à solidão pastoral por excesso de tarefas, social ou emocional".

Na mesma entrevista, o psiquiatra assinala também que "pode ser que não estejam a aproveitar a própria solidão do celibatário para cultivar aí a sua relação particular e cúmplice com Deus, uma esfera íntima para O cortejar".

Entre os riscos citados no estudo estão também as limitações psicológicas pessoais, possíveis dependências afectivas ou carências morais. Referem ainda a negligência da vida espiritual pessoal devido a um elevado compromisso de tempo, a excessiva dedicação pastoral e o distanciamento afetivo como estratégia de defesa.

Um estudo específico

Carlos Chiclana anunciou então que "em breve iniciaremos um estudo específico sobre a solidão dos sacerdotes, com a intenção de conhecer melhor o que os preocupa e de propor instrumentos práticos para o resolver". E o estudo está apenas a começar.

Até agora, acrescenta Chiclana, os estudos centrados nos padres encontraram factores de proteção para reduzir esta solidão, tais como viver em comunidade, a própria vida espiritual ser bem cuidada, ter o apoio de outros padres, ter uma boa rede social (amizade geral e com outros padres), cuidar da saúde e poder descansar, entre outros.

Amar tudo a partir da intimidade

Também em janeiro, o médico especialista lançou um livro intitulado "Celibato. Desfruta do teu dom", publicado pela Edições Día Diez. Na sua opinião, olhando para o subtítulo do livro, pode afirmar-se que o celibato, "sendo um dom que permite amar tudo, todos e todas as coisas, deve ser um fator de proteção contra a solidão, porque a vida do celibatário é chamada a ser constantemente habitada por muitas pessoas, sem que nenhuma delas fique na sua "casa interior" ou que você fique exclusivamente em qualquer uma delas".

"No entanto, tem uma proporção de solidão que é necessário tolerar e que, ao mesmo tempo, facilita a tua entrada nessa esfera onde podes estar a sós com Deus, nessa relação espiritual exclusiva". "Tu és um padre, não um treinador, não um trabalhador de uma ONG, não um agente social".

O primeiro estudo recolheu igualmente informações sobre os aspectos que os padres consideravam que faltavam e que teriam sido úteis para o seu desenvolvimento pessoal. Indicaram, por exemplo, que gostariam de ter recebido melhor formação. Outros estavam satisfeitos e não sentiam falta de nada, e alguns teriam apreciado uma melhor atenção à espiritualidade e às necessidades psicológicas.

Quem quiser participar no estudo sobre "solidão e sacerdócio" pode completá-lo digitalizando o seguinte código QR:

O autorFrancisco Otamendi

Mundo

Especialistas e políticos apelam à abolição da maternidade de substituição

A reunião, que contou com representantes do Vaticano e das Nações Unidas e com o apoio de importantes feministas, apelou à proibição de uma prática que viola os direitos fundamentais das mulheres e das crianças.

María Candela Temes-8 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Os líderes da "Declaração de Casablanca" reuniram-se este fim de semana em Roma para continuar a trabalhar para a abolição universal da maternidade de substituição. A conferência de dois dias reuniu políticos, representantes de organizações internacionais, académicos e feministas na capital italiana para trazer para o debate público a forma como a barriga de aluguer viola a dignidade humana.

A conferência foi precedida, na passada quinta-feira, por uma audiência privada do Papa Francisco com os principais organizadores do encontro: o advogado franco-chileno Bernard García Larraín, a jurista uruguaia Sofía Maruri e a porta-voz Olívia MaurelO Romano Pontífice encorajou-os no seu trabalho e convidou-os a não perderem o sentido de humor. O Romano Pontífice encorajou-os no seu trabalho e convidou-os a não perderem o sentido de humor.

A presença de vozes de destaque

O apoio do Vaticano foi confirmado pela presença no congresso de Miroslaw Wachowski, subsecretário da Secção para os Estados e Organizações Internacionais da Secretaria de Estado da Santa Sé, que abriu o encontro com um forte e claro apelo à defesa da dignidade das mulheres e das crianças.

Para além de Monsenhor Wachowski, intervieram Eugenia Roccella, Ministra italiana da Família, do Parto e da Igualdade de Oportunidades, bem como Velina Todorova, membro do Comité dos Direitos da Criança da ONU, e Reem Alsalem, Relatora Especial da ONU para a Violência contra as Mulheres e as Raparigas. Nas suas observações, sublinharam que, embora a barriga de aluguer não esteja regulamentada em muitos países, é necessário abordar os danos que pode causar aos direitos humanos e o risco de comercialização que representa.

Olivia Maurel deu um testemunho comovente e poderoso, no qual partilhou a sua história pessoal, marcada por um passado de depressão, alcoolismo e tentativas de suicídio que só encontrou uma explicação quando descobriu as suas origens e que tinha nascido de uma mulher que não a sua mãe, através da prática da barriga de aluguer. Olivia, casada e mãe de três filhos, tornou-se uma ativista proeminente, apelando aos poderes políticos e às organizações internacionais para que tomem medidas mais fortes para evitar que histórias de dor como a sua se repitam.

A Declaração de Casablanca, que visa um tratado internacional que proíba a barriga de aluguer, procura um apoio transversal a todos os níveis e conseguiu reunir figuras feministas importantes como a sueca Kajsa Ekis Ekman, a alemã Birgit Kelle e a austríaca Eva Maria Bachinger.

O que é a Declaração de Casablanca?

Como salientam os seus promotores, o ".Declaração de Casablanca para a abolição universal da maternidade de substituição", tornado público em Casablanca (Marrocos) a 3 de março de 2023, foi assinado por 100 peritos de 75 nacionalidades. O objetivo deste texto é comprometer os Estados a adoptarem medidas contra a barriga de aluguer em todas as suas formas e modalidades, remuneradas ou não.

O Papa Francisco, na sua discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé a 8 de janeiro, foi categórico na sua rejeição da prática da maternidade de substituição: "Considero deplorável a prática da chamada maternidade de substituição, que ofende gravemente a dignidade da mulher e da criança e se baseia na exploração da situação de necessidade material da mãe. Uma criança é sempre um dom e nunca o objeto de um contrato. Apelo, pois, à comunidade internacional para que se empenhe na proibição universal desta prática. As palavras do Romano Pontífice trouxeram o tema para a ribalta de numerosos meios de comunicação social e constituíram um grande incentivo para os promotores de Casablanca.

O autorMaría Candela Temes

Estados Unidos da América

Aborto nos EUA: quem o facilita e quem defende a vida?

A legislação dos Estados Unidos varia de Estado para Estado, o que tem um impacto particular na questão do aborto. Consoante o território, a interrupção da gravidez é proibida ou livre.

Paloma López Campos-8 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

O complexo quadro legislativo dos Estados Unidos significa que as leis do aborto não são unificadas. Cada estado da nação tem uma lei diferente no que diz respeito à defesa (ou ataque) da vida.

Quando o Supremo Tribunal declarou que o aborto não é um direito constitucional, as máquinas de cada território começaram a movimentar-se para promulgar leis diferentes. Enquanto algumas leis foram adaptadas para defender a vida, outros estados tentaram tornar-se "lugares seguros" para as mulheres, protegendo o aborto e tornando-o mais fácil de realizar.

A Florida é um dos últimos Estados a dar um verdadeiro passo em frente. A partir de 1 de maio, o aborto será proibido a partir das 6 semanas de gravidez, ou seja, a partir do momento em que é possível detetar o batimento cardíaco do feto. No entanto, existe também uma iniciativa na Florida que pode anular completamente este avanço e que, se for aprovada, protegerá o "direito" ao aborto em todo o estado.

Estados pró-vida

Muitos sítios Web anunciam os locais onde o aborto é livremente praticado. Em contrapartida, aqui está uma lista de estados onde a legislação defende a vida e torna o aborto ilegal:

-Idaho

-Dakota do Norte

-Dakota do Sul

-Texas

-Missouri

-Louisiana

-Mississipi

-Alabama

-Arkansas

-Oklahoma

-Tennessee

-Kentucky

-Indiana

-West Virginia

O aborto em números

Em 25 de março, o Pew Research Center publicou um relatório sobre a relatório com dados estatísticos sobre o aborto nos Estados Unidos. Alguns números estão desactualizados, por exemplo, o último ano para o qual existem dados disponíveis sobre o número de abortos a nível nacional é 2020, ano em que se registaram 930 160 abortos nos Estados Unidos.

Apesar disso, a tendência para a utilização destas intervenções tem sido decrescente desde a década de 1990, com um ligeiro aumento desde o ano da pandemia. É o que indicam tanto a organização Guttmacher como os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA.

Quanto ao tipo de abortos, mais de metade são efectuados com recurso a medicamentos, enquanto as intervenções são menos comuns. Isto deve-se ao facto de ser o método menos invasivo durante o primeiro trimestre, altura em que a maioria das mulheres pretende interromper a gravidez. Por outro lado, as clínicas realizam mais abortos do que os hospitais, onde são efectuados cerca de 3 % das interrupções de gravidez, quer através de medicamentos quer de intervenções.

O Pew Research Center refere que a maioria das mulheres que recorrem ao aborto estão na casa dos vinte anos. Para além disso, 87 % das mães que abortam não são casadas.

O aborto nas eleições

Com a aproximação das eleições nos Estados Unidos, no final de 2024, os dois candidatos mais falados, Donald Trump e Joe Biden, aludem frequentemente à questão do aborto. Enquanto o primeiro afirma que o seu mandato defenderá a vida, o segundo insiste que lutará pelos "direitos reprodutivos" das mulheres.

É interessante notar esta diferença entre os dois políticos, uma vez que os estados que mais apoiam Trump, do lado republicano, são aqueles onde o aborto é normalmente processado, enquanto os territórios que votam em Biden, do lado democrata, querem que o aborto seja um direito constitucional.

O debate está em aberto e parece que vai continuar a surgir ao longo de 2024, incluindo a nível local, à medida que cada Estado fizer alterações de forma independente.

Mundo

Anuários Estatísticos da Santa Sé: baptismos em alta, padres em baixa

O número de baptizados católicos no mundo aumentou 1 % para 1,39 mil milhões. O número de padres diminuiu ligeiramente, enquanto o número de diáconos permanentes aumentou em 2 % em todo o mundo.  

Giovanni Tridente-8 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

Os Anuários Estatísticos da Santa Sé, o "Annuarium Statisticum Ecclesiae 2022" e o "Annuario Pontificio 2024", que acabam de ser publicados pela Santa Sé. Tipografia do Vaticanocomo sempre, oferecem uma visão interessante da evolução da Igreja Católica em todo o mundo. Estes volumes, publicados pelo Serviço Central de Estatística da Igreja, são uma fonte autorizada para os fiéis e os iniciados analisarem as dinâmicas em jogo no panorama eclesial internacional.

Os dados traçam um quadro contrastante, com as luzes e as sombras a variarem consoante as regiões geográficas. Globalmente, regista-se um aumento de 1% no número de Católicos baptizados, atingindo 1,39 mil milhões em 2022, em comparação com 1,376 mil milhões em 2021. Este aumento é principalmente impulsionado pelo continente africano, onde os fiéis aumentaram de 265 para 273 milhões (+3%), enquanto a Europa permanece estável com 286 milhões de católicos.

Uma tendência positiva diz respeito ao número de bispos, que aumentou 0,25% no biénio 2021-2022, de 5 340 para 5 353. O crescimento mais significativo foi registado em África (+2,1%) e na Ásia (+1,4%).

O número de diáconos permanentes também continua a crescer globalmente, de 49.176 para 50.150 (aproximadamente +2%). Os ganhos mais significativos registaram-se em África, na Ásia e na Oceânia, onde este número ainda não é generalizado, mas aumentou 1,1%, atingindo 1.380 diáconos permanentes em 2022.

Algumas questões críticas

No entanto, subsistem alguns problemas críticos. O número de sacerdotes diminuiu 142 em 2022, de 407 872 para 407 730 (-0,03%), continuando a tendência descendente iniciada em 2012. Este declínio é particularmente acentuado na Europa (-1,7%) e na Oceânia (-1,5%), enquanto a África (de 38.570 para 39.742, +3,2%) e a Ásia (de 70.936 para 72.062, +1,6%) apresentam uma dinâmica positiva.

Do mesmo modo, as vocações sacerdotais continuam a diminuir a nível mundial, com o número de seminaristas maiores a descer de 109 811 para 108 481 (-1,3%). Os decréscimos mais preocupantes registam-se na Europa (de 15.416 para 14.461, -6,2%) e na América (de 28.632 para 27.738, -3,2%). As excepções são a África, onde o número de seminaristas aumentou de 33.796 para 34.541 (+2,1%), e a Oceânia (de 963 para 974, +1,3%).

O número de religiosos professos que não são sacerdotes também diminuiu globalmente em quase 1%, tal como o número de religiosos professos, de 608 958 para 599 228 (-1,6%). Neste último caso, ocorreram diminuições significativas na Europa (-3,5%), na América (-2,3%) e na Oceânia (-3,6%), apenas parcialmente compensadas por aumentos em África (+1,7%) e na Ásia (+0,1%).

Questões e desafios

Estes dados levantam questões sobre os desafios que esperam a Igreja Católica no futuro próximo, especialmente no que diz respeito às vocações sacerdotais e religiosas e à presença generalizada de clérigos e religiosos em certas partes do mundo, como a Europa, a América e a Oceânia. No entanto, os sinais encorajadores vindos de África e da Ásia são um bom augúrio para a continuação da difusão da mensagem cristã nestes continentes.

O autorGiovanni Tridente

O amor não é amado

Na sua assinatura para a Omnes, Lupita Venegas diz que ser imitador de Cristo é fazer as coisas como Ele as faria: amar Amar Amar Amar.

5 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

Numa das suas audiências, o Papa Francisco lamentou a nossa incoerência: "A humanidade, que se orgulha dos seus progressos na ciência, fica para trás quando se trata de tecer a paz. É campeã em fazer guerra", disse.

Ouvimos falar da guerra na Ucrânia, em Gaza, no Sudão... há guerra em várias partes do mundo. Nos nossos países e cidades: tráfico de droga, desaparecimentos, tráfico de seres humanos. A nível familiar: infidelidades, escândalos, divórcios. A nível pessoal: angústia, ansiedade, stress e depressão.

Uma mulher disse-me recentemente que defenderia a sua herança "independentemente de quem caísse". Os seus pais não tinham distribuído os bens como ela gostaria e, perante o que considerava uma injustiça, decidiu agir, cometendo mesmo injustiças se necessário. Onde começa a paz, onde começa a guerra?

Soldados da paz

Um acontecimento na vida de São Francisco de Assis pode dar-nos a chave para alcançarmos o mundo que todos desejamos: um mundo sem guerra, sem injustiça, sem medo. Um mundo de solidariedade, de responsabilidade, de paz.

São Boaventura conta como São Francisco foi ao palácio do Sultão Malik al Kamil, no Egipto, para se encontrar com ele. Era o ano de 1219, época da Quinta Cruzada, e o povo muçulmano lutava contra os cristãos pelos lugares santos.

O sultão recebeu-o com cortesia e perguntou-lhe: "Porque é que os cristãos querem a paz e fazem a guerra, porque o amor não é amado", respondeu o pobre rapaz de Assis.

São Francisco foi ter com o Sultão como testemunha da paz, procurando o diálogo e renunciando à violência. Com absoluta confiança em Deus. Conseguiu, aliás, uma paz temporária e a iniciativa do próprio Sultão de viver uma trégua que foi rejeitada pelos cristãos.

Amar a Deus, fonte do amor, é fazer a Sua vontade. Sabemos o que Deus quer através das Sagradas Escrituras. Nelas encontramos os 10 mandamentos, as bem-aventuranças, as obras de misericórdia e o mandamento do amor. Este desejo de Deus não deve ser interpretado como um apelo para os outros, mas para mim. Para mim! Se amo Deus, quero imediatamente amar os meus irmãos e irmãs. Amar o Amor é amar o próximo e a mim próprio.

Dar a paz

Não podemos continuar à espera que os outros nos dêem a paz que o coração anseia. Não é o outro: o cônjuge, os filhos, os colegas de trabalho, as autoridades, os sistemas políticos... Se queres a paz, tens de a dar primeiro. Como o fazes?

  • A nível pessoal. Valorize-se e trate-se como se fosse o seu melhor amigo. Cultivar bons hábitos.
  • Em casa. Lembre-se que a guerra não está na ofensa recebida, mas na ofensa respondida. Se alguém faz ou diz algo que o deixa desconfortável, não responda com violência, mas com paz. Seja assertivo, peça o que precisa sem ofender.
  • No trabalho (ou na escola). Sê a mudança que queres ver, como disse Mahatma Ghandi. Somos responsáveis pelo ambiente em que actuamos. No trabalho ou na escola, não faça mexericos, não ataque os outros em conversas com outras pessoas ou nas redes sociais. Seja conciliador nos seus comentários e tente ser um jogador de equipa. Faz bem o teu trabalho, dá sempre um pouco mais do que te é pedido.
  • Na vossa comunidade civil. Respeitar as leis e favorecer o encontro com os mais necessitados. Participar num serviço social organizado ou organizar um.
  • Na vossa comunidade religiosa. Participa na oração, na formação e nas actividades apostólicas para as quais és convidado. Faz isso de forma responsável e cumpre aquilo a que te comprometes. 
  • No seu país. Seja um cidadão responsável, vote nas autoridades em quem confia, naquelas que zelam pelo verdadeiro bem comum.

Que eu queira ser um imitador de Cristo. Que eu faça as coisas como Cristo as faria. Amor Amor Amor! São Paulo recorda-nos: de facto, a paz identifica-se com o próprio Jesus Cristo, que é a nossa paz (Ef 2, 14-15).

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Vocações

Daniela Saetta: "Aos 17 anos não tinha vontade de viver".

Daniela Saetta é uma farmacêutica siciliana, membro da Comunidade Magnificat. O seu encontro com Deus nesta comunidade, aos 17 anos, mudou radicalmente a sua vida.

Leticia Sánchez de León-5 de abril de 2024-Tempo de leitura: 7 acta

Daniela Saetta é originária da Sicília, mas passou a maior parte da sua vida em Perugia, para onde se mudou com a irmã quando os pais se separaram. Hoje trabalha como farmacêutica num hospital, é casada com Massimo e tem três filhos. Nesta conversa com Omnes, Daniela conta-nos como Deus entrou inesperadamente na sua vida, através da Comunidade Magnificat, quando ela tinha apenas 17 anos e estava longe de Deus.

O que é que a palavra vocação significa para si?

- "Encontro". Um encontro que transformou toda a minha vida. Eu era uma rapariga com muitos problemas atrás de mim. Primeiro, durante a infância, por causa da separação e do divórcio dos meus pais. Depois, durante a adolescência, quando todas as feridas e incompreensões que eu e a minha irmã tínhamos ressurgiram e se transformaram numa revolta contínua contra tudo. Desilusão e raiva contra o mundo inteiro, contra a vida, contra a religião e contra Deus que, dizia eu, não pode existir! Experimentei o que significa sentir-se velho aos 17 anos, não querer viver mais... é algo que experimentei na minha própria pele. Por outro lado, a minha família, uma família muito experimentada, não era praticante e estava absolutamente afastada de Deus. Eu e a minha irmã nunca fomos levadas à catequese, por exemplo, e havia até traços anti-clericais em certas matérias.

Na adolescência, período em que se procura a amizade, o amor e se fazem as primeiras experiências, mesmo que erradas, senti, ainda mais fortemente, esse vazio interior de amor e de compreensão que não me tinha sido dado. E, embora nos primeiros anos do liceu um certo radicalismo anti-católico se tivesse apoderado de mim, na realidade eu procurava algo -Não sei exatamente o quê. De certa forma, acho que estava à procura de algo espiritual, um sentido transcendente, que acabava sempre em desilusão.

Vivi esses anos com a sensação de que tudo à minha volta era falso e burguês, onde por vezes predominava um cristianismo de fachada, feito de hábitos e de pouca substância. Gradualmente, os contactos com um professor marxista do liceu, juntamente com a falta de coerência no comportamento das pessoas que se diziam católicas, levaram-me a afirmar que Deus não existia. E assim continuei, num crescente mal-estar interior, até que tudo se desmoronou quando, no meio de uma crise em que a ideia do suicídio era recorrente, fui convidado para uma reunião de oração da Comunidade Magnificat, que então acabava de nascer. Eu tinha apenas 17 anos.

Ali encontrei algo que realmente me atraiu, algo novo, encontrei autenticidade e, acima de tudo, tive um encontro pessoal com o Senhor que hoje, depois de quase 45 anos, posso dizer com certeza que foi um encontro real em que o Espírito Santo acendeu em mim um fogo que - apesar das dificuldades e mudanças que se tem na vida - nunca se apagou. Tudo mudou depois daquela tarde: foi um verdadeiro ponto de viragem para mim, um ponto de viragem.

Alguns anos mais tarde, conheci Massimo na Comunidade, um rapaz que vinha de uma vida difícil e que tinha experimentado drogas. Apaixonámo-nos e casámos. Hoje, os nossos três filhos já são adultos e temos dois netos maravilhosos.

O que significa fazer parte da Comunidade Magnificat na sua vida quotidiana? Por exemplo, no seu trabalho?

-A minha vida é normal, ou seja, vivo o carisma da minha comunidade fazendo o que os outros fazem na vida quotidiana: cuido da minha família, vou trabalhar, estabeleço relações com os meus colegas, com os meus vizinhos.

No trabalho, o ambiente hospitalar não é fácil, o tipo de relação com as pessoas é muitas vezes frio e distante. Nem sempre posso falar tão abertamente de Deus, mas também não o escondo; toda a gente sabe que sou cristão e que faço parte de uma comunidade.

Acontece que as pessoas se abrem comigo e me pedem conselhos, e então é mais fácil falar de Deus ou dar testemunho de como vivo várias situações. Costumo dizer a toda a gente que Deus é como um "bom pai" e não um "juiz severo e inflexível". No ambiente de trabalho, é frequente as pessoas criticarem ou falarem mal de outros colegas, e esses momentos tornam-se oportunidades para dizer que não vale a pena zangar-se ou guardar rancor.

Fora do trabalho, de um ponto de vista mais pessoal, como cada membro "aliado" da comunidade - porque a nossa comunidade é uma comunidade de aliança - renovo publicamente, uma vez por ano, juntamente com os outros membros aliados da comunidade, as "promessas". São quatro: a promessa de pobreza, de perdão permanente, de amor edificante e de serviço.

Todos os membros da comunidade vivem estas quatro promessas de acordo com o seu próprio estado de vida e as suas circunstâncias particulares: por exemplo, a nossa promessa de pobreza não pode ser vivida como a viveria um franciscano que nada tem. Numa família, as coisas são necessárias para viver e cumprir a nossa missão de educar e acompanhar os nossos filhos. Mas esta promessa implica para nós uma escolha do estilo de vida que pretendemos levar: uma vida sóbria, sem luxo excessivo, uma vida em que tenhamos em mente os pobres. Além disso, também através do dízimo (do que se ganha) que é doado à comunidade.

Quando falo da Comunidade Magnificat, noto que este compromisso com o "dízimo" suscita muitas vezes curiosidade e até perplexidade. Mas doar uma parte do salário à Comunidade significa não só apoiar a vida comunitária nas suas necessidades (das missões à ajuda fraterna aos pobres), mas também confiar em Deus, porque todos nós experimentamos que o Senhor nunca se deixa ultrapassar em generosidade e, por isso, nunca deixa faltar o necessário a quem lhe dá alguma coisa.

Outra promessa relativa aos aliados é a do perdão permanente. Isto reflecte-se em toda a vida: quem não sofre nas relações com os outros, nos mal-entendidos e nos desacordos?

A promessa de construir o amor é o compromisso que assumimos de sermos construtores do Reino de Deus e do amor que Ele representa, pelo que reforça também as promessas anteriores, ajudando-nos não só a não ficar zangados com os outros, mas também a dar o primeiro passo para a reconciliação. É a premissa da vida fraterna!

Por fim, o serviço à comunidade e à Igreja. No meu caso, por exemplo, estou envolvido em actividades que têm a ver com a música e o canto, bem como com o anúncio da palavra e o serviço de evangelização. Por vezes, ajudo nas missões; no ano passado, estive no Uganda, onde está a ser criada uma das nossas fraternidades.

Além disso, a nossa Comunidade tem um traço caraterístico, que é a adoração ao Santíssimo Sacramento. Somos chamados "Comunidade Magnificat" porque o nome faz referência a Maria, nossa mãe, que quis unir contemplação e ação.

Toda a nossa ação (anúncio da Palavra, evangelização, missões, ajuda aos pobres...) nasce da oração, nasce da Eucaristia, nossa fonte e nossa força.

A Eucaristia é precisamente um dos nossos pontos fortes: Tarcisius, iniciador da Comunidade Magnificat juntamente com a sua irmã Agnes, viu profeticamente um altar com uma hóstia consagrada quando ouviu de Deus as palavras "com Jesus, construir sobre Jesus". Era necessário que a Comunidade Magnificat fosse edificada sobre a Eucaristia. Por isso, em comunidade, para além da celebração diária da Eucaristia, uma vez por semana, todos nos dedicamos à adoração eucarística.

Pode parecer muito, e todos os compromissos e promessas podem ser assustadores, mas na comunidade há uma atmosfera de liberdade e flexibilidade. Cada um discerne em conjunto com um irmão da comunidade que actua como apoio e também como acompanhamento espiritual com responsabilidade pessoal, de acordo com a sua situação pessoal e familiar. Aquelas que são mães com filhos pequenos, por exemplo, encontram compreensão na maneira de viver seus compromissos comunitários. A comunidade, é claro, encoraja-nos fortemente a avançar, mas olha para cada irmão com prudente sabedoria para ver até onde ele pode ir.

Este modo de vida não está muito na moda. Dedica-se muito tempo às actividades comunitárias e a Deus. Como é que explica este modo de vida às pessoas que não o compreendem?

-A maioria de nós é leiga, fala a mesma língua que o mundo; muitas vezes os problemas que rodeiam as pessoas são também os nossos problemas. Vivemos a mesma realidade que os outros. Por isso, podemos compreender perfeitamente o que os outros sentem na sua vida, as resistências interiores ou os desejos do seu coração.

O que é que podemos fazer? Vivemos num mundo de pobres, pobres também do ponto de vista espiritual, mas não só porque lhes falta Deus nas suas vidas, mas também porque lhes faltam valores.

O Papa fala continuamente do consumismo em que estamos imersos e também da cultura do desperdício, e de uma sociedade que vive uma sexualidade privada do seu verdadeiro significado, porque não lhe foi ensinada a beleza do corpo.

Por outro lado, no mundo do trabalho, vejo como as pessoas sentem muitas vezes o peso do desemprego ou a preocupação de subir na carreira, mas em todas elas há uma grande solidão. Hoje em dia, as pessoas têm uma sede incrível de amor.

Os irmãos da Comunidade procuram transmitir a todos uma mensagem de amor autêntico através do exemplo. Poder-se-ia dizer que a Comunidade é a resposta ao que muitos procuram: as pessoas ficam impressionadas ao ver uma comunidade de irmãos composta por muitos jovens e famílias, que realmente se amam (porque o afeto entre nós é sincero!). Isso é muito marcante, é o que diz a Bíblia sobre a Igreja ser "a cidade no alto do monte" ou a lâmpada no candelabro e "não debaixo do alqueire", "para iluminar todos os que estão na casa".

Nos seminários sobre a vida nova no Espírito Santo que organizamos, falamos do amor de Deus. É uma resposta aos desejos interiores dos nossos irmãos e irmãs. Nestes seminários há todo o tipo de pessoas: jovens e idosos, pessoas que estão longe de Deus e pessoas que já estão num caminho de fé. Não sei dizer porquê, mas é evidente que esta proposta atrai. E não é graças a nós, mas penso que tem a ver com a fome de amor e de Deus que as pessoas têm no seu coração.

Não posso terminar sem dizer que, pouco a pouco, o Senhor trouxe luz à história de toda a família: o pai morreu depois de se ter aproximado de Deus, a mãe, que estava longe do Senhor, abraçou a fé com todo o seu coração ao ponto de fazer dele a razão da sua vida e a rocha da sua existência. Os meus 3 filhos tiveram a graça de um forte encontro com Deus, a minha filha mais velha é freira, a minha irmã é médica e membro consagrado da comunidade, e quase todos os membros da família aderiram à comunidade... Para glória de Deus!

A Comunidade Magnificat

A Comunidade Magnificat nasceu a 8 de dezembro de 1978, na paróquia de San Donato all'Elce em Perugia. É uma Comunidade de Aliança desenvolvida na corrente de graça do Renovamento Carismático Católico.

É uma resposta a um chamamento específico de Deus para viver a vida nova no Espírito num compromisso estável e é constituída por fiéis de todos os estados de vida, mas predominantemente leigos e famílias. Nascida em Itália, desenvolveu-se progressivamente em várias partes do mundo: Roménia, Argentina, Turquia, Uganda e Paquistão.

Em 19 de janeiro de 2024, no Palazzo San Callisto, em Roma, na Dicastério para os Leigos, a Família e a VidaA cerimónia teve lugar para a assinatura do decreto de reconhecimento da Comunidade Magnificat "como associação privada internacional de fiéis" e a aprovação do seu estatuto por um período de um ano.d experimentum de 5 anos.

A cerimónia de reconhecimento da Comunidade Magnificat "como associação privada internacional de fiéis" foi presidida pela Ir. Daniella.
O autorLeticia Sánchez de León

Cultura

80 anos da "Abadessa de Las Huelgas" de São Josemaría Escrivá.

Passaram 80 anos desde a publicação de "A abadessa de Las Huelgas" de São Josemaría Escrivá, uma investigação académica que ainda hoje ecoa e reflecte o legado intelectual do autor.

Eliana Fucili-5 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

São Josemaría Escrivá é conhecido sobretudo pela fundação do Opus Dei. Daí a singularidade de A Abadessa de Las Huelgas" (A Abadessa de Las Huelgas)na trajetória do santo aragonês.

Publicado em 1944, este livro faz uma análise histórico-canónica da jurisdição exercida durante séculos pela abadessa do mosteiro de Las Huelgas, em Burgos.

Na opinião de quem efectuou a edição histórico-críticaEsta investigação tem provavelmente dois objectivos. Um deles é o desejo de transmitir a mensagem central do Opus Dei -Ele era um grande admirador da santificação pessoal através do trabalho, razão pela qual teve tanto cuidado em realizar este estudo. Outro é o seu grande apreço pelo trabalho intelectual e universitário.

A Abadessa de Las Huelgas" analisa questões teológicas, jurídicas e históricas. Ainda hoje é uma obra de referência nos estudos académicos e a sua leitura demonstra a sincera estima do autor pela vida religiosa.

Legado intelectual

São Josemaria Escrivá começou a investigar a abadessa de Las Huelgas quando chegou a Burgos em janeiro de 1938, depois de atravessar os Pirinéus durante a Guerra Civil Espanhola. Em Madrid perdeu todo o material que tinha recolhido durante vários anos para a sua tese de doutoramento. Mas em Burgos encontra um novo tema e os arquivos do mosteiro para preparar a sua nova tese.

Em dezembro de 1939, Escrivá apresentou a sua tese na Universidade Central de Madrid, obtendo uma excelente classificação que lhe valeu o doutoramento em Direito.

Este trabalho de doutoramento serviu de base e inspiração para um estudo mais pormenorizado da figura da abadessa de Las Huelgas e da sua jurisdição particular. Para o efeito, entre 1940 e 1943, São Josemaria deslocou-se várias vezes a Burgos para consultar os arquivos do mosteiro.

A figura da Abadessa de Las Huelgas

O mosteiro de Las Huelgas é um episódio especial na história da Igreja em Espanha. Desde a sua fundação, no século XII, acolheu as filhas dos nobres. As que nela entravam traziam dotes que incluíam terras e benefícios concedidos pela realeza.

Ao longo dos séculos, estas doações contribuíram para aumentar o território do mosteiro e a jurisdição da abadessa.

Nele se condensavam três poderes diferentes: o poder civil, o poder canónico enquanto superior de uma comunidade religiosa e um poder de quase episcopal (exceto, evidentemente, em todas as questões relacionadas com as ordens sagradas).

A Abadessa exercia este poder sobre os fiéis cristãos que viviam nos limites do seu território, situado entre Toledo e a atual Cantábria.

Assim, por exemplo, concedia licenças aos sacerdotes para celebrarem missa, pregarem nas igrejas e paróquias, ouvirem as confissões das suas freiras, religiosos e fiéis no seu território. No seu território, também presidia e recebia pessoalmente a profissão religiosa no seu mosteiro e noutros.

Também impunha penas eclesiásticas e civis através de juízes que faziam justiça em seu nome.

São Josemaría Escrivá

Contribuições do livro de Escrivá

São Josemaría Escrivá estudou a jurisdição quase episcopal O domínio secular da abadessa de Las Huelgas, que terminou em 1874 por bula papal Quae diversa.

A sua análise histórico-canónica realça a relevância e o impacto do costume como fonte do direito canónico, sublinhando o modo como o uso continuado por uma comunidade pode influenciar a formulação da norma eclesiástica, a menos que seja explicitamente anulado pelo legislador.

La Abadesa de las Huelgas" teve duas edições ainda em vida de Escrivá: a primeira em 1944 e a segunda em 1974. Mais tarde, em 1988, foi reeditada.

Desde a sua primeira publicação, tornou-se uma referência no domínio do direito canónico. Continua a ser citada na literatura canónica, bem como nos estudos sobre a história das mulheres, em particular no mundo anglo-saxónico.

Em 2016, o Instituto Histórico São Josemaría Escrivá publicou o edição crítico-histórica de A Abadessa de Las Huelgaspelas Professoras María Blanco e María del Mar Martín. As autoras apresentam uma exaustiva análise crítica e histórico-jurídica do texto original.

No prefácio da edição histórico-crítica, D. Javier Echevarría afirmou que a investigação de S. Josemaria sobre a abadessa de Las Huelgas não só pôs em evidência o papel da mulher na Igreja e na sociedade do passado, como também pode contribuir para novas reflexões sobre o lugar da mulher na sociedade e na Igreja contemporâneas.

O autorEliana Fucili

Centro de Estudos Josemaría Escrivá (CEJE) 
Universidade de Navarra

Vaticano

O caminho de Francisco para que as religiões realizem as suas expectativas de paz

"A brutalidade dos conflitos no mundo está a matar milhares de pessoas", e é necessário dar "concretude às expectativas de paz, verdadeiras expectativas dos povos e dos indivíduos", disse o Papa Francisco no primeiro Colóquio entre o Dicastério para o Diálogo Inter-religioso da Santa Sé e o Congresso dos Líderes Religiosos do Cazaquistão.  

Francisco Otamendi-4 de abril de 2024-Tempo de leitura: 3 acta

"Hoje, muitos, demasiados, falam de guerra: a retórica belicosa está, infelizmente, de novo na moda. Mas enquanto se difundem palavras de ódio, morrem pessoas na brutalidade dos conflitos. Em vez disso, é preciso falar de paz, sonhar com a paz, dar criatividade e concretude às expectativas de paz, que são as verdadeiras expectativas dos povos e das pessoas. Esforcem-se nesta direção, em diálogo com todos", disse o Santo Padre aos participantes no Colóquio.

"Que o vosso encontro, no respeito pela diversidade e com a intenção de se enriquecerem mutuamente, seja um exemplo para não ver no outro uma ameaça, mas um dom e um parceiro precioso para o crescimento mútuo. 

"Desejo-vos dias de fraternidade, fecundos em amizade e bons projectos, e uma partilha frutuosa dos resultados do vosso trabalho", desejou o Papa Francisco, líder do mundo católico, depois de recordar as iniciativas que surgiram no âmbito da sua viagem apostólica para o maior país da Ásia Central, o Cazaquistão, em setembro de 2022.

Congresso dos Líderes, "uma plataforma de diálogo bem testada".

O Pontífice dirigiu uma saudação especial à parte cazaque do Colóquio, ao Congresso dos Líderes das Religiões Tradicionais e Mundiais, ao qual o Papa assistiu na sua sétima edição; ao Senado da República e ao Centro Nursultan Nazarbayev para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural; e ao Conselho Nacional do Cazaquistão para o Diálogo Religioso e Intercultural. sublinhou a sua "alegria por ver neste evento um primeiro fruto significativo do Memorando de Entendimento celebrado entre o Centro Nazarbayev e o referido Dicastério".

O Congresso "é uma plataforma única e bem experimentada para o diálogo não só entre os líderes religiosos, mas também com o mundo da política, da cultura e dos media", disse Francisco. Trata-se de "uma iniciativa louvável que corresponde bem à vocação do Cazaquistão para ser "um país de encontros.  

"Para além da viagem apostólica", o Papa recordou que "tive a oportunidade de mostrar a minha proximidade ao povo cazaque por ocasião da visita ao Vaticano, em janeiro passado, do Presidente da República, que tão cortesmente me acolheu no país, e no encontro com S. Exa. o Sr. Ashimbayev, Presidente do Senado e Chefe do Secretariado do Congresso, que participa no vosso colóquio como Chefe da Delegação cazaque". 

"Apoiar o cultivo da harmonia entre religiões e culturas".

"Deveis apoiar-nos no cultivo da harmonia entre religiões, etnias e culturas, uma harmonia de que o vosso grande país se possa orgulhar", pediu o Santo Padre. "Em particular, há três aspectos da vossa realidade que eu gostaria de destacar: o respeito pela diversidade, o compromisso com a "casa comum" e a promoção da paz.

No que diz respeito ao respeito pela diversidade, "elemento indispensável da democracia - que deve ser constantemente promovido - o facto de o Estado ser 'laico' contribui grandemente para criar harmonia", acrescentou. 

"Trata-se claramente de um laicismo saudável, que não mistura religião e política, mas distingue-as para o bem de ambas e, ao mesmo tempo, reconhece o papel essencial das religiões na sociedade, ao serviço do bem comum". Pode ler o texto completo aquidos quais alguns aspectos foram delineados no início. 

Sobre o Cazaquistão, % de católicos, um país de encontro 

Após a sua independência em 1991, o Cazaquistão é hoje um país soberano de vastas estepes, com uma pequena população (apenas 19 milhões de habitantes) para uma vasta área que faz dele o nono maior país do mundo (2.750.000 quilómetros quadrados - cinco vezes o tamanho de Espanha).

Como Omnes reportadoExistem cerca de 182 000 católicos no Cazaquistão, ou seja, cerca de 1 % da população. São a segunda maior minoria cristã, a seguir à Igreja Ortodoxa, num país de maioria muçulmana. Embora os católicos provenham frequentemente de famílias com raízes europeias (polacas, alemãs, ucranianas ou lituanas), a Igreja Católica está a enraizar-se gradualmente no Cazaquistão.

O autorFrancisco Otamendi

América Latina

A "Paixão de Cañete", uma tradição pascal no Peru

"La Pasión de Cañete" é uma representação da Paixão de Cristo que é tradicionalmente representada no Peru em cada Semana Santa.

Jesus Colquepisco-4 de abril de 2024-Tempo de leitura: 2 acta

A 140 quilómetros a sul de Lima encontra-se a província de Cañete, o "Vale Abençoado" - como lhe chamou São Josemaria Escrivá durante a sua visita a Lima. Peru em julho de 1974. Durante a Semana Santa, realiza-se ali uma das mais famosas encenações da Paixão de Cristo no Peru, a "Paixão de Cañete", organizada pela Prelatura de Yauyos e pela ACAR Cañete (Agrupación Cañetana Artístico Recreativa).

A encenação tradicional (iniciada em 1966) realiza-se cada Semana Santa nas instalações do Santuário da Mãe do Amor Justo, um dos principais destinos religioso-culturais de San Vicente de Cañete. Tem uma duração aproximada de duas horas e inclui, entre outras, as impressionantes passagens bíblicas da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, a Última Ceia, a traição de Judas, a negação de Pedro, a Paixão, a morte e a ressurreição do Senhor.

Cena de "A Paixão de Cañete".

Para a Semana Santa de 2024, os dias de apresentação foram o Domingo de Ramos, a Quarta-feira Santa, a Quinta-feira Santa e a Sexta-feira Santa, sendo os dois últimos os mais concorridos, com mais de 2000 pessoas por dia, num total de sete mil participantes durante a semana.

Origens da Paixão de Cañete

O primeiro Vigário Geral da Prelazia de Yauyos, Pe. Enrique Pélach, motivou, na Semana Santa de 1966, o povo de San Vicente de Cañete a representar o mistério da paixão e morte de Jesus. Nessa altura formou-se a ACAR (Agrupación Cañetana Artístico-Recreativa), que integrou os actores para a representação da Paixão. Mais tarde, o texto da Paixão recebeu alguns ajustes e adaptações de Mons. Esteban Puig, sacerdote espanhol que dirigiu a encenação durante um importante período.

A única vez que a Paixão de Cañete não foi realizada foi entre 2008 e 2012 devido a obras no Santuário em consequência do terramoto de agosto de 2007; bem como entre 2020 e 2022 devido à pandemia de COVID-19.

ACAR e a Prelatura de Yayos

A ACAR Cañete tem atualmente 200 pessoas em palco sob a direção de Julio Hidalgo. Entre elas estão actores locais, técnicos de som, técnicos de iluminação, maquilhadores, pessoal de adereços e figurinos. O representante da Prelatura é Félix Cuzcano, delegado episcopal para o espetáculo da Paixão.

A ACAR e a Prelatura de Yauyos receberam vários reconhecimentos civis pela contribuição da Paixão à fé e à cultura da Província de Cañete.

Participantes no espetáculo tradicional peruano
O autorJesus Colquepisco

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Evangelização

Igreja e comunicação: um desafio de 21 séculos

Anunciar a boa notícia da salvação é uma tarefa fundamental da Igreja, que deve servir-se de todas as linguagens de comunicação presentes na sociedade.

Pablo Alfonso Fernández-4 de abril de 2024-Tempo de leitura: 6 acta

Desde o início, a Igreja foi incumbida por Jesus Cristo da tarefa de comunicar: a sua missão evangelizadora consiste em anunciar a boa notícia da salvação. Para a realizar, conta principalmente com a ajuda do Espírito Santo, que ilumina, impele e vivifica a sua Igreja. Mas, como ensina a teologia, a graça não substitui a natureza, pelo que convém utilizar os meios humanos à nossa disposição para facilitar a sua ação nas almas.

Entre estes meios encontram-se as chamadas Ciências da Informação, com todo o enquadramento técnico e especificações de uma atividade cada vez mais profissionalizada.

As tarefas de comunicação evoluíram com os meios de comunicação e a formação especializada, pelo que é importante refletir sobre a melhor forma de fazer comunicação institucional na Igreja, respeitando e facilitando o trabalho dos profissionais.

Trata-se de uma colaboração necessária, que beneficia tanto os comunicadores, no seu trabalho de apresentação e difusão dos factos noticiosos, como a própria Igreja, que fica mais conhecida e pode mostrar ao mundo a beleza do Evangelho nos factos apresentados como notícias.

Uma tarefa ética

Tal como noutras profissões, a tarefa do comunicador tem uma forte componente de confiança. A fonte de informação que escolhemos é determinada pelas garantias de veracidade e integridade na interpretação da realidade que nos transmite.

Por conseguinte, a Igreja não pode ficar alheia às implicações morais da utilização dos meios de comunicação social, e é do seu interesse contribuir para o seu desenvolvimento de uma forma que respeite a dignidade da pessoa. Isto é afirmado no Decreto Inter MirificaO Conselho reconhece o direito humano à informação e a sua ligação com a verdade, a caridade e a justiça, em primeiro lugar.

Convida-nos também a refletir sobre as consequências do que é transmitido no comportamento das pessoas e, por conseguinte, recorda-nos a responsabilidade dos profissionais, dos destinatários e da autoridade civil na seleção e difusão dos conteúdos.

No fundo, trata-se de recordar que existe uma diferença entre a ressonância noticiosa que um acontecimento pode ter e a sua relevância. Reconhecer que é do nosso interesse estarmos actualizados, mas aprender a ler os acontecimentos numa chave diferente do sensacionalismo, para sabermos interpretar o que está a acontecer: uma árvore caída faz sempre mais barulho do que uma floresta em crescimento. E isto aplica-se tanto aos acontecimentos do mundo como aos que dizem respeito à vida da Igreja.

O padre britânico Ronald Knox (1888-1957) explicou que, em Jerusalém, toda a gente soube imediatamente que Judas se tinha enforcado, mas muito poucos repararam na fidelidade simples e fecunda de Maria.

Desde há mais de 50 anos, a Igreja tem ajudado a refletir sobre esta tarefa numa perspetiva ética, com a Mensagens para o Dia da Comunicação Social. São publicadas pelo Papa todos os anos, por ocasião da festa de São Francisco de Sales, e chamam a nossa atenção para algum aspeto relevante e atual que desperta as nossas consciências. Por exemplo, na sua mensagem para 2024, o Papa Francisco menciona algumas das consequências da utilização da inteligência artificial.

Com a sua própria dinâmica

O referido documento do Concílio Vaticano II recorda-nos também que "compete em primeiro lugar aos leigos animar estes meios com um espírito humano e cristão". Esta é uma das expressões da Doutrina Social da Igreja, à qual se referia genericamente Bento XVI na sua primeira encíclica. Aí explicou que não é tarefa da Igreja empreender por si só o empreendimento político de realizar a sociedade mais justa possível.

É verdade que ela não pode nem deve ficar à margem desta luta pela justiça, mas insere-se nela através da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, esforçando-se por abrir a inteligência e a vontade às exigências do bem (cfr. Deus caritas est, n.28).

No que diz respeito às tarefas de comunicação, entende-se que o papel da autoridade eclesiástica não é propriamente o de dispor de certos meios para contribuir para a opinião pública, mas sim o de animar as diversas iniciativas dos cidadãos no espírito cristão.

É verdade que a Igreja não tem como missão própria uma presença institucional no mundo da comunicação, nem no mundo da educação, da assistência hospitalar ou da prestação de serviços sociais. Ao mesmo tempo, porém, goza dos mesmos direitos que qualquer outra instituição pública ou privada para dirigir ou promover iniciativas nestes domínios da vida social.

Por esta razão, entende-se também que a promoção dos meios de comunicação católicos é possível (e o Decreto dedica o Decreto a esta proposta). Inter Mirifica Capítulo II), que podem atuar profissionalmente no mundo da comunicação e apresentar a sua proposta informativa, como qualquer outro interlocutor válido na sociedade.

A comunicação institucional na Igreja está a tornar-se cada vez mais profissional, e os esforços das universidades eclesiásticas para dar importância à preparação de comunicadores profissionais que possam liderar delegações dos meios de comunicação social nas dioceses ou lançar iniciativas no mundo das agências noticiosas sobre a Igreja são de saudar.

Um encontro recente

Um recente colóquio organizado por uma diocese espanhola reuniu um grupo de jornalistas para discutir a comunicação da Igreja num ambiente de franqueza e respeito mútuo. Por exemplo, o debate sobre o tratamento das notícias de abusos serviu para apelar a um maior profissionalismo por parte dos repórteres e a melhores canais de comunicação com as autoridades eclesiásticas.

A conclusão do encontro foi que os meios de comunicação social estão dispostos a noticiar mais sobre a Igreja e que o trabalho das delegações dos meios de comunicação social é apreciado e valorizado pelos profissionais dos meios de comunicação social em geral.

De facto, a maior parte das notícias sobre a Igreja são referências positivas, sobre a Caritas, testemunhos de pessoas envolvidas em tarefas educativas ou no cuidado do património artístico religioso.

De um modo geral, as intervenções sociais promovidas pela Igreja são de interesse informativo, tal como alguns eventos religiosos que implicam a mobilização de recursos nos locais onde se realizam, como as peregrinações ou as celebrações de santos padroeiros.

Uma contribuição necessária

Em todo o caso, a visão da atividade da Igreja em alguns meios de comunicação social é ainda limitada, quer por ignorância, quer por interesses ideológicos. Alguns profissionais estão ainda enraizados numa certa mentalidade fechada em relação à vida espiritual, que tende a marginalizar as opiniões e acções dos crentes pelo simples facto de pertencerem a pessoas que entendem a sua fé como algo importante e decisivo na sua vida. Não se presta atenção à razoabilidade ou ao interesse das propostas, e estas são diretamente marcadas pela sua origem, sem sequer as ouvir.

Isto está bem patente numa passagem do romance O despertar de Miss Prim (Natalia Sanmartín, 2014). A protagonista desta história tem um diálogo com a dona da casa onde trabalha como bibliotecária. A certa altura da conversa, ela rejeita um argumento, considerando que a sua origem está nas convicções religiosas do seu interlocutor. Mas ele convida-a a raciocinar e a dizer-lhe se acha que ele tem ou não razão no que disse: se ela só o pode contradizer com base no facto de ele ser crente, não é um argumento válido.

Alguns gostariam que os católicos regressassem às catacumbas ou, pelo menos, que não saíssem das sacristias. Nalguns círculos, parece que o Édito do Imperador Juliano (361-363), que obrigava os professores das escolas de Retórica e Gramática a acreditarem lealmente nos deuses, está de novo a ser aplicado: os cristãos deviam ficar "confinados às igrejas para comentarem Mateus e Lucas".

Há um esforço para mostrar as contribuições da fé para a vida social como irrelevantes, ou para reduzir o seu impacto a uma esfera limitada, sem reconhecer a sua influência em tantas manifestações culturais que moldam a convivência.

O pensamento crente é tolerado, no máximo, como uma expressão folclórica que tem o seu lugar e o seu momento, como uma concessão a um regionalismo inevitável, mas não é admitido como uma posição razoável e sensata que pode ajudar o desenvolvimento do mundo.

Servidores da verdade

A Igreja é chamada a participar no destino da humanidade e, por isso, tem o direito e a obrigação de se dar a conhecer através das suas palavras, das suas acções e das suas contribuições para o bem comum. Por seu lado, aqueles que trabalham na elaboração e difusão de mensagens informativas devem estar cada vez mais conscientes da sua responsabilidade como servidores da verdade.

Recentemente, o Papa Francisco recordou-o numa alocução de 23 de março deste ano aos dirigentes e trabalhadores da RAI e às suas famílias, na qual descreveu o seu trabalho como um verdadeiro serviço público que é um dom para a comunidade e os encorajou a cultivar uma atitude de escuta que os ajude a compreender a verdade como uma realidade. sinfónicacomposto por uma variedade de vozes.

O verdadeiro serviço de um comunicador profissional, nas palavras do Papa, contribui para a verdade e o bem comum, promove a beleza, desencadeia dinâmicas de solidariedade e ajuda a encontrar o sentido da vida numa perspetiva de bem. O seu trabalho envolve todos e traz novas perspectivas à realidade, sem perseguir quotas de audiência em detrimento do conteúdo.

Pode parecer uma visão idealizada ou um pouco ingénua, mas a alternativa seria o derrotismo, e parece que Francisco não está pronto para atirar a toalha ao chão: é possível construir uma maior oferta de conteúdos de qualidade, tudo depende da capacidade de sonhar alto.

E termina com um convite aos profissionais dos media para que transformem o seu trabalho numa surpresaA Igreja é um lugar de companhia, de unidade, de reconciliação, de escuta, de diálogo, de respeito e de humildade. É um desafio para os jornalistas e para aqueles que colaboram com eles no seu trabalho na Igreja.

O autorPablo Alfonso Fernández