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Relatório Sauvé: o episcopado francês reconhece a responsabilidade institucional da Igreja

O estudo Sauvé, encomendado pela Conferência Episcopal Francesa, não se limitou a uma contagem numérica, mas exigiu uma análise detalhada das causas e possíveis soluções para a deriva do abuso. Os bispos não quiseram "contestar a lei" mas sim assumir a sua responsabilidade e apelar a uma profunda conversão.

José Luis Domingo-22 de Novembro de 2021-Tempo de leitura: 4 acta

As recentes revelações devastadoras do Relatório Sauvé sugerindo um número significativo de vítimas de abuso sexual por padres e religiosos durante os últimos 70 anos em França foram analisadas pelos bispos franceses na sua reunião em Lourdes na semana passada.

O estudo encomendado pela Conferência Episcopal não se limitou a uma contagem numérica, mas exigiu uma análise detalhada das causas e dos possíveis remédios para esta deriva. A hierarquia tinha dado a M. Sauvé, antigo Vice-Presidente do Conselho de Estado, a liberdade de formar a sua equipa e de seguir os métodos que ele considerava apropriados. O carácter independente desta comissão, que incluía personalidades com múltiplas e complementares competências e diversas opiniões filosóficas e religiosas: crentes, não crentes, agnósticos e ateus, foi realçado. A Igreja quis demonstrar transparência absoluta e o seu desejo de tomar as medidas necessárias para erradicar estes crimes.

Por outro lado, a recuperação da credibilidade aos olhos da opinião pública foi entendida como uma necessidade que requeria meios extraordinários. No fundo, o caso do Abbé Preynat - agora demissionário do estado clerical - chocara a opinião pública devido ao número exorbitante de jovens batedores agredidos e tinha colocado o próprio Cardeal de Lyon, D. Barbarin, no banco dos réus pelo crime de não renúncia, condenado em primeira instância a seis meses de prisão e finalmente absolvido em recurso. Um filme intitulado "Graças a DeusO "The Affair" de François Ozon foi amplamente divulgado no país.

Tendo tornado públicos os resultados do relatório já conhecidos, os bispos aceitaram sem reservas estas conclusões, desejando tornar pública uma profunda mudança de mentalidade e um arrependimento sincero. O órgão episcopal como um todo reconheceu a responsabilidade institucional da Igreja e o carácter sistémico desta violência, "no sentido de que não são apenas as acções de indivíduos isolados, mas também tornadas possíveis por um contexto global", nas palavras de D. de Moulins Beaufort, presidente da Conferência Episcopal Francesa: "um sistema eclesiástico degradado".

As medidas votadas pelos bispos em 8 de Novembro reconhecem que a forma como estas situações foram tratadas no passado, apenas internamente, não ajudou a esclarecê-las. Num esforço para corrigir qualquer injustiça, foi criado um órgão independente da Igreja para o reconhecimento e reparação da violência sexual para compensar todas as vítimas "custe o que custar". Os meios práticos para angariar os fundos necessários ainda não foram determinados, mas a venda de imóveis ou bens móveis em solidariedade entre as dioceses não está excluída. Os bispos de França pedem ao Papa que envie visitantes apostólicos para analisar a forma como cada diocese está a trabalhar nesta área. Foram criados nove grupos de trabalho, liderados por leigos, de acordo com as recomendações do relatório Sauvé, com o objectivo de renovar a forma de governação.

No final da assembleia plenária, na esplanada da Basílica de Lourdes, durante uma celebração penitencial, os bispos e os fiéis presentes ajoelharam-se para pedir perdão ao Senhor por todos os abusos cometidos na Igreja, enquanto os sinos tocavam para os mortos para todas as vítimas.

A reacção do episcopado corresponde a uma consciência da responsabilidade perante Deus e a humanidade por esta grave perversão com que a Igreja não foi capaz de lidar no seu interior, independentemente do comportamento de outras instituições sociais seculares. Os bispos não quiseram "contestar a lei" mas sim assumir a sua responsabilidade e apelar a uma profunda conversão. E isto é talvez o mais significativo a ser retido pelas autoridades eclesiásticas.

Sobre o relatório Sauvé

Do ponto de vista de um observador externo, embora reconhecendo a gravidade do problema e sem o minimizar, é legítimo sugerir algumas questões que poderiam qualificar de algum modo as conclusões do relatório Sauvé, de modo a torná-las mais relevantes para a transformação da sociedade eclesial francesa.

A encenação da apresentação do relatório aos bispos a 5 de Outubro de 2021 mostrou que a Comissão tinha tomado consciência da sua missão de conselho e aconselhamento, transformando-a numa missão de sanção à maneira de um tribunal moral da sociedade, sem possibilidade de recurso e excedendo a missão que lhe tinha sido confiada. É louvável que a Comissão seja independente, mas qualquer trabalho de auditoria independente requer uma fase de confrontação antes da publicação do relatório. Tudo indica que os bispos não tiveram a possibilidade de estudar o relatório antes da sua apresentação pública.

Independente não significa incriminatório. M. Sauvé deu o primeiro quarto de hora da apresentação ao presidente de uma associação de vítimas que não poupou nenhuma censura aos bispos: "vós sois a vergonha da nossa humanidade"; repetindo e repetindo à audiência presente: "deveis pagar por todos estes crimes". Perante as conclusões do relatório, disse, "o melhor que se pode fazer é calar a boca e começar a trabalhar arduamente e rapidamente para reformular completamente o sistema". Uma semana mais tarde, apelaria à demissão de todos os bispos de França. 

Para além destas manifestações violentas, certamente em relação a experiências dolorosas, as recomendações do relatório para o futuro são amplamente relevantes, sem excluir algumas recomendações isoladas que são menos relevantes ou bastante impertinentes em contraste com a especificidade da Igreja, tais como, por exemplo, abolir o selo sacramental da confissão ou reconsiderar o celibato dos padres nesta área.

O relatório indica que a maior parte dos abusos ocorreu entre 1950 e 1970. Ao avaliar as causas e propor recomendações, existe sem dúvida um anacronismo em considerar estes acontecimentos passados com a mentalidade e parâmetros actuais, sem considerar o longo caminho que a Igreja fez e a sociedade está a tentar desmascarar estes comportamentos e as coordenadas culturais e espaço-temporais que lhes permitem ter lugar. O relatório faz uma análise detalhada por períodos de 20 e 30 anos, contudo, a síntese global esbate as diferenças e pode levar a pensar que a média deste longo período de 70 anos de agressão contra menores constitui a média actual. Assim, poder-se-ia concluir falsamente que actualmente 3 % de padres são abusadores e que as instituições religiosas são mais perigosas para as crianças do que qualquer outra, quando na realidade o período mais negro, com 56 % de agressões, foi identificado na década de 1960.

De um ponto de vista objectivo, deveria ter sido feita uma avaliação global das práticas de pederastia em França desde 1950, e dos parâmetros culturais que lhes estão subjacentes, em todos os sectores ligados à juventude (educação nacional, clubes desportivos, etc.) e não apenas centrada na Igreja.) e não se concentrar apenas na Igreja, esquecendo que nesses anos uma certa elite intelectual em França defendeu estas práticas (basta recordar Jean-Paul Sartre, Roland Barthes, Simone de Beauvoir, Gilles et Fanny Deleuze, Francis Ponge, Philippe Sollers, Jack Lang, Bernard Kouchner, Louis Aragon, André Glucksmann, François Châtelet e muitos outros).

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