A audiência teve lugar na Capela Sistina, que acolheu cerca de 200 artistas: pintores, escultores, arquitectos, escritores, poetas, músicos, realizadores e actores. Entre eles estavam os escritores Javier Cercas (Prémio Planeta 2019) e Cristina Morales, o artista Gonzalo Borondo e o guitarrista Amigo Girol.
A Igreja e a arte
"A vossa presença deixa-me feliz, porque a Igreja sempre teve uma relação com os artistas que se pode qualificar de natural e especial. É uma amizade natural, porque o artista leva a sério a profundidade inesgotável da existência, da vida e do mundo, mesmo nas suas contradições e aspectos trágicos. Esta profundidade corre o risco de se tornar invisível ao olhar de muitos saberes especializados, que respondem a necessidades imediatas, mas que têm dificuldade em ver a vida como uma realidade multifacetada.
O artista recorda-nos a todos que a dimensão em que nos movemos, mesmo que não tenhamos consciência disso, é a do Espírito. A vossa arte é como uma vela que se enche do Espírito e nos mantém em movimento. A amizade da Igreja com a arte é, portanto, natural. Mas é também uma amizade especial, sobretudo se pensarmos nos muitos trechos de história que percorremos juntos e que pertencem ao património de todos, crentes e não crentes", indicou o Papa no seu discurso.
Francisco salientou ainda que a relação que sempre existiu entre a Igreja e a arte deve existir também no nosso tempo.
A criatividade do artista
"O artista é uma criança - isto não deve soar como um insulto - significa que ele se move, antes de mais, no espaço da invenção, da novidade, da criação, de trazer ao mundo algo que nunca foi visto antes. Ao fazê-lo, desmente a ideia de que o homem é um ser para a morte. É verdade que o homem deve aceitar a sua mortalidade, mas não é um ser para a morte, mas para a vida. Uma grande pensadora como Hannah Arendt afirma que o que é próprio do ser humano é viver para trazer novidade ao mundo. Esta é a dimensão da fecundidade humana. Trazer novidade. Mesmo na fecundidade natural, cada filho é uma novidade".
Esta mesma criatividade natural é também vivida pelos artistas, que contribuem com a sua própria "originalidade": "Nas vossas obras apresentais-vos sempre como os seres irrepetíveis que todos somos, mas com a intenção de criar ainda mais (...) trazeis à luz o inédito, enriqueceis o mundo com uma nova realidade (...) A criatividade do artista parece assim participar na paixão geradora de Deus, a paixão com que Deus criou. Vós sois aliados do sonho de Deus! Sois olhos que olham e sonham. Não basta olhar, é preciso também sonhar (...) Nós, seres humanos, ansiamos por um mundo novo que não veremos totalmente com os nossos olhos. Mas desejamo-lo, procuramo-lo, sonhamos com ele. Os artistas têm, portanto, a capacidade de sonhar novas versões do mundo".
Entre a realidade e o sonho
Neste sentido, citando Guardini, o Papa salientou que os artistas são um pouco como "profetas". A arte vai para além das aparências e da falsa beleza, para além da "maquilhagem", pois actua "como consciência crítica da sociedade". Deste modo, "faz-nos pensar", "alerta-nos", revelando a realidade com "as suas contradições, nos seus aspectos que é mais cómodo ou conveniente manter escondidos". A arte, comentou o Papa, tem a capacidade de nos confrontar com coisas que "por vezes nos perturbam, criticando os falsos mitos actuais, os novos ídolos, os discursos triviais, as armadilhas do consumismo, as artimanhas do poder". É por isso que os artistas têm "a capacidade de ir mais além, na tensão entre a realidade e o sonho".
Mais adiante, o Papa estabeleceu uma relação entre arte e fé: "Uma das coisas que aproxima a arte da fé é o facto de perturbar um pouco. A arte e a fé não podem deixar as coisas como estão: mudam-nas, transformam-nas, movem-nas. A arte nunca pode ser um anestésico; ela dá paz, mas não adormece as consciências, mantém-nas acordadas. Muitas vezes, vocês, artistas, também tentam explorar as profundezas da condição humana, os abismos, as partes obscuras. Não somos apenas luz, e vocês recordam-nos isso; mas é necessário lançar a luz da esperança nas trevas do ser humano, do individualismo e da indiferença".
Arte e beleza
Neste sentido, o Papa pediu aos artistas que nos ajudem a "vislumbrar a luz, a beleza que salva".
Porque, como salientou Francisco, "a arte sempre esteve ligada à experiência da beleza. Simone Weil escreveu: "A beleza seduz a carne para obter a permissão de passar para a alma" (L'ombra e la grazia, Bolonha 2021, 193). A arte toca os sentidos para animar o espírito e fá-lo através da beleza, que é o reflexo das coisas quando são boas, correctas, verdadeiras. É o sinal de que algo tem plenitude: é então que dizemos espontaneamente: "Que bonito". A beleza faz-nos sentir que a vida caminha para a plenitude. Na verdadeira beleza, começamos a sentir a saudade de Deus. Muitas pessoas esperam que a arte se volte mais para a beleza.
O Papa recordou que é verdade que existe um tipo de beleza que é falsa e artificial. "A verdadeira beleza, de facto, é um reflexo da harmonia. Na teologia - é interessante - os teólogos descrevem a paternidade de Deus, a filiação de Jesus Cristo, mas quando se trata de descrever o Espírito Santo: o Espírito é harmonia. Ipse harmonia est. É o Espírito que faz a harmonia.
A harmonia do Espírito
Francisco prosseguiu dizendo que o artista também possui algo desse Espírito para criar harmonia. "A harmonia é quando há várias partes, diferentes umas das outras, mas que formam uma unidade, diferente de cada uma das partes e diferente da soma das partes. É uma coisa difícil, que só o Espírito pode tornar possível: que as diferenças não se tornem conflitos, mas diversidades que se integram; e ao mesmo tempo que a unidade não seja uniformidade, mas abrace o múltiplo. A harmonia faz estes milagres, como no Pentecostes.
Esta harmonia nasce por vezes, paradoxalmente, de um choque: "Impressiona-me sempre o pensamento do Espírito Santo como aquele que permite as maiores perturbações - pensemos na manhã de Pentecostes - e depois faz a harmonia. O que não é equilíbrio, não, para fazer harmonia é preciso primeiro desequilíbrio; harmonia é uma coisa diferente de equilíbrio". Esta mensagem, prosseguiu o Papa, é de grande atualidade, pois recordou que vivemos numa "globalização globalizante", que é o "perigo do nosso tempo". O Papa advertiu que esta uniformização "pode funcionar sob um falso pretexto de unidade".
A missão dos artistas
Neste contexto, o papel do arte é fundamental: "Vós, artistas, podeis ajudar-nos a dar lugar ao Espírito. Quando vemos o trabalho do Espírito, que é o de criar harmonia a partir das diferenças, não para as aniquilar, não para as uniformizar, mas para as harmonizar, então compreendemos o que é a beleza.
O Papa encorajou os artistas a continuarem a estimular a sua criatividade e a "percorrer este caminho". Antes de se despedir, o Santo Padre pediu-lhes que não esquecessem os pobres, que também precisam de arte e de beleza, ainda mais do que outros, devido a circunstâncias muito difíceis nas suas vidas. "Normalmente não têm voz para se fazerem ouvir. Vós podeis ser os intérpretes do seu grito silencioso". O Presidente do Parlamento Europeu exprimiu ainda o desejo de que as suas obras de arte "dêem glória a Deus, que é o Pai de todos, e que todos procuram, mesmo através da arte".