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Humanae Vitae, profética cinquenta anos mais tarde

Omnes-2 de Julho de 2018-Tempo de leitura: 10 acta

Passaram 50 anos desde a encíclica Humanae Vitae, publicada pelo Beato Paulo VI a 25 de Julho de 1968. O Papa tratou do amor e da sexualidade no casamento, e anunciou com visão profética as consequências se o amor conjugal fosse distorcido pela separação das dimensões unitiva e procriativa.

Texto - Stéphane Seminckx, Bruxelas
Doutor em Medicina pela Universidade de Lovaina e Doutor em Teologia Moral pela Universidade da Santa Cruz.

Todos nós sonhamos com um grande amor. Todos aspiramos ao ideal de fundar uma família unida (ou de responder ao apelo de Deus com o dom total do celibato). Todos nós pensamos que esta é a chave para a felicidade. Mas, como o Papa Francisco diz em Amoris laetitia, "a palavra 'amor', uma das palavras mais frequentemente usadas, é muitas vezes desfigurada" (89). Muitas pessoas falam de amor sem realmente saberem o que é. É por isso que é essencial obter uma verdadeira ideia de amor, através da experiência e também através da oração e da reflexão.

A encíclica Humanae Vitae, publicada em 1968 pelo Papa Paulo VI, dizia nada menos que quando afirmava no n. 9 que "é da maior importância ter uma ideia precisa do amor conjugal". Não podemos estragar a nossa vida - ou hipotecar o futuro do povo que nos foi confiado - estando enganados sobre o amor verdadeiro: "Enganar-se no amor é a coisa mais terrível que pode acontecer, é uma perda eterna, pela qual não se compensa nem no tempo nem na eternidade" (Sören Kierkegaard).

Mensagem actual

Por esta razão, cinquenta anos depois, a mensagem da Humanae Vitae ainda é muito oportuna. Esta encíclica não é simplesmente sobre contracepção; é sobretudo a ocasião para afirmar de forma decisiva a grandeza sublime do amor humano, imagem e semelhança do Amor divino. Na altura do seu aparecimento, este documento deu origem a uma longa série de debates e numerosas tensões. Muitos cristãos ficaram perplexos e foram mal compreendidos. Alguns romperam então com a Igreja, ou porque rejeitaram explicitamente o seu ensino, ou porque abandonaram a prática religiosa, ou porque tentaram viver a sua fé com as costas voltadas para a Igreja.
Desde então, muita água tem corrido sob as pontes. Os espíritos têm sido acalmados, muitas vezes ao preço da indiferença. Hoje, a questão pode ser examinada com mais serenidade e, na minha opinião, temos o dever de o fazer: a coerência da nossa vocação humana e cristã está em jogo.

O Papa Francisco convida-nos a fazê-lo quando fala da "redescoberta da mensagem da encíclica Humanae Vitae de Paulo VI" (Amoris laetitia, 82 e 222). São João Paulo II já tinha encorajado os teólogos a "... redescobrir a mensagem de Paulo VI" (Amoris laetitia, 82 e 222).aprofundar as razões deste ensino [da Humanae Vitae], que é um dos deveres mais urgentes de qualquer pessoa empenhada no ensino da ética ou no cuidado pastoral da família. De facto, não é suficiente propor este ensinamento fielmente e na sua totalidade, mas é também necessário mostrar as suas razões mais profundas."(Discurso, 17-09-1983).

Isto é particularmente necessário, uma vez que a ideologia do sexo livre, nascida nos anos 60, não parece ter libertado a sexualidade. Um número crescente de mulheres está cansado da pílula e dos seus muitos efeitos secundários no seu corpo e psique. Cada vez mais vêem a contracepção como uma imposição do mundo masculino.

Contra-concepção

A nível das relações internacionais, o controlo da natalidade tornou-se uma arma nas mãos dos países ricos, que a impõem às nações desfavorecidas em troca de ajuda económica. Ao mesmo tempo, nestes mesmos países desenvolvidos, que são profundamente marcados pela mentalidade contraceptiva, a demografia está a sofrer um declínio dramático, o que coloca imensos desafios ao Ocidente. Finalmente, muitos moralistas acreditam que a "linguagem contraceptiva" distorce a comunicação entre cônjuges ao ponto de encorajar uma explosão no número de divórcios.

Paralelamente a este desenvolvimento, desde 1968, muitos filósofos e teólogos têm trabalhado para uma melhor compreensão da doutrina da Humanae Vitae. Além disso, o magistério de São João Paulo II deu um contributo essencial para esta reflexão, tal como o fizeram Bento XVI e Francisco.

Porquê reacções tão animadas?

A recepção mitigada da Humanae Vitae é parcialmente explicada pelo contexto histórico em que a encíclica apareceu. A Igreja encontrava-se então no início do chamado período pós-conciliar. A sociedade civil estava a passar pela revolta de Maio de 68, e o mundo vivia na psicose da superpopulação.

O documento já devia ter sido elaborado há muito tempo. As suas recomendações desafiaram as conclusões de um grupo de especialistas de renome (o chamado grupo "maioritário", que se separou do resto da Pontifícia Comissão sobre Problemas da Família, Nascimento e População, criada por São João XXIII em 1962), cujo relatório foi divulgado a muitos jornais em Abril de 1967.

Mas este contexto não explica tudo. São sobretudo as questões abordadas pela Humanae Vitae que estão em jogo. Porque se trata de questões fundamentais que dizem respeito a todos: o amor humano, o significado da sexualidade, o significado da liberdade e da moralidade, o casamento.

Na Igreja, a contracepção tem sido reprovada desde os primeiros séculos do cristianismo (na encíclica Casti Connubii de 1930, Pio XI fala de "uma doutrina cristã transmitida desde o início e nunca interrompida"). Contudo, até ao final dos anos 50, tinha sido sempre identificado - de uma forma mais ou menos confusa - com onanismo (coitus interruptus) ou com meios mecânicos que impedem o desenvolvimento normal do acto sexual (preservativos, diafragmas, etc.). Para os progestagénios, descobertos em 1956, tornam as mulheres estéreis sem interferir - pelo menos aparentemente - no desenvolvimento do acto sexual. Visto de fora, um acto sexual realizado com ou sem a pílula é exactamente o mesmo.

A questão precisa colocada em 1968 era a seguinte: a pílula merece ser chamada de "contracepção"? Para um certo número de teólogos, a resposta foi e continua a ser negativa, porque a pílula não perturba o acto conjugal no seu desenvolvimento "natural". Além disso, vêem na contracepção hormonal uma confirmação da dignidade humana, que é chamada a tirar partido das leis da "natureza" por meio da sua inteligência. Mas o que significam "natural" e "natureza" quando falamos da pessoa humana?

O que mudou desde 1968?

O Beato Paulo VI escreveu uma encíclica bastante curta, cujo conteúdo está centrado numa espécie de axioma, que assenta num facto simples: pela sua natureza, pela vontade do Criador, o acto conjugal possui uma dimensão unitiva e uma dimensão procriadora, que não pode ser separada. Como todos os axiomas, este não está sujeito a demonstração. Os argumentos que a apoiam virão mais tarde, essencialmente durante o pontificado de São João Paulo II.

Tem-se dito muitas vezes que a Humanae Vitae era um documento profético, devido ao seu número 17, onde o Papa Paulo VI anuncia as possíveis consequências da rejeição da visão de amor proclamada pela Igreja. É impressionante reler hoje este número 17: o anúncio do aumento da infidelidade conjugal, do declínio geral da moralidade, do domínio crescente dos homens sobre as mulheres, das pressões dos países ricos sobre os países pobres em termos de taxas de natalidade... Tudo isto se tornou realidade.

Profético

Mas a Humanae Vitae é profética, na minha opinião, sobretudo devido ao axioma que a encíclica colocou como fundamento de toda a sua reflexão: as dimensões unitivas e procriativas do acto conjugal não podem ser separadas sem desnaturar o amor entre os cônjuges. Este princípio já tinha sido evocado por Pio XI, mas foi Paulo VI que o colocou na raiz da sua visão do amor conjugal.

O pensamento de Karol Wojtyla/John Paul II tem feito muito para explicar e enriquecer esta visão. Desde 1960, com o seu famoso livro Amor e Responsabilidade, centrou o debate na pessoa humana e na sua dignidade, em particular na sua vocação para fazer de si mesmo um dom desinteressado. A "lei do dom" é para o Papa polaco a base de toda a ética do casamento, da sua unidade, da sua indissolubilidade, da exigência de fidelidade e da verdade necessária de cada acto conjugal.

Karol Wojtyla, como pai conciliar, contribuiu para a redacção da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, especialmente para a parte que trata do casamento. Com um grupo de teólogos polacos, enviou um memorando sobre a questão da contracepção ao Papa Paulo VI em Fevereiro de 1968, alguns meses antes de a encíclica ser publicada.

Entre Setembro de 1979 e Novembro de 1984, quando se tornou Papa, dedicou 129 catequeses de quarta-feira ao que tem sido chamado a "teologia do corpo", um conjunto de "teologia do corpo".reflexões que [...] pretendem constituir um amplo comentário sobre a doutrina contida [...] na encíclica Humanae Vitae"(São João Paulo II, Audiência 28-02-1984).

Tomou também a iniciativa de numerosos documentos que tratam extensivamente ou fazem referências importantes à moral conjugal e à defesa da vida: a exortação apostólica Familiaris Consortio (1981), a instrução Donum Vitae (1987) sobre o respeito pela vida humana nascente e a dignidade da procriação, o Catecismo da Igreja Católica (1992), a encíclica Veritatis splendor (1993) sobre a moral fundamental, a Carta às Famílias (1994), a encíclica Evangelium Vitae (1995), etc.

A castidade é liberdade

Este magistério de João Paulo II ajudou a esclarecer uma série de pontos essenciais no debate sobre a Humanae Vitae.

Antes de mais, pode-se apontar a noção de pessoa como um "todo unificado" (Familiaris Consortio, 11): não se pode compreender a visão cristã do casamento com uma visão dualista do homem, onde o espírito representaria a pessoa enquanto o corpo não seria mais do que um apêndice, um "instrumento" ao serviço do espírito. Somos um só corpo e o casamento é a vocação para dar o "todo unificado" que somos, para que se forme "uma só carne".

Podemos então indicar a noção de castidade, entendida como a integração da sexualidade na pessoa, como a integridade da pessoa em vista da integralidade do dom (Catecismo da Igreja Católica, 2337): o acto conjugal não é moralmente bom só porque está em conformidade com certas características fisiológicas da mulher; é bom quando é virtuoso, quando a razão ordena a tendência sexual ao serviço do amor. A castidade é liberdade, automestria, domínio sobre a própria personalidade em vista do dom de si, com a riqueza das suas dimensões fisiológicas, psicológicas e afectivas.

O papel de Veritatis Splendor

A contribuição da encíclica de São João Paulo II Veritatis Splendor, que Bento XVI considerou um dos documentos mais importantes do Papa polaco, nunca é demais salientar.

Veritatis Splendor lembra-nos que a consciência não é o criador da norma, o que levaria à arbitrariedade e subjectivismo, ao postulado de "autonomia", que prevalece na maioria dos debates bioéticos actuais, onde o simples facto de se desejar algo é suficiente para o justificar. Veritatis Splendor lembra-nos que a consciência é um arauto, ou seja, proclama uma lei, plenamente assumida, mesmo que venha de Outro. A verdadeira liberdade consiste em caminhar para o bem por si mesmo, um bem que a consciência nos mostra, da mesma forma que uma bússola indica o norte. A consciência é como uma participação livre e responsável na visão de Deus sobre o bem e o mal.

O acto conjugal: dom total

A questão do objecto do acto é igualmente fundamental para compreender o que é o acto conjugal. Não é um simples acto sexual, pois neste sentido o adultério e a fornicação são também actos sexuais, tal como o acto sexual contraceptivo. Se a linguagem utiliza termos diferentes para um acto aparentemente idêntico, é porque, de um ponto de vista moral, um acto pode ter um significado diferente, um "objecto" diferente, e este objecto é o primeiro elemento a ser considerado no julgamento da bondade desse acto.

O acto conjugal é definido pela vontade de significar, consumar ou celebrar a doação total de uma pessoa a outra. O acto sexual contraceptivo é a negação desta definição, porque a pessoa, ao não dar a sua potencialidade procriadora, não se dá inteiramente a si própria. Este ponto é essencial para a compreensão da doutrina da Humanae Vitae.

E está, além disso, ligada às noções da natureza humana e do direito natural, que estão no centro dos grandes debates filosóficos de hoje. Muitos dos nossos contemporâneos rejeitam a própria ideia de "natureza" em nome da autonomia e de uma certa concepção de liberdade. João Paulo II falou da rejeição de "da noção do que mais profundamente nos constitui como seres humanos, nomeadamente a noção de "natureza humana" como um "dado real", e no seu lugar foi colocado um "produto do pensamento" livremente formado, livremente modificável de acordo com as circunstâncias."(Memória e Identidade). A teoria do género é uma manifestação extrema desta rejeição.

Respeitar a natureza do homem

Bento XVI perguntou-se: porquê exigir respeito pela natureza ecológica e, ao mesmo tempo, rejeitar a natureza mais íntima do homem? A resposta: "A importância da ecologia hoje em dia é indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder a ela de forma coerente. No entanto, gostaria de abordar seriamente um ponto que me parece ter sido esquecido tanto hoje como ontem: existe também uma ecologia humana. O homem também tem uma natureza que deve respeitar e que não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que ele cria para si próprio. O homem não se cria a si próprio. Ele é espírito e vontade, mas também natureza, e a sua vontade é apenas quando respeita a natureza, ouve-a, e quando se aceita por aquilo que é, e admite que não se criou a si próprio. Desta forma, e apenas desta forma, a verdadeira liberdade humana é realizada."(Discurso no Bundestag, 22-9-11).

Somos criaturas

A "verdadeira liberdade humana" é uma liberdade criada, recebida encarnada, finita, inscrita num ser configurado por uma natureza, um projecto, tendências: "...".Não caiamos no pecado de fingir substituir o Criador. Nós somos criaturas, não somos omnipotentes. O que é criado precede-nos e deve ser recebido como um presente."(Amoris laetitia, 56). Ser livre vontade nunca consiste em querer libertar-se da nossa natureza, mas sim em assumir pessoalmente, consciente e voluntariamente, as tendências nela inscritas. Uma liberdade dirigida contra a nossa natureza ".seria reduzido ao esforço de se libertar"(Albert Chapelle).

Por detrás desta objecção, podemos vislumbrar o questionamento da nossa origem. A rejeição da nossa própria natureza seria compreensível se cada um de nós fosse a consequência de uma simples competição de circunstâncias, de uma colisão aleatória de moléculas, de uma mutação ou de um destino cego, pois então a nossa existência seria absurda, sem projecto ou destino. Haveria razões para se revoltar, para querer ignorar ou transformar esta natureza, em vez de a receber como um presente.

Mas a realidade é bastante diferente. Na origem da nossa vida há um Amor criativo, o de um Deus que, desde toda a eternidade, nos concebeu e nos trouxe à existência num dado momento da história humana. Somos um fruto do Amor, somos um presente da superabundância do Amor infinito de um Deus que, por assim dizer, cria seres com o único propósito de derramar o seu Amor neles. "Nele (Cristo) ele (Deus Pai) escolheu-nos (Deus Pai) antes da criação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença, em nome do amor"(Ef 1,4).

Redescobrindo a liberdade

Trata-se de redescobrir a verdadeira liberdade. O acto próprio da liberdade é o amor. Mas se, perante o amor, o primeiro acto da nossa liberdade consiste em recusar o dom da nossa natureza, em recusar o que somos, como podemos possuir este "eu" que nos recusamos a assumir? E se não nos possuirmos a nós próprios, como seremos capazes de nos dar a nós próprios? E se somos incapazes de nos darmos a nós próprios, onde está o amor conjugal?

A conversão do intelecto pressupõe a conversão do coração: para aprender a amar, há que aceitar o Amor. Certas reacções à Humanae Vitae recordam passagens do Evangelho em que o discurso de Jesus sobre o amor choca com a falta de compreensão das pessoas. Quando Jesus fala da indissolubilidade do casamento, os seus discípulos reagem duramente: "Se essa é a condição da relação de um homem com a sua esposa, não tem importância casar" (Mt 19,10).

"Deus coloca-nos sempre em primeiro lugar".

Nestas duas passagens evangélicas, Jesus fala do casamento indissolúvel e do dom do seu Corpo na Eucaristia; Humanae Vitae refere-se à integridade do dom no pacto conjugal. Os três temas correspondem a características fundamentais do amor pacto que Deus nos revela. E esta revelação deixa-nos perplexos. Ultrapassa-nos. Até nos surpreende porque, para além das exigências, a nossa miopia por vezes torna difícil para nós ver os dons de Deus.

Deus amou-nos primeiro. Como diz o Papa Francisco, "Deus coloca-nos sempre em primeiro lugar". E este amor dá a graça de viver o dom de si, a fidelidade, a generosa abertura à vida; é misericórdia e dá a compreensão de Deus, a sua paciência e perdão perante as nossas fraquezas e os nossos erros. Só Cristo traz ao desafio do amor a resposta decisiva do "amor de Deus".a esperança (que) não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado."(Rm 5,5). n

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