Em Madrid, conversámos com Alejandro Monteverde, o realizador do filme, e com Javier Godino, que interpreta Jorge, um polícia colombiano. Som da liberdade, um filme que aborda a terrível realidade do tráfico sexual de crianças chega às bilheteiras espanholas, graças a a contracorriente filmes depois de ter sido o filme independente número 1 nos Estados Unidos.
Apesar de não ter sido apoiado pela grande indústria, este corajoso filme, protagonizado por Jim Caviezel ("A Paixão de Cristo"), Mira Sorvino ("Poderosa Afrodite"), Eduardo Verástegui e Javier Godino, ultrapassou os 150 milhões de dólares nas suas primeiras três semanas de exibição nos cinemas.
Som da Liberdade,(Sound of Freedom) conta a história de Tim Ballard, um antigo agente da Segurança Interna dos EUA que desistiu de tudo para lutar contra o tráfico de crianças. Através de uma história comovente e, ao mesmo tempo, horripilante, o espetador entra neste terrível flagelo mas com a luz da esperança de fazer, com este filme, um ponto de viragem na consciência colectiva e pessoal desta realidade.
Alejandro, como é que a história de Tim Ballard chegou ao teu conhecimento?
-Estava a escrever uma ficção sobre esta questão do tráfico de crianças há cerca de três meses. Nessa altura, o produtor (Eduardo Verástegui) perguntou-me se eu queria conhecer o Tim Ballard. Procurei informações sobre ele e percebi que era um especialista no assunto, que tinha trabalhado para o governo federal. Pensei que seria ótimo falar com ele como parte da investigação mas, quando o conheci, percebi que a sua vida ultrapassava a ficção que eu andava a escrever há três meses. Mudámos de rota e começámos a escrever a sua vida como um argumento.
Como realizador, o que o levou a dar este passo?
-O que mais me impressionou foi o que o levou a deixar os seus filhos para ir salvar os filhos de outras pessoas. Deixar a família, o emprego, a segurança económica..., tudo, para ir salvar crianças que não são americanas. Nos EUA há muito patriotismo e eu admiro-o. Ballard é um agente americano, um agente do governo, e a sua primeira missão foi resgatar crianças colombianas, ou melhor, crianças da Colômbia, de toda a América Latina, América Central e América do Sul.
Para além disso, também me chamou a atenção a forma como ele começou a juntar este grupo, de várias nacionalidades, por exemplo, com a personagem Jorge, interpretada por Javier Godino.
Ballard disse-me uma vez que as crianças não deviam ter nacionalidade. Por outras palavras, deviam ser protegidas, literalmente, por todo o mundo. Se uma criança é violada no Haiti, deve ser da responsabilidade de todo o mundo; as baleias têm essa proteção, mas as crianças não? Para Ballard, as crianças são o coração do mundo e se não protegermos o coração, podemos entrar em paragem cardíaca.
Abordar esta questão Som da liberdade tocou-o interiormente?
-Sim, acho que sim, para mim e para todos os que trabalharam no filme. É um tema muito complexo que evitámos durante muito tempo. Não é algo de novo, historicamente estamos nesta escuridão há muito tempo.
O simples facto de lançar uma luz sobre esta escuridão e criar um espaço para iniciar uma conversa social já começa a mudar-nos. Mas, mais do que qualquer outra coisa, estou impressionado com o número de vítimas que se abrem depois de verem o filme. Em todas as apresentações que fiz, pelo menos uma ou duas vítimas sentiram a confiança necessária para partilhar a sua história comigo. Digo-lhes sempre: "Gostaria de a ajudar, mas não sou psicóloga, nem especialista na matéria... Mas agradeço que tenha a coragem de a contar, de falar sobre ela. Se este filme o inspirou, siga-o". Este último, esta conversa, é um trabalho que eu não faço sozinho, tem de ser feito em comunidade.
Como é que se faz um filme sobre um tema tão difícil que possa ser visto sem medo?
-Para mim, o abuso de crianças é um problema que não é um problema de um país, não é um problema de uma época. É uma situação contra a qual todos temos de atuar. Então como é que se faz um filme sobre um assunto tão forte que toda a família pode ver? A resposta, na minha opinião, é o cinema. O cinema pode ser apreciado se o filme utilizar elementos poéticos para descrever uma escuridão, sem que tenhamos de ver algo de que nos arrependeremos mais tarde.
Foi difícil não cair no "exibicionismo"?
- [Alejandro Monteverde] Foi um processo intenso. Primeiro, sobre o guião: é mais barato corrigir uma cena no papel do que no filme. Primeiro começámos a testar o guião, tornando-o o mais descritivo possível: Aquelas cenas em que a cortina se fecha, ficamos lá fora "à espera", e ouvimos os cães a ladrar... Algumas delas voltaram-me à memória. Foram dois anos a trabalhar no guião e, assim que ficaram no papel, começámos a filmar.
Também durante a filmagem houve momentos em que a câmara estava muito forte e eu disse "Pára, vamos mudar isto", um ajuste de câmara, uma posição..., porque estávamos muito conscientes dessa linha ténue, que não devíamos ultrapassar.
- Javier Godino] [Javier Godino A viagem é interna ao espetador. É como em Tubarão Spielberg, tem medo de um tubarão do qual só vê uma barbatana..., imagina-o. É o espetador que faz a viagem interior.
O Som da Liberdade traz lágrimas aos olhos de mais do que um espetador. Já chorou ao ver o filme?
- Javier Godino] [Javier Godino Eu vi-o. Vi-o recentemente, depois de terminado. Fizemos este filme em 2018 e, ao vê-lo, há alguns momentos comoventes, outros muito difíceis. Estamos numa altura em que muitos de nós conhecem vítimas de abusos e isso mexeu com muitas coisas dentro de mim. Tive aquela viagem interior de que falei antes. Mas também tive lágrimas de esperança com isso "Estão a ouvir isto? É o som da liberdade".Fiquei comovido nesse momento. Isso é cinema.
Porque é que demorou tanto tempo a arrancar com este projeto?
- [Alejandro Monteverde] Foi uma combinação de factores. O primeiro é o desafio de vender este filme ao público. Este foi o maior desafio para os distribuidores, quando ouviram o tema. O cinema já estava em queda antes da pandemia. Lembro-me de ler um artigo na altura em que Spielberg falava do cinema como uma experiência da Broadway, algo que se faz uma ou duas vezes por ano, no máximo. Os filmes que chegavam às salas de cinema eram grandes filmes, os filmes independentes estavam a desaparecer...
Pensando bem, não me lembro de nenhum outro filme independente que tenha tido tanto sucesso desde que o cinema começou a cair. Se as pessoas iam pagar 15 dólares para ver um filme, queriam uma produção de 200 milhões de dólares, não uma produção de 2 milhões de dólares....
Espero que este filme seja um divisor de águas, que mostre que há um público para o cinema independente...
- Javier Godino] [Javier Godino ...e para estas questões difíceis.
Javier, a tua personagem é um "ar de esperança" num ambiente adverso. Como é que viveste o papel de Jorge?
- Javier Godino] [Javier Godino Com muita responsabilidade.
Contar a história de um polícia que consegue movimentar toda uma máquina policial na Colômbia para resgatar estas crianças é algo que vivi com muita responsabilidade e também com muita gratidão.
Já interpretei muitas personagens mais sombrias: violadores, assassinos..., e dói muito interpretar essas personagens porque, de certa forma, ficam um pouco "presas" no nosso corpo. As pessoas olham para nós através desse prisma.
De repente, fazer de herói, é lindo! É igualmente difícil, porque no cinema pomos as nossas emoções em jogo a toda a hora e durante três meses temos de manter essas emoções e essas imagens que o filme traz.
Vivo-o com alegria e, ao ver o sucesso, penso como é bom estarmos a conseguir um diálogo na sociedade! É verdade que estamos numa altura em que muitos abusos estão a ser descobertos, abusos, abusos .... Temos de continuar a falar sobre isso e temos de limpar muita coisa.
Como acha que vai ser recebido em Espanha?
- Javier Godino] [Javier Godino Penso que o público o vai recomendar porque é um filme em que se vê uma realidade, mas vê-se bem, com esperança. Penso que será um êxito.