Cultura

Mariano Fazio: "O cristão tem de ser tradicional, não tradicionalista: aberto à renovação, sem cair num progressivismo imprudente".

"Estamos na Igreja e no mundo para amar, porque essa é a vocação humana e cristã". Mariano Fazio, vigário auxiliar do Opus Dei, fala nesta entrevista com Omnes sobre liberdade e amor, temas do seu último livro, mas também sobre a pertença à Igreja, à família e como os clássicos podem ser uma preparação para semear o Evangelho numa sociedade secularizada. 

Maria José Atienza-17 de Maio de 2022-Tempo de leitura: 9 acta
mariano fazio

Tradução do artigo para inglês

Tradução do artigo para italiano

Mariano Fazio Fernández, sacerdote nascido em Buenos Aires em 1960, é actualmente vigário auxiliar do Opus Deihá algumas semanas, na sede da Universidade de Navarra, em Madrid, apresentou o seu livro Liberdade para amar através dos clássicos (uma revisão da qual foi publicada na edição 714 da Omnes). Uma obra, a última de quase trinta títulos, na qual, através de exemplos contidos em obras clássicas da literatura de todos os tempos, e especialmente entre elas "o clássico dos clássicos, a Bíblia", o autor mostra como a liberdade humana é orientada para o amor: para o amor de Deus e para o amor de uns pelos outros, especialmente na vida dos membros da Igreja. 

De facto, aestar na Igreja é amar Cristo e, através de Cristo, amar os outros". diz Mariano Fazio nesta entrevista, na qual partilha a sua opinião sobre a secularização e o papel da cultura actual, a tarefa das famílias na evangelização e a continuidade do magistério nos recentes pontificados. 

Falar de liberdade e amor nestes tempos, em que grande parte da sociedade parece ter perdido o seu caminho, não é fácil. Será que perdemos o nosso caminho na liberdade ou no amor? 

- penso que onde perdemos o nosso caminho está no facto de termos separado a liberdade do amor. 

Os seres humanos são criados gratuitamente para alguma coisa. Toda a realidade tem um propósito. Em algumas dimensões da cultura contemporânea tem sido apontado muito liberdade de escolhaA possibilidade de escolha em coisas sem importância. Assim, temos uma visão muito empobrecida da liberdade. 

Por outro lado, se compreendermos que esta liberdade tem uma direcção e que essa direcção - segundo a antropologia cristã - é o amor de Deus e dos outros, teríamos uma visão infinitamente mais rica da liberdade. 

Hoje fala-se muito de liberdade e no entanto parece-me que existe uma grande falta de liberdade porque infelizmente estamos todos sujeitos a vícios de todo o tipo. O principal vício é o auto-centrismo: o facto de nos concentrarmos no nosso próprio conforto, no nosso projecto pessoal e assim por diante. A par disto, vemos vícios mais específicos presentes em muitos sectores, tais como drogas, pornografia ou ambição por bens materiais. 

Estamos numa sociedade contraditória na qual proclamamos a liberdade como o mais alto valor humano, mas vivemos em cativeiro com as nossas dependências. Reduzimos a liberdade de escolher uma coisa ou outra e perdemos a visão de que se trata de uma visão orientada para o amor. 

Contudo, a sociedade vende frequentemente esta liberdade com base na multiplicidade de escolhas, de "temporariamente" experimentar tudo? 

-A felicidade não pode ser encontrada numa mera escolha. Para escolher um deve ter um critério, - essa orientação da liberdade. Kierkegaard diz que quando uma pessoa tem todas as possibilidades à sua frente, é como se estivesse perante o nada, porque não tem razões para escolher isto ou aquilo. 

Para sermos felizes, devemos orientar cada uma das nossas escolhas para que sejam coerentes com o objectivo último do amor. Isto não é apenas uma doutrina teológica ou filosófica. Todos experimentam no seu coração o desejo de felicidade. Aristóteles disse-o; e é verdade não porque Aristóteles o diga, mas porque o experimentamos em todas as circunstâncias das nossas vidas. 

Estamos muitas vezes enganados sobre onde está a felicidade. Os três lugares clássicos em que caímos são os prazeres, os bens materiais ou o nosso próprio eu: o poder, a ambição de ser admirado. E não é este o caso. 

A felicidade é encontrada no amor, o que implica a doação de si mesmo. Não o encontramos na mera escolha. Pela experiência universal, encontramos a felicidade quando escolhemos esquecer-nos de nós próprios e entregar-nos a Deus e aos outros por amor. 

Em Liberdade para amar através dos clássicos Não se volta apenas para estas grandes obras de literatura, mas também para a Bíblia com frequência. Alguns consideram que a Bíblia é um livro dogmático que tem pouco a dizer sobre liberdade. 

-Utilizo estes grandes clássicos porque são livros que, embora tenham sido escritos há séculos, ainda hoje nos falam. Os clássicos apresentam os grandes valores da pessoa humana: verdade, bondade, beleza, amor. Para além de todos eles, temos um clássico que pode ser chamado o clássico dos clássicos: a Bíblia. 

É impressionante ver como todos os grandes clássicos da literatura mundial, pelo menos os modernos e contemporâneos, se inspiram na fonte bíblica. Fazem-no explicitamente ou mesmo inconscientemente, porque estão imersos na nossa tradição cultural, que temos de preservar porque corremos o risco de a perder.

O próprio Deus escolheu uma forma narrativa para nos apresentar o seu plano para a felicidade humana. A forma narrativa é tão pouco dogmática quanto pode ser: é-nos oferecida uma narrativa histórica. Jesus Cristo, quando nos abre os caminhos da Vida, fá-lo através de parábolas; ele não apresenta uma lista de princípios dogmáticos, mas conta-nos uma história: "Um pai teve dois filhos..."; "Na estrada que conduz de Jerusalém a Jericó...". Mesmo a própria forma é uma proposta, que todos podem decidir se devem ou não seguir. 

Evidentemente, ao longo da história da Igreja, estas verdades cristãs contidas na Bíblia tiveram de ser formuladas de uma forma sistemática; mas isto não é uma imposição, será sempre uma proposta. Isto não diminui o facto de, por vezes, nós cristãos termos querido impor estas verdades por meios não muito "edificantes", mas não há dúvida de que traímos o espírito do Evangelho, que é o de propor a fé, não o de a impor. 

Publicou quase trinta livros, incluindo esboços biográficos, tais como os do Papa Francisco, São João XXIII e São Josemaría Escrivá, mas também livros sobre cultura e sociedade moderna. Porque é que se concentra em temas culturais e literários? 

-Estou convencido de que a crise da cultura contemporânea é tão grande que os pontos de referência se perderam. Não só da vida cristã, mas do que ou quem é a pessoa humana. 

Homens e mulheres são feitos para a verdade, bondade e beleza. Os grandes clássicos da literatura mundial propõem esta visão da pessoa humana. Não são livros bons ou simples, longe disso. Tratam de todos os temas-chave do drama da existência: pecado, morte, violência, sexo, amor....

Leitura de grandes obras, tais como Les Miserables, Os Noivos o Dom Quixote de La Mancha, percebe-se que uma pessoa se realiza pelo bem e não pelo mal, ou que é melhor dizer a verdade do que mentir, ou que a alma é enobrecida pela contemplação da beleza. Em suma, os clássicos dão-nos ferramentas para distinguir os grandes valores que são valores humanos e valores cristãos. Hoje em dia, é muitas vezes mais difícil ir directamente ao catecismo. Por outro lado, este estilo narrativo dos autores clássicos, que vimos ser o mesmo estilo que Deus escolheu para nos transmitir as suas verdades, pode ser uma preparação para o Evangelho. 

Vivemos numa sociedade muito secularizada, na qual é necessário preparar o terreno para plantar o Evangelho. Todas as minhas obras sobre temas culturais têm, portanto, este zelo apostólico e evangelizador. 

Salienta-se que somos criados livres para amar. Neste sentido, podemos dizer que estamos na Igreja para amar?

-Estamos na Igreja e no mundo para amar, porque essa é a vocação cristã e a vocação humana. Trata-se de uma experiência existencial. 

As pessoas que são verdadeiramente livres, com uma existência realizada, são pessoas que sabem como amar. 

Poderíamos dar tantos exemplos na história e na literatura, onde os grandes personagens, os mais atraentes, são aqueles que estão sempre a pensar nos outros. Estamos na Igreja para amar a Deus e ao nosso próximo com a medida do amor que Cristo nos deu. 

Amor Significa também cumprir uma série de obrigações, obviamente, mas não como uma mera questão de dever, mas porque compreendemos que, através destes preceitos, materializamos uma forma de amar. 

Um dos pontos-chave nesta relação de amor, também dentro da Igreja, é o de sentir ou saber que é recíproco. Como podemos amar os outros, a Igreja, quando não sentimos esta correspondência? 

-É importante recordar, e esta é uma ideia de São Josemaría Escrivá, que a Igreja é, acima de tudo, Jesus Cristo. Nós somos o corpo místico de Cristo.

Pode ser que, subjectivamente, haja quem não se sinta bem dentro da Igreja de um momento ou de outro porque há muitas sensibilidades, e sinta que as suas sensibilidades não são aceites ou porque são escandalizadas por alguns acontecimentos pouco edificantes na Igreja de hoje e de todos os tempos. Mas não fazemos parte da Igreja porque é uma comunidade de santos ou de puros, mas fazemos parte dela porque seguimos Jesus Cristo que é a santidade total. Estar na Igreja é amar Cristo e, através de Cristo, amar os outros. 

E, no espaço de liberdade, como não cair na falácia de tentar eliminar aspectos essenciais da Igreja em nome de uma falsa liberdade?

- Neste aspecto, o que o então Cardeal Ratzinger disse sobre a interpretação do Concílio Vaticano II, que creio ser útil não só para este evento específico, porque a Igreja está continuamente a renovar-se, sendo fiel à tradição, pode lançar muita luz sobre este assunto. 

Os dois extremos errados serão, por um lado, aqueles que querem a imobilidade dentro da Igreja - talvez por medo de perder o essencial - e, por outro lado, aqueles que querem que tudo mude, correndo o risco de esquecer ou mesmo eliminar o essencial. 

O que é essencial é a nossa relação com Cristo, o amor de Deus..., etc. As verdades que o Senhor nos revelou permanecerão as mesmas porque a revelação pública terminou com a morte de São João. 

A revelação é o que temos de tornar credível nas diferentes fases da história. Agora é a vez da cultura contemporânea, por isso é lógico que haja uma renovação, por exemplo, nos métodos catequéticos. 

O cristão deve ser tradicional, mas não deve ser um tradicionalista. Deve estar aberto à renovação sem cair no progressivismo imprudente. 

Ele apontou conceitos que são frequentemente utilizados para estabelecer "grupos ou divisões" dentro da Igreja: progressistas e conservadores, ou tradicionalistas. Existe realmente uma divisão?

-Um católico tem de ser cem por cento católico. Isto significa abraçar a totalidade da fé e da vida cristã em todas as suas dimensões e não escolher, por exemplo, entre a defesa da vida desde o momento da concepção até à morte e entre a opção preferencial pelos pobres e que todos tenham acesso a uma casa, alimentação, vestuário..., etc. 

Em 2007, participei na Conferência Geral dos Bispos da América Latina e das Caraíbas em Aparecida. Aí, as diferentes sensibilidades juntaram-se num clima de grande comunhão eclesial. Neste contexto, um dos padres sinodais disse: "Ouço aqui quantos defendem a família, a vida... etc. Outros têm uma grande sensibilidade social. Temos de chegar a uma síntese. Temos de defender a vida desde o momento da concepção até à morte natural e, no meio, em todos esses anos de vida das pessoas, tornar possível que as pessoas tenham o direito e o acesso a todos esses bens". 

Neste sentido, parece-me que os pontificados de Bento XVI e Francisco são perfeitamente complementares. Cada um enfatiza certos temas, mas isto não significa que Francisco não tenha falado da defesa da vida. Por exemplo, Bento XVI tem algumas afirmações dentro da Doutrina Social da Igreja, sobre a economia e a ecologia, que Francisco tem continuado. 

Hoje é o momento de construir pontes, de não ter visões unilaterais, de se amar e de respeitar todas as sensibilidades. 

Falando sobre o perigo de permanecer em visões ou categorias humanas na Igreja, será que perdemos o sentido da eternidade?

-Não creio, porque a Igreja é Jesus Cristo. A Igreja, enquanto instituição, não o perdeu. 

Neste campo, lembro-me de uma anedota contada por Joaquín Navarro Valls, que foi o porta-voz de João Paulo II durante mais de vinte anos. Numa ocasião, ele tinha marcado uma entrevista do Papa com a BBC. Nessa entrevista, o jornalista pediu a João Paulo II que definisse a Igreja em três palavras e o Papa respondeu: "Tenho duas a mais. A Igreja é a Salvação". Por conseguinte, a Igreja é um instrumento para a salvação eterna. 

Os católicos, é claro, podem correr o risco de se tornarem mundanos. Este perigo que o Papa Francisco sublinhou tanto: a mundanização, tanto na hierarquia como nos fiéis. O perigo de dar um valor absoluto às coisas desta terra que têm um valor relativo. 

A família, a vocação ao casamento, é um tema central na Igreja, ainda mais num ano como este, dedicado à família. Mas será que ainda existe uma percepção de ambos os lados de serem os evangelizadores substitutos?

-Tenho a impressão de que ainda não retirámos todas as consequências do ensino do Concílio Vaticano II. São Paulo VI sublinhou a mensagem fundamental do Concílio Vaticano II: o apelo a universal à santidade. Universal, para todos e, em particular, o papel dos leigos na Igreja e na evangelização é enfatizado. 

Em particular, creio que precisamos de iluminar ainda mais a nossa vocação baptismal. Pelo Baptismo somos chamados à santidade, e a santidade implica o apostolado. Santidade sem apostolado não é santidade. Portanto, é natural que os leigos, que estão no meio do mundo, em todas as instituições sociais, políticas, económicas..., sejam o fermento que muda a massa do nosso mundo. E neste campo, de uma forma muito particular, a família, Igreja Doméstica

Todos os Papas recentes, São João Paulo II, Bento XVI e Francisco se autodenominaram anti-clericals porque sublinham, com esta qualificação, este papel fundamental dos leigos. A hierarquia desempenha um papel indispensável, claro, porque a Igreja é uma instituição hierárquica; mas todos nós somos chamados ao apostolado a partir das nossas próprias funções. 

Hoje a família está em crise; mas se conseguirmos uma experiência profunda de fé nas famílias, se tornarmos possível não serem famílias auto-referenciais, como diz o Papa, mas estarem abertas a outras famílias que vejam nelas um testemunho de perdão, generosidade, serviço... este testemunho fará com que outras famílias queiram ser como estas famílias cristãs. Creio que esta é uma óptima forma de evangelização no mundo de hoje. 

Há algumas semanas atrás, a Constituição Apostólica foi tornada pública. Predicado Evangelium, O que significa isto para a Prelatura do Opus Dei? 

-No mesmo dia em que a constituição apostólica foi publicada, o Prelado do Opus Dei, que é a voz mais autorizada, disse que ela não muda nada de substancial. 

O importante é preservar o espírito do Opus Dei. Preservar o carisma fundador com a flexibilidade - sempre inspirada por esse carisma - para responder aos desafios do mundo contemporâneo. 

Numa entrevista dada pelo Bispo Arrieta, Secretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, repetiu estas palavras do prelado e deu exemplos de muitas realidades que, ao longo da história, mudaram a sua dependência da Santa Sé e continuaram a conservar a sua essência. Por conseguinte, a Prelatura do Opus Dei permanece a mesma para além desta mudança.

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