Cultura

Inmaculada Alva: "Certos feminismos masculinizaram as mulheres".

A historiadora Inmaculada Alva apela a uma história "em que homens e mulheres tenham o papel que lhes corresponde", face a certas correntes feministas que, no fundo, tomam os homens como modelo.

Maria José Atienza-18 de agosto de 2024-Tempo de leitura: 5 acta

O campus de pós-graduação da Universidade de Navarra serviu de cenário para o ponto final da primeira turma de licenciados da Mestrado em Cristianismo e Cultura Contemporânea. Trata-se de uma licenciatura própria da Universidade, lançada há dois anos, que constitui uma viagem completa e interessante através da história, da filosofia, da teologia e do pensamento. 

O mulher foi o tema central da última sessão deste curso e foi proferida pela historiadora Inmaculada Alva, que falou à Omnes sobre as mulheres, o feminismo, a sociedade e a cultura. 

Não podemos negar que, nos últimos anos, se registaram progressos em matéria de direitos das mulheres, mas surge também um certo desencanto em relação a este "ficar com a parte errada do pau". 

-Estes avanços políticos e sociais tiveram início na segunda metade do século XX. Penso que ganhámos muito, não com a masculinização, mas com o feminismo. Ou melhor, com os feminismos. Gosto de falar no plural porque me parece que há uma tal variedade que nenhum deles se pode arrogar a hegemonia de dizer "eu sou o verdadeiro feminismo". 

Na verdade, quando falamos da "situação das mulheres no passado", estamos a referir-nos a uma situação específica: a da mulher burguesa do século XIX. Burguesa porque, noutros ambientes, as mulheres sempre trabalharam fora de casa ou em empresas familiares. A ideia burguesa a que nos referimos era a da "mãe dedicada", da "filha obediente", que era subserviente ao homem e não tinha outras aspirações para além do casamento e pouco mais. De facto, havia certamente muitas mulheres que eram felizes com a vida que tinham: cuidar da casa, do marido..., mas havia uma outra realidade de muitas outras mulheres que queriam desenvolver os seus próprios sonhos, viver a sua vida de forma diferente, até mesmo casar com outra pessoa ou compatibilizar trabalho e família. E era algo que não era possível, porque nesta conceção burguesa do século XIX, o papel da mulher desenvolvia-se no lar, com os filhos. É verdade que há uma maior tendência para as mulheres do que para os homens criarem um lar. Mas as mulheres têm muito mais capacidades. 

Para muitas mulheres, o casamento, o modo de vida burguês desenvolvido no século XIX e vivido no século XX, pode tornar-se uma armadilha, ou mesmo uma sepultura. Foi isto que Simone De Beauvoir, por exemplo, denunciou. Discordo fortemente de muito do que De Beauvoir diz, mas quando ela fala da armadilha do casamento, num certo sentido, penso que tem razão.

A partir da segunda metade do século XX, as mulheres começaram a mudar esta ideia e nasceram os feminismos. Tal como gosto de falar de feminismos no plural, prefiro falar de mulheres no plural. As mulheres participam mais ativamente na sociedade, também na política, nas suas profissões, porque também têm muito a dizer. Penso que, neste sentido, ganhámos. 

Poderemos então concretizar estes avanços? 

-Tem havido progressos na conceção da família como uma tarefa que não é apenas da mulher. Atualmente, é comum ver um modelo de família corresponsável, em que tanto a mãe como o pai são responsáveis pela educação, cuidados e amor. Fazer uma família entre os dois. E não há uma forma única, cada família, cada casamento terá de ver como fazer uma família, mas isso depende dos dois.

Outra ideia que nasce com os feminismos e que me parece interessante é estarmos atentos a coisas como retirar a culpa às mulheres em casos de assédio, violência, etc. Ou seja, aquela frase de culpabilização, porque é que ela vestiu aquela saia, porque é que ela entrou naquele apartamento? E não é assim. É verdade que as mulheres têm de estar conscientes da sua responsabilidade, têm de ser responsáveis pela sua sexualidade. Mas a culpa é de quem não se controla. 

Como já foi referido, nem tudo é positivo, acha que perdemos alguma coisa pelo caminho?

Inma Alva
Inmaculada Alva

-A resposta a esta pergunta depende do tipo de feminismo de que estamos a falar, poderíamos dizer que existe um feminismo hegemónico. É aquele que aparece nos meios de comunicação ou em certas políticas e no qual perdemos a harmonia. O papel da mulher no lar foi desvalorizado, não no sentido burguês de que falávamos, mas no facto de o lar ser um espaço de realização pessoal. Com este tipo de feminismo hegemónico, pensa-se que a dedicação à família degrada a mulher, ou que se ela não trabalhar fora de casa é inferior. O que nos é oferecido é uma masculinização da mulher. No fundo, este tipo de feminismo hegemónico, na minha opinião, não é um verdadeiro feminismo porque o modelo que toma é o modelo masculino. Eles masculinizaram as mulheres.

Penso que as mulheres têm uma forma de trabalhar mais colaborativa do que hierárquica mas, hoje em dia, se quisermos avançar no mundo dos negócios, ou nos comportamos como homens ou não subimos... É tarefa do feminismo ter a ambição de mudar a sociedade para que outras formas de trabalho mais colaborativas se imponham, para que as mulheres sejam também mais equilibradas.

Estamos a assistir a certas "reescritas" feministas da história. Será que isso faz sentido, não será injusto para as mulheres que foram realmente pioneiras?

-O meu trabalho consiste precisamente em fazer a história das mulheres. O que eu vejo é que, por vezes, esta reescrita da história que se faz com as categorias actuais não só é injusta como também é falsa. É preciso ir aos documentos. 

Quando o cinema, por exemplo, nos apresenta mulheres, como Isabel de Castela, a desempenhar papéis que não são reais, não se trata tanto de não serem possíveis na altura, mas sim de não serem possíveis na altura. 

Por conseguinte, é injusto para as outras mulheres que foram efetivamente assim. São essas histórias reais que têm de ser procuradas e que têm de ter visibilidade. 

É importante fazer uma história em que homens e mulheres ocupem o lugar que lhes compete.

Penso em Maria de Molina, rainha de Castela, três vezes regente, que teve de manter o reino de Castela para assegurar os direitos do seu filho e depois do seu neto. E conseguiu-o. Ou penso em Margarida de Áustria, regente dos Países Baixos, que conseguiu que o seu período de governo fosse um período de relativa paz. Estas mulheres devem ser mencionadas porque são reais e os documentos existem. 

Quando descemos à realidade histórica, encontramos milhares de mulheres a fazer coisas. Até ao século XIX, por exemplo, o conceito de trabalho era familiar. A oficina, o atelier ou o que quer que fosse, era gerido pelo marido e pela mulher. Por isso, havia tantas "viúvas" que geriam os negócios dos maridos. Tive a sorte de ter nas minhas mãos alguns documentos de venda de uma mulher, viúva, com um empório comercial em Manila, que escrevia aos seus intermediários comerciais na Europa, no México. No entanto, uma vez vi um filme em que a maneira de falar de Urraca era completamente masculina, até mesmo obscena. A Urraca podia ter muito carácter, é certo, mas não falava assim e não precisava de o fazer para se afirmar.  

As mulheres já conseguiram tudo ou ainda há um desafio pela frente?

-Acho sempre muito difícil responder a estas perguntas. É como quando nos perguntam qual é o nosso livro preferido. Acho que há vários desafios, dependendo também dos contextos das mulheres de hoje, que são muito diferentes. Acreditem ou não, acho que, no fundo, a sociedade ainda é uma sociedade muito masculinizada, por vezes devido a estes feminismos hegemónicos que não olham para a mulher real. O desafio das mulheres de hoje é desenvolver nesta sociedade tudo aquilo que elas, por natureza, trazem: empatia, colaboração, diálogo e comunicação.

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