A guerra cruel entre a Rússia e a Ucrânia, os milhares de vítimas, os deslocados, as cidades e aldeias destruídas e a loucura das armas cada vez mais terríveis que continuam a massacrar pessoas inocentes, já se repete na história, e a humanidade parece nunca querer aprender com os seus erros.
De todas as vozes que se levantaram em nome da paz nos últimos tempos, há uma, em particular, que parece realmente preocupar-se com a própria paz, quanto mais não seja do que com o gás, a venda de armas ou sanções. E estamos a falar do Papa Francisco.
De facto, entre os vários líderes mundiais, o Papa tem tentado, desde o início do conflito, manter um canal diplomático aberto com ambos os lados, e fê-lo com gestos concretos: deslocando-se pessoalmente às embaixadas da Rússia e da Ucrânia, activando as nunciaturas apostólicas presentes em ambos os países, fornecendo ajuda material e apoio espiritual, dialogando com os líderes políticos e religiosos (católicos e ortodoxos) da Rússia e da Ucrânia, incluindo o Primaz do Patriarcado Ortodoxo de Moscovo, Kirill, a quem, face ao seu Cesaropapista, pressiona para justificar a política agressiva do seu país em relação à Ucrânia (especialmente no famoso encontro bilateral virtual entre o Papa e o patriarca acima mencionado), o pontífice (e recordemos aqui a etimologia desse termo: construtor de pontes) não deixou de recordar que a tarefa dos eclesiásticos é proclamar Cristo, não favorecer ou opor-se a um poder temporal, o que foi reiterado, no momento da redacção deste artigo, a 6 de Maio de 2022, quando Francisco, ao receber em audiência os participantes na sessão plenária do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, condenou uma vez mais a guerra "cruel e sem sentido" na Ucrânia, declarando que, "perante esta barbárie, renovamos o nosso desejo de unidade e proclamamos o Evangelho que desarma os corações perante os exércitos".
No entanto, não faltaram críticas por parte de católicos e ortodoxos do Papa por não assumirem uma posição abertamente pró-Ucraniana no actual conflito.
Contudo, a atitude de Francisco está em perfeita continuidade, neste como noutros casos (a guerra na Síria ou os protestos mais recentes em Myanmar são exemplos), com a dos seus antecessores, em particular João Paulo II, em querer promover certos valores de paz, solidariedade e justiça social em todo o mundo, independentemente do país, etnia ou religião. Por conseguinte, ele dialoga e procura estabelecer relações com todos os governos, independentemente do credo ou ideologia, o que também se expressa através do conceito de multilateralismo, ou seja, equidistância (talvez, no entanto, seria melhor dizer equidistância) no que diz respeito aos assuntos envolvidos.
Na prática, tudo isto é notavelmente semelhante ao que aconteceu com Pio XII, o Papa reinante durante toda a Segunda Guerra Mundial, que nunca condenou abertamente Hitler, embora, continuando a política de dura oposição a essa ideologia de Pio XI (que condenou duramente o nazismo com a encíclica "Mit brennender Sorge"), tenha intervindo várias vezes contra a política nazi com mensagens diferentes, Em particular com a mensagem de Natal de 1942 e o consentimento para a leitura da famosa Carta Pastoral "Vivemos numa época de grande sofrimento", elaborada pela Conferência Episcopal Holandesa e lida em todas as igrejas holandesas a 26 de Julho de 1942 (como retaliação pela qual Hitler ordenou a prisão e deportação de judeus convertidos, até então poupados da sua fúria, como Edith Stein, Santa Teresa Benedicta da Cruz).
O papel da Igreja Católica nos assuntos nacionais e internacionais é tudo menos secundário, se considerarmos que pode influenciar, directa e indirectamente, milhares de milhões de pessoas, não só entre os baptizados, mas também entre sujeitos jurídicos que podem ser indivíduos, Estados, organismos supranacionais e que nada têm a ver com a fé que os católicos professam.
A necessidade de diplomacia e reconhecimento a nível internacional
A diplomacia da Santa Sé é herdeira de uma tradição secular, que fez do papado o precursor das relações modernas entre Estados, e actua em duas frentes particulares: por um lado, a protecção dos cristãos, particularmente dos católicos; por outro, a promoção dos valores da justiça, da paz e da salvaguarda dos direitos humanos: a sua Ostpolitik, especialmente desde o final dos anos 50, é um exemplo concreto disso mesmo.
Esta política realista, que tira o seu impulso da encíclica do Papa João XXIII "Pacem in Terris" de 1963 (na qual o pontífice explica que a paz mundial é um ideal a ser perseguido através do diálogo e da cooperação com todos os povos "de boa vontade", mesmo com aqueles que são portadores de uma ideologia "errada" como o ateísmo e o comunismo), também condicionará a política internacional da Santa Sé a partir de Paulo VI.
É necessário, neste momento, fazer uma distinção essencial entre a Santa Sé e o Estado da Cidade do Vaticano: a primeira constitui uma soberania abstracta, isto é, sem um território bem definido, do Papa sobre os fiéis católicos (cerca de mil milhões de 345 milhões de pessoas, segundo o Annuarium Statisticum Ecclesiae de 2019), mas reconhecida por todas as organizações internacionais; o segundo é, além disso, o estado mais pequeno do mundo (a sua superfície é de apenas 44 hectares), cuja única função é, em virtude da sua criação em 1929 pelos Pactos de Latrão, fornecer apoio material e jurídico às actividades da Santa Sé, incluindo a salvaguarda do seu património cultural, artístico e religioso.
A Santa Sé e a política internacional
A Sé Apostólica, portanto, é a autoridade máxima da Igreja Católica e é governada pelo Sumo Pontífice (o Papa) e pela Cúria Romana, chefiada pelo Secretário de Estado, que, sob a autoridade do Santo Padre, é o chefe da estrutura diplomática. Devido ao seu estatuto especial, é a Santa Sé, e não o Estado da Cidade do Vaticano, que mantém relações diplomáticas com outros Estados e organismos internacionais, e estas relações requerem uma grande organização institucional.
Os funcionários diplomáticos papais, assim como os núncios apostólicos e leigos que representam o papado internacionalmente, vêm de quase todos os estados do mundo e são formados na Pontifícia Academia Eclesiástica, a escola de política externa do Vaticano.
O objectivo dos contactos com a sociedade civil é garantir a sobrevivência e independência da Igreja e o exercício da sua função específica (liberdade de manter contacto com o centro; liberdade de movimento e responsabilidade dos bispos e sacerdotes; liberdade de consciência e culto para todos). Na ausência destas condições básicas, as relações diplomáticas normalmente não são estabelecidas (é actualmente o caso da China, Butão, Afeganistão, Coreia do Norte e Maldivas).
A Santa Sé tem uma rede diplomática extensa e capilar. De facto, mantém relações diplomáticas normais com 183 dos 193 estados membros da ONU e tem estatuto de observador permanente nas Nações Unidas, mas não de membro de pleno direito, pois é o representante de um poder espiritual que opta pela neutralidade total nos assuntos internacionais.
João Paulo II e a sua política internacional
A política internacional de João Paulo II é, evidentemente, a mais óbvia a ter em conta na análise do conceito de multilateralismo da Santa Sé na política internacional, uma vez que o período de tempo que abrange é notavelmente amplo e confirma os múltiplos e já mencionados objectivos da acção da Santa Sé a nível mundial. O pontificado de João Paulo II, de facto, caracterizou-se não só pela sua duração em termos de tempo (27 anos), mas também pelo grande número de acontecimentos importantes que o marcaram, por exemplo, a longa disputa com os regimes comunistas, em particular o da Polónia (o seu país de origem), o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, o reconhecimento de Israel e o estabelecimento de relações diplomáticas com o Estado judaico em 1994, as repetidas tentativas de normalização das relações com a China e o Vietname, a desintegração da Jugoslávia, a linha divisória histórica entre ortodoxos e católicos nos Balcãs, que colocou a diplomacia do Vaticano em sérios problemas e a levou a intervir directamente no assunto em 1992, reconhecendo a independência da Croácia e da Eslovénia, nações tradicionalmente católicas.
Entre os casos mais interessantes a mencionar, devido à sua semelhança com as questões actuais, está o das Filipinas, país visitado por João Paulo II em 1981, onde a campanha de resistência passiva (muito semelhante ao que está a acontecer hoje em Mianmar) liderada pelo Cardeal Jaime Sin contra Marcos resultou no exílio do ditador em 1986; Ou Cuba, onde, em 1998, o Papa reiterou claramente a sua oposição ao embargo e às sanções dos Estados Unidos que há 35 anos que asfixiam a economia da ilha, criticando tais medidas de retaliação contra um país por outros Estados e acusando-os, como no caso do Iraque ou da Sérvia (semelhante à Rússia de hoje) de apenas prejudicarem cidadãos inocentes sem darem qualquer solução definitiva aos problemas.
Finalmente, gostaríamos de mencionar dois casos particulares em que, durante o pontificado de João Paulo II e na sequência da intervenção de João XXIII como mediador entre os Estados Unidos e a URSS na crise dos mísseis cubanos de 1962, a Santa Sé foi particularmente activa na procura de soluções pacíficas para situações de conflito na arena internacional: No primeiro caso, Wojtyla e os seus representantes, em particular o Núncio Apostólico na Argentina, conseguiram evitar o já iminente conflito entre o Chile e a Argentina sobre a soberania do Canal Beagle em 1984; no segundo, durante a crise internacional que precedeu a invasão do Iraque em 2003, a diplomacia da Santa Sé actuou em coordenação com os representantes da França, Alemanha, Rússia, Bélgica e China nas Nações Unidas para evitar conflitos armados, e João Paulo II enviou mesmo o Núncio a Washington para se encontrar com George Bush Sr. e expressar o total desacordo do Papa com uma invasão do país do Médio Oriente, que infelizmente teve lugar.
Todos estes exemplos fazem lembrar de forma impressionante acontecimentos e questões mais recentes (Myanmar, Síria, a guerra Rússia-Ucrânia e o seu rescaldo) e permitem-nos enquadrar a política internacional do Papa Francisco e o seu multilateralismo, ou "equívoco" com todas as partes envolvidas em conflitos a nível internacional, como perfeitamente adequados às necessidades da diplomacia da Santa Sé.
Escritor, historiador e especialista em história, política e cultura do Médio Oriente.