Cultura

Cuidar e ser cuidado: o valor da fragilidade

Recensão do livro Corporeidade, tecnologia e desejo de salvação. Notas para uma antropologia da vulnerabilidade. editado por Jorge Martín Montoya Camacho e José Manuel Giménez Amaya.

Pablo Alfonso Fernández-2 de junho de 2024-Tempo de leitura: 4 acta

O caminho mais direto para uma existência com sentido é descobrir a vulnerabilidade própria e a dos outros. Esta afirmação, simples na sua expressão, mas profunda nas suas consequências, condensa a proposta antropológica feita pelos professores Montoya e Giménez Amaya numa publicação recente da coleção "Filosofia e Teologia Pública" da editora Dykinson, intitulada Corporeidade, tecnologia e desejo de salvação. Notas para uma antropologia da vulnerabilidade.

Este livro é o fruto de anos de trabalho interdisciplinar e colaborativo no âmbito da Grupo de investigação Ciência, Razão e Fé da Universidade de Navarraque foi idealizada pelo Professor Mariano Artigas. O seu conteúdo apresenta, em conjunto e adaptado ao novo formato, algumas das publicações anteriores dos autores em revistas especializadas, e não tem como objetivo apresentar um tratado sistemático, mas sim estabelecer um ponto de partida antropológico. 

Trata-se de uma reflexão académica solidamente argumentada, com abundante aparato crítico e rigor expositivo, que se desenvolve a partir da filosofia do pensador anglo-saxónico Alasdair McIntyre. Depois de uma oportuna introdução, que reúne alguns dos conceitos desenvolvidos posteriormente, expõe a sua tese em três capítulos que tratam, respetivamente, das questões enunciadas no título: a corporeidade e a sua contingência psico-biológica, a tecnologia desfasado dos seus objectivos naturais, e o desejo de salvação que abre o ser humano à transcendência e é apresentado como o conceito central de todo o estudo. 

Os autores constroem a sua argumentação a partir de uma reflexão sobre os fins da vida humana, com a qual compreendem a fragilidade biológica e as suas manifestações na vida social. Assim, entendem o envelhecimento como "um ponto de encontro para compreender o homem", e as virtudes do cuidado como a esfera da gratuidade que permite ultrapassar uma lógica utilitária de troca. A abordagem filosófica apoia-se em numerosas fontes, convenientemente citadas, e dá-nos uma ideia da origem e do desenvolvimento destes conceitos. Ao longo dos parágrafos, o leitor é introduzido nos conceitos que convergem para a tese do livro: contingência biológica, vitalismo metabólico, intencionalidade corpórea, desejo de salvação, generosidade justa... Ao mesmo tempo, são apresentados por dois professores de filosofia com formação anterior no mundo da engenharia e da medicina, o que proporciona uma visão mais precisa quando confrontados com questões relacionadas com a evolução tecnológica ou com o domínio da saúde. 

Além disso, o interesse do livro ultrapassa o âmbito académico, tendo os autores conseguido apresentá-lo com histórias ilustrativas retiradas da literatura, com as quais terminam cada um dos três capítulos. Estas referências oportunas às obras de Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), Mary Shelley (Frankenstein) e Eurípides (Ifigénia) ajudam a mostrar as implicações humanas universais do seu estudo, para além do seu interesse óbvio para os especialistas. A redação cuidadosa do texto facilita a leitura e a imagem da capa, carregada de emoção, desafia o leitor a compreender que não se trata de uma questão de abstracções teóricas ocas. A imagem é retirada do quadro "Dia de Visita ao Hospital" do pintor francês Geoffroy (1853-1924). O prólogo comovente, da autoria do Professor Javier Bernácer, é mais uma prova de que a proposta deste livro toca a fibra humana. Os seus autores conseguiram despertar o interesse por aquilo que, segundo eles, "poderá ser um dos desenvolvimentos mais importantes da investigação antropológica nos próximos anos". 

É provocador, nestes tempos de inovações tecnológicas, inteligências artificiais e anúncios prometeicos de superação de qualquer limite, afirmar sem mais delongas que a natureza humana é vulnerável. É uma audácia indecente para muitos encarar o envelhecimento, a doença e a morte como uma condição de humanidade, uma oportunidade de crescimento e de descoberta do sentido da vida, e não como um obstáculo indesejado, um limite a ultrapassar ou um erro de cálculo incómodo nos programas de felicidade da modernidade eficiente. 

Corporeidade, tecnologia e desejo de salvação

AutoresJorge Martín Montoya Camacho e José Manuel Giménez Amaya.
Editorial: Dykinson
Páginas: 160
Ano: 2024

Deste ponto de vista, que predomina na mentalidade utilitarista e entroniza a saúde e o vigor físico como fins últimos da existência, a vida vulnerável não merece existir, daí o esforço para a suprimir desde o início, se for detectada num diagnóstico pré-natal, ou para facilitar a sua pronta eliminação, uma vez verificado o desgaste provocado pelo tempo. A procura de uma vida plena, que orientou os esforços da filosofia na história do pensamento humano, reduz-se a um hedonismo pleno, e satisfaz-se com a obtenção de uma vida não só hedonista, mas também não hedonista e não hedonista. páginasem o alívio que o sofrimento humano traz.

É por isso que penso que os autores têm razão em dar estatuto académico e profundidade de pensamento a uma expressão vital, a uma intuição que o cristianismo encheu de sentido a partir da fé: a fraqueza torna-nos humanos e necessitados de salvação. A reivindicação de uma autonomia absoluta não pode ser o objetivo último da nossa vida, porque esta conceção do ser humano ignora uma categoria fundamental: a relação. A vulnerabilidade não é o inimigo a vencer, mas um companheiro inseparável de estrada que insiste em recordar-nos quem somos. 

Nas suas páginas descobrimos, com uma abordagem intelectual impecável, uma expressão filosófica convincente do Evangelho da vida, tão necessário de anunciar no mundo de hoje. São João Paulo II encorajou-nos nesta tarefa quando nos convidou a construir a "civilização do amor" (cf. Carta Apostólica Salvifici doloris, n. 30). Tal como hoje o Papa Francisco apela a uma "revolução da ternura" que nos convida a "correr o risco de encontrar o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com a sua dor e as suas queixas, num constante corpo a corpo" (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 88).

O autorPablo Alfonso Fernández

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