É possível criar uma nova cultura cristã?

Se quisermos criar uma nova cultura cristã em alternativa à atual, quais são os passos a dar?

3 de outubro de 2024-Tempo de leitura: 5 acta
Família

Somos chamados a ser sal e luz no mundo de hoje, por mais complexo que ele seja. Devemos cuidar dos nossos irmãos e lutar com todas as nossas forças pela regeneração da nossa sociedade. Não o escolhemos, mas este é o tempo que Deus nos deu para viver entre os nossos semelhantes, para caminhar ao seu lado. Como disse Gandalf a Frodo Baggins: "Não podemos escolher os tempos em que vivemos; tudo o que podemos fazer é decidir o que fazer com o tempo que nos foi dado. Deus deu-nos este tempo, e nós somos responsáveis por abrir novos caminhos, bem como por manter viva a nossa herança. Mas então, se quisermos criar uma nova cultura cristã como alternativa à que já está a emergir no nosso mundo de hoje, quais são os passos que devemos dar?

Na minha vida tive muitos professores, como Gandalf foi para Bilbo. O que mais me agradou foi D. Fernando Sebastián, arcebispo de Pamplona e bispo de Tudela, com quem tive o privilégio de trabalhar lado a lado como delegado de ensino da diocese de Navarra.

Ouvi uma vez uma ideia dele que me ajudou a situar-me neste ponto. Estava a dar uma conferência em que analisava o nosso mundo e apontava três círculos de ação sobre os quais uma sociedade deve ser reformada.

A primeira, disse o cardeal aragonês, é a da conversão pessoal. Tudo deve partir daí. Caso contrário, qualquer reforma ou mudança será construída sobre a areia. Numa altura em que se clama pela reforma das estruturas sócio-políticas, na realidade o que é mais urgente é a transformação das pessoas, de cada pessoa, a começar pela minha própria conversão.

A segunda parte da frase de Agostinho remete-nos para este ponto inicial: "Nos sumus tempora; quales sumus, talia sunt tempora"(Nós somos os tempos; como nós somos, assim serão os tempos). Se olharmos para o tempo em que vivemos, talvez possamos ver como somos. A simples inversão da frase reflecte, como um espelho, o grau de vitalidade dos cristãos que vivem neste tempo. É, sem dúvida, um estímulo. E, ao mesmo tempo, mostra-nos a única maneira de recomeçar. Começar pela nossa conversão.

Este primeiro círculo parece-me particularmente importante hoje em dia. A consciência é o último bastião da liberdade numa sociedade em que temos a possibilidade de dirigir os nossos impulsos, conhecendo todos os pormenores da nossa vida, graças à grandes dados (inteligência de dados). Sabem do que gostamos, apresentam-nos conteúdos adequados, personalizados para nós, de acordo com a nossa idade, o local onde vivemos, as nossas preferências, etc. 

E têm o potencial de orientar o nosso comportamento e moldar o nosso pensamento. Nunca a capacidade de manipular as pessoas foi tão poderosa. É por isso que a verdadeira resistência cultural, a verdadeira barreira contra a alienação mais radical, é um homem moldado por Cristo.

O segundo círculo é o das relações de proximidade. A começar pela própria família, que é, sem dúvida, o primeiro e principal núcleo social. D. Fernando chamou-nos a cuidar da nossa família e a viver como cristãos, como igreja doméstica, a nossa vida quotidiana. Quantas ressonâncias me vieram também ao ouvir estas palavras! E como tivemos de as viver nos tempos de confinamento pela COVID-19! A igreja doméstica tornou-se uma realidade tangível nesse tempo em que estávamos fechados em casa; não era apenas uma ideia teológica.

Esse círculo familiar, essa primeira instância social, é o mais importante e fundamental para gerar uma nova sociedade, radicalmente alternativa à que nos é oferecida pelo mundo atual. Nunca foi tão marcante o testemunho de uma família unida e fecunda, com cônjuges fiéis que se amam em qualquer situação. Hoje, este tipo de relação é radicalmente contra-cultural, mas lança as bases sólidas para uma nova forma de entender a vida.

Dar às crianças o dom da fé é o melhor presente que lhes podemos dar, mas é também uma forma de construir a sociedade de amanhã. Transmitir a fé, passar o testemunho de geração em geração, é a melhor evangelização que a Igreja pode fazer.

Temos de transmitir uma fé viva, que ensine os nossos filhos a viver no meio deste mundo e a serem eles próprios cristãos empenhados. Ouço muitas vezes pais que vivem com medo do mundo que vão deixar aos seus filhos. Gosto de recordar a frase de Abílio de Gregório: "Não te preocupes com o mundo que vais deixar aos teus filhos, mas com os filhos que vais deixar a este mundo". A educação das crianças é um grande contributo para a criação de uma nova cultura cristã.

Neste segundo círculo de relações sociais, D. Fernando incentivou as famílias cristãs a criarem laços e comunidade com outras famílias que tenham os mesmos critérios, os mesmos valores que emanam do Evangelho de Jesus Cristo. Este é o próximo passo a ser dado, o passo que devemos dar para construir uma nova sociedade. É preciso criar laços, estabelecer relações entre famílias que tenham a mesma visão do mundo, para criar uma pequena comunidade em que ser cristão seja algo natural.

Fernando convidou-nos a participar, juntos como cristãos, na sociedade civil mais próxima da nossa vida, na realidade em que estamos imersos: a comunidade de vizinhos, o conselho escolar dos nossos filhos, as festas do bairro, o trabalho no escritório... Quanta vida podemos dar em todos estes ambientes, criando uma verdadeira corrente que nasce da Boa Nova do Senhor! Tudo se transforma quando os cristãos o vivem.

E as comunidades de bairro podem ser verdadeiramente comunitárias e não brigas constantes; as festas de bairro podem ser festa e união, criativas e alegres; o trabalho pode tornar-se um núcleo de amizade, com laços estreitos que vão para além do meramente económico.

Este segundo círculo foi sempre vital na confrontação com os regimes totalitários. Foi a luta cultural que São João Paulo II manteve, por exemplo, com o seu grupo de teatro na Polónia comunista. Pequenos núcleos de identidade que, por diversos meios, mantêm vivas as raízes e as transmitem aos outros.

O terceiro círculo é o da vida política. Quando nasce uma nova cultura, novas relações, uma nova visão da vida na sociedade civil, nasce naturalmente uma nova política. As grandes relações institucionais, os sindicatos, os partidos políticos, os meios de comunicação social... tudo isso será efetivamente cristianizado quando os círculos anteriores tiverem vitalidade.

Porque, como sabemos, a grande tentação é pensar que, quando um partido político supostamente cristão ganha as eleições, quando há meios de comunicação social poderosos que podem levar o Evangelho enquanto outros difundem as suas mensagens, então tudo se resolverá. Mas a experiência diz-nos que, na melhor das hipóteses, isso seria um gigante com pés de barro que acabaria por se desmoronar.

É esse o caminho a seguir: construir de baixo para cima, lançar os alicerces do edifício, sonhar, talvez, com grandes projectos para o futuro, fazer as pequenas acções que podemos e devemos fazer no presente.

O autorJavier Segura

Delegado docente na Diocese de Getafe desde o ano académico de 2010-2011, realizou anteriormente este serviço no Arcebispado de Pamplona e Tudela durante sete anos (2003-2009). Actualmente combina este trabalho com a sua dedicação à pastoral juvenil, dirigindo a Associação Pública da Fiel 'Milicia de Santa María' e a associação educativa 'VEN Y VERÁS'. EDUCACIÓN', da qual é presidente.

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