Naturalmente, após a Ascensão de Jesus ao Céu, a Igreja ficou continuamente preocupada com todos os problemas que a humanidade está a enfrentar, especialmente os económicos. Em Espanha, basta recordar o que, em relação ao crédito e à justificação da cobrança de taxas de juro, deu origem a um amplo debate que se desenvolveu, em grande medida, em torno da Universidade de Salamanca.
Mas tudo isto relacionado com a economia sofreu uma mudança extraordinária na passagem do século XVIII para o século XIX, como consequência do que então surgiu precisamente, e de uma multiplicidade de pontos de vista. No campo científico, é evidente que o grande revolucionário foi Adam Smith, que sempre se manteve afastado das questões teológicas, e que na sua biografia não parece ter estado preocupado com elas, talvez como consequência do caos que surgiu na Escócia após a revolução puritana, o que lhe dificultou a manutenção das suas próprias atitudes religiosas.
Recordemos, além disso, que tudo isto estava ligado ao nascimento de sociedades secretas, e de uma divulgação intelectual que se recusava a seguir os conselhos do Papado. E esta economia, que nasceu com todos estes complementos simultâneos, veio a orientar o desenvolvimento geral em duas esferas: a britânica, em relação à Revolução Industrial - uma novidade extraordinária - e, do lado político e social, a francesa, com o sucesso que a Revolução acabou por ter.
E, como resultado da ligação contínua entre estas novidades, cria-se a nova realidade, que se soma a um extraordinário progresso científico; desde a matemática, à física ou à biologia, uma novidade que também afecta o que acontece no campo do factor trabalho. Neste último, a resistência, mesmo violenta, logo apareceu a mensagens que, antes de atraírem forte atenção, geraram um estremecimento. Como consequência adicional, a indignação social tinha ganho um importante apoio científico sob a forma de Karl Marx, e o materialismo histórico não estava exactamente no caminho certo para o catolicismo.
Rerum Novarum
Além disso, na Europa, um conjunto de nacionalismos estava a criar raízes que procuravam o seu apoio doutrinário muito afastado do que a teologia tinha mantido. Acrescente a tudo isto um novo facto político: a Itália tinha nascido, como nação conjunta e independente, com abordagens básicas radicalmente opostas à Igreja, devido à existência dos chamados Estados Papais, que desapareceram na guerra e o Papa tornou-se prisioneiro, em Roma, do novo regime político aí nascido.
Face a este panorama, Leão XIII veio ao Papado, procurando algum tipo de acordo diferente daquele que, por exemplo, em Espanha, através da guerra, tinha sido procurado pelo Carlismo, com base no seu catolicismo. Foi necessário reagir contra esta variedade de situações inimigas, e essa foi a justificação lógica para Leão XIII, a fim de estabelecer a mensagem da Igreja no meio destas novidades, lançar uma encíclica com um nome muito significativo, porque era necessário reagir contra esse conjunto de situações, mesmo as muito hostis. Para este fim, do ponto de vista filosófico, foram procurados pontos de apoio, nos quais a encíclica se baseava. Rerum Novarum
Pouco a pouco, a Rerum Novarum descobriu que, por um lado, havia um forte avanço na ciência económica, especialmente do ponto de vista microeconómico, com contribuições tão notáveis como as de Walras e Pareto. Assistimos então à consolidação de uma grande ciência económica britânica - basta pensar que, por exemplo, nada menos que o filho de um espanhol, Francis Ysidro Edgeworth, estava a contribuir com inovações notáveis - para não mencionar uma série de grandes economistas que viajavam para a glória num certo grande veículo descrito, mais tarde, por Schsumpeter.
Por outro lado, este corpo crescente de grandes economistas estava a desenvolver a sua ciência de uma forma verdadeiramente colossal. E dele saíam também linhas heterodoxas. Em particular, a procura de uma nova forma de resolver a questão social criou a corporativismoA Igreja Católica, que se enraizou numa multiplicidade de abordagens políticas conservadoras, simultaneamente encarou o catolicismo com simpatia.
Quadragesimo Anno
Esta última disposição geral deparou-se com um facto político importante: o Papa tinha sido politicamente libertado pelo Tratado de Latrão, desenvolvido por Mussolini, que, por sua vez, considerou satisfatório que o caminho do corporativismo existisse para este fim a fim de refrear os avanços derivados do marxismo.
Sem tudo isto, é difícil compreender que este novo Papa, Pio XI, com uma encíclica que já está muito longe da Rerum Novarumpublicado com notável sucesso o Quadragesimo Annoque pretendia ser uma projecção para uma nova situação muito mais recente do que a de Leão XIII.
Na ciência económica, tinham sido feitos progressos notáveis de vários tipos. Desde Cournot, a microeconomia tinha feito progressos na análise de situações de monopólio, o que levou a novos progressos no domínio da teoria da concorrência imperfeita.
O progresso da teoria económica foi colossal, e a ligação do corporativismo ao nacionalismo económico e ao proteccionismo levou todo um gigantesco grupo de investigadores a salientar que este caminho levaria inevitavelmente a um precipício que destruiria qualquer pessoa que o seguisse, por muito popular que fosse o seu líder, como foi o caso na altura com o Manoilescu romeno. Mas as raízes da Igreja Católica, numa multiplicidade de aspectos intelectuais, pareciam estar consolidadas por esta linha. Basta assinalar, em Espanha, tudo o que o padre jesuíta Azpiazu desenvolveu em numerosas obras, cursos e polémicas.
São João Paulo II
Os laços políticos resultantes do corporativismo durante a Segunda Guerra Mundial foram associados a um progresso notável na macroeconomia, através de modelos que permitiram aos decisores políticos serem guiados em todos os momentos.
A mudança tornou-se radical da ciência económica, e o mesmo acontece com o contexto político, que parece estar ligado de alguma forma - por vezes até muito fortemente - à encíclica Quadragesimo Anno. Daí a extraordinária coragem de São João Paulo II, de dar um salto extraordinário por ocasião do 100º aniversário do Rerum Novarum.
Neste contexto, vale a pena referir um evento. São João Paulo II percebeu o notável progresso da ciência económica e como isto teve um impacto triplo. Em primeiro lugar, promover o desenvolvimento económico, que era muito visível em todo o mundo europeu não ligado ao comunismo, e também nas extensões do mundo ocidental que existiam, desde os Estados Unidos ou Nova Zelândia até ao Japão. Mas também surgiu uma variante dentro da Igreja no mundo ibero-americano, à qual foi dado o nome de Teologia da Libertação. A base científica estava na chamada estruturalismo económico latino-americanoA União Europeia, que se considerava um inimigo radical das abordagens económicas triunfantes no referido mundo da Europa, América do Norte e Japão, foi também considerada necessária para levar a cabo uma verdadeira revolução política e social com tons heterodoxos. Ao mesmo tempo, consideraram necessário que ele realizasse uma verdadeira revolução política e social cheia de tons heterodoxos, o que naturalmente alarmou Roma.
Uma reunião no Vaticano
Face a esta situação, ocorreu uma mudança radical, da qual tomei amplo conhecimento como resultado de uma longa conversa em Madrid com Amartya Sen, um grande economista que ganhou o Prémio Nobel da Economia e que foi agora galardoado com o Prémio Princesa das Astúrias 2021 para as Ciências Sociais. Amartya Sen disse-me que estava surpreendido, no campo da economia, com o apelo do Pontífice para uma reunião conjunta a realizar no Vaticano.
Praticamente todos os convidados consideraram que, deixando de lado as suas próprias ideias religiosas, deveriam participar na reunião. A lista de convidados ilustres ia de Kenneth Arrow, que tinha ganho o Prémio Nobel da Economia em 1972, a Anthony Atkinson, um ilustre professor da famosa London School of Economics and Political Science, a Parta Dasgupta, da Universidade de Stanford; incluía também Jacques Drèze, da Universidade Católica de Lovaina, que teve uma grande influência na formação de destacados economistas espanhóis, sem esquecer Peter Hammond, também da Universidade de Stanford.
Mas a Universidade de Harvard não podia estar ausente, com a presença de Henrik Houthakker; nem a Universidade de Chicago, com nada menos que Robert Lucas; e, da Europa, o membro do Colégio de França, o grande Professor de Análise Económica, Malinvaud; Horst Sievert, do famoso Instituto de Estudos Económicos Mundiais de Kiel; o japonês, da Universidade de Tóquio, Hirofumi Uzawa; e também, na lista existente estava o então Professor Amartya Sen, da Universidade de Harvard. Economistas de importantes centros de ensino em Itália e na Polónia também participaram na reunião; não foram convidados espanhóis.
Centesimus Annus
Amartya Sen salientou-me que todos eles se reuniram em discussões sobre pontos-chave, que deveriam ser notados pelo Papa e por vários clérigos superiores, para inclusão na futura encíclica, que seria a Centesimus Annus.
Para tal, discutiram longamente orientações, frases concretas, pontos apropriados, continuamente guiados pelo Pontífice, em relação a assuntos de grande importância, o que quase os obrigou, por vezes, a envolverem-se em polémicas intensas; mas foi também o próprio Santo Padre que, com ironia, e com muita simpatia e agudeza, participou nas colóquios e guiou soluções valiosas. Amartya Sen nunca deixou de me elogiar pelas suas reacções e pela sua inteligência. Sublinhou também o nascimento da abertura da economia de mercado livre, que deveria ser transformada a partir desse debate num texto muito valioso.
Uma indicação do tom geral dos elogios de Amartya Sen pode ser encontrada numa carta de Robert Lucas, onde ele observou que São João Paulo II sustentava consistentemente que "o subdesenvolvimento depende tanto da precariedade dos direitos civis como dos erros económicos", e que também assinalou a toda a reunião que não era "um conhecedor de obras técnicas sobre economia, nem sentia que era dever da Igreja prescrever soluções técnicas para questões económicas"; Mas na encíclica que estava a ser preparada, era necessário contemplar as ligações que deveriam existir entre a doutrina social da Igreja, a disposição especial de cada Pontífice e o mundo do século XXI, com todas as suas controvérsias.
Isto explica porque, em contraste com a doutrina acima referida, conhecida como a Teologia da LibertaçãoNa encíclica, a admissão do capitalismo como consequência da economia de livre mercado é claramente afirmada. A redacção exacta da encíclica foi a seguinte: "Se por 'capitalismo' se entende um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo do comércio, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, bem como da livre criatividade humana no sector económico, a resposta é certamente afirmativa ... Agora se por capitalismo de mercado se se compreender um sistema onde a liberdade do sector económico não é contida por um quadro jurídico firme que a coloca ao serviço da liberdade humana como um todo, e a concebe com um aspecto particular dessa liberdade, cujo núcleo é ético e religioso, então a resposta é claramente negativa". A ligação com a tese nascida por um grupo de economistas alemães e à qual foi dado o nome de economia social de mercadofoi muito claro.
Desta forma, a ligação com a ciência económica ortodoxa brilha, e se procuramos a conduta moral correcta para uma política económica séria em São João Paulo II, temo-la, como me insistiu Amartya Sen, na sua conversa muito elogiosa. Por esta razão, merece um aplauso especial dos católicos, não por ser católico, mas porque merece receber o Prémio Princesa das Astúrias 2021 para as Ciências Sociais em Oviedo.
Presidente Honorário da Academia Real de Ciências Morais e Políticas