Ecologia integral

Fernando Bonete: "A máquina é um espelho que nos permite descobrir a essência do ser humano".

Como professor universitário, humanista e criador de conteúdos, Fernando Bonete experimentou em primeira mão o poderoso impacto da Inteligência Artificial. E talvez seja por isso que ele vê as oportunidades que a tecnologia representa para nós hoje.

Paloma López Campos-26 de agosto de 2024-Tempo de leitura: 7 acta
Fernando Bonete

Fernando Bonete, doutorado em Comunicação Social e autor de "La guerra imaginaria. Desmontando o mito da Inteligência Artificial com Asimov".

Com a sua chegada, a Inteligência Artificial trouxe consigo um ar de confronto. Muitos autores lançaram um grito "apocalítico", como diz Fernando Bonete Vizcaíno. Vencedor do Prémio Lolo para o Jovem Jornalismo 2023 e doutorado em Comunicação Social, Bonete é também autor do livro "La guerra imaginaria. Desmontando o mito da Inteligência Artificial com Asimov", no qual se esforça por mostrar que a relação entre o homem e a máquina não é necessariamente de confronto, mas pode ser transformada numa colaboração que resulte num verdadeiro progresso para a sociedade.

Enquanto professor universitário, jornalista e criador de conteúdos na redes sociaisFernando Bonete experimentou em primeira mão o forte impacto da Inteligência Artificial. E talvez seja precisamente por essa razão que ele é capaz de ver as oportunidades que a tecnologia representa para nós atualmente.

Que contributo pode dar um humanista para o debate sobre a Inteligência Artificial?

- As ciências humanas têm três pilares fundamentais sem os quais não seriam o que são. Em primeiro lugar, a surpresa perante a realidade. Ortega y Gasset dizia que ser surpreendido é começar a compreender. Ou seja, quando nos deparamos com a realidade e algo nos chama a atenção e nos surpreende, é quando começamos a investigar o porquê, o como e o quê das coisas. Este é um pilar fundamental das humanidades, porque daí vem tudo o resto. O segundo pilar é interrogarmo-nos sobre o que nos surpreendeu, e o terceiro é a procura de uma explicação das coisas que não se reduza a uma única disciplina, mas que seja o mais completa possível.

Nenhuma destas três coisas pode ser feita pela máquina. A máquina não pode ser surpreendida pela realidade. Regista de forma descritiva o que vê, mas não é capaz de se maravilhar. A máquina não é capaz de fazer perguntas, embora possa responder-lhes. Por outro lado, a explicação que as máquinas dão às nossas perguntas reduz-se sempre a uma série de perguntas, mas não é capaz de fazer uma leitura global, pois carece de componentes básicos da inteligência real, como a afetividade, a emoção ou o contexto.

Por conseguinte, a contribuição de um humanista é tudo, no sentido em que nada do que as humanidades contribuem pode ser contribuído pela máquina.

Um programa é tão bom quanto o código com que é construído. Se a programação avançar o suficiente para conceber códigos muito elaborados, não poderá cair por terra esta teoria da vantagem das ciências humanas sobre a inteligência artificial?

- O futuro é imprevisível. Só posso responder à pergunta com provas baseadas no estado atual. O que os especialistas nos dizem é que o sistema computacional em que as máquinas se baseiam atualmente tem limites. Os sistemas informáticos condicionam a máquina a fazer inferências abdutivas, ou seja, a tirar conclusões a partir de acontecimentos repetidos ao longo do tempo que, normalmente, dão origem a uma série de resultados que também são habituais. Isto deixa de fora uma componente fundamental da reação à realidade dos problemas, que é, por exemplo, a criatividade.

A criatividade e a inovação estão associadas à procura de soluções diferentes para problemas que têm vindo a ocorrer ao longo do tempo mas que, por uma série de circunstâncias, precisam de ser resolvidos de uma forma diferente. Em última análise, a máquina não é capaz de dar essas respostas diferentes das anteriores.

Será que os sistemas computacionais vão mudar de forma a ultrapassarem o estado da inferência abdutiva e aproximarem-se da criatividade? Não sabemos, mas seria necessário muito poder computacional para o fazer. Mas mesmo nessa altura, a máquina não terá sempre a capacidade de sentir, de se comover, de acreditar e ter fé, ou mesmo de ter desejos e objectivos próprios. Portanto, mesmo que o vosso sistema informático estivesse próximo da inovação, nunca seria capaz de se igualar ao ser humano, porque há algo da condição humana que a máquina, pela sua constituição artificial, nunca poderá ter.

Capa do livro de Fernando Bonete

No livro, faz uma distinção entre a lógica, caraterística das máquinas, e o raciocínio, caraterístico do ser humano. Pode desenvolver estes conceitos e explicar a diferença?

- A máquina é capaz de tirar conclusões lógicas a partir de circunstâncias que já registou, de uma forma ou de outra, no seu próprio sistema. O raciocínio leva-nos mais longe, no sentido em que não só tiramos conclusões lógicas e limitadas a partir de determinadas circunstâncias, como também somos capazes, mesmo sem conhecer essas circunstâncias, de levar essas conclusões um pouco mais longe por intuição.

A máquina não pode intuir, não tem a perceção do contexto que nós temos. Esta intuição confere uma riqueza imensa às soluções que fornecemos.

A Inteligência Artificial é uma ferramenta muito valiosa porque nos coloca no lugar do condutor. Não nos vai substituir desde que voltemos à natureza do nosso trabalho.

Fernando Bonete

É professor universitário e criador de conteúdos. O que é que nos pode dizer sobre a chegada destes programas a estes domínios?

- Para mim, a Inteligência Artificial, nestes e noutros domínios, é uma ferramenta extremamente valiosa. Não posso partilhar a visão pessimista e negativa de muitos colegas, embora a compreenda, porque se baseia num discurso dominante algo apocalítico sobre o assunto. Mas este discurso não tem qualquer base científica ou experimental.

O discurso que vê a Inteligência Artificial como algo negativo baseia-se no pressuposto de que a Inteligência Artificial vai substituir os professores ou os criadores de conteúdos. Este ponto de vista não é verdadeiro, pelo menos se considerarmos o papel do professor e do criador de conteúdos como realmente deve ser.

(Unsplash / Jonathan Kemper)

Se entendermos o trabalho do professor como o de alguém que chega a uma aula, "vomita" um manual e vai-se embora, sem gerar um pensamento original, próprio e crítico, incentivando os alunos a participar nele, então é claro que o professor é dispensável e podemos colocar uma máquina no seu lugar. No entanto, se o professor desenvolver o seu trabalho levando os alunos a gerar o seu próprio pensamento e a colocar a si próprios as perguntas certas, então o professor torna-se insubstituível. Porque já indicámos que a máquina não pode fazer isso.

O mesmo se aplica ao criador de conteúdos. Se pensarmos no criador de conteúdos como alguém que copia, cria e recria conteúdos que já existem, então é claro que ele pode ser substituído por uma máquina. Mas se ele ou ela se dedicar a contribuir com algo próprio e colocar a sua personalidade e dedicação na criação de conteúdos de forma a que estes sejam originais e únicos, então nunca será substituível.

Por isso, vejo a Inteligência Artificial como uma ferramenta muito valiosa porque nos coloca no lugar do condutor. Não nos vai substituir, desde que voltemos à natureza do nosso trabalho. Congratulo-me com o facto de a Inteligência Artificial ter levantado estas preocupações, porque vai reavivar a universidade, vai fazê-la reencontrar-se. O mesmo se aplica ao jornalismo, porque os jornalistas já não podem limitar-se a copiar e colar comunicados de imprensa, têm de voltar ao trabalho de saber fazer as perguntas certas.

Diria que a Inteligência Artificial é realmente inteligência?

- Não. De um ponto de vista técnico, aquilo a que chamamos atualmente Inteligência Artificial não é inteligente, é apenas um termo que utilizamos para designar o conceito. Existem muitas definições muito diversas e complexas, mas para resumir podemos definir inteligência como a capacidade de resolver problemas aleatórios. Por aleatório, entendemos qualquer tipo de problema. As inteligências artificiais podem resolver problemas concretos, nalguns casos até melhor do que os humanos, como é o caso do jogo de xadrez. Mas quando confrontada com um problema diferente daquele para o qual foi concebida, a máquina não consegue produzir um resultado ótimo.

Isto não quer dizer que o homem possa resolver qualquer tipo de problema, mas tem as ferramentas para o tentar, se quiser. Atualmente, não existe nenhuma máquina capaz de resolver problemas aleatórios.

Além disso, a inteligência tem uma componente emocional que a máquina não tem. A inteligência é também movida pelo desejo e pela vontade, por um objetivo, algo que falta à máquina.

Ao confrontar o homem com a máquina, apercebemo-nos da importância de tudo o que temos na nossa vida.

Fernando Bonete

Voltando ao confronto que muitos vêem, como gostaria que fosse a colaboração entre o homem e a máquina?

- Utilizo muito a Inteligência Artificial como um acompanhamento para aliviar as tarefas que são puramente mecânicas. Isto permite-nos ter mais tempo para desenvolver outras tarefas em que precisamos de colocar todo o nosso potencial. Penso que esta é a melhor utilização que pode ser dada a estas ferramentas. O problema é dar à máquina tarefas que só devem ser feitas por um ser humano. Se o fizermos, desligamo-nos.

inteligência artificial
(Unsplash)

O que é que aprendemos sobre o homem colocando-o lado a lado com a máquina?

- Aprendemos que a máquina não tem tudo o que é verdadeiramente importante na vida: amizade, amor, objetivo, fé... Ao confrontar o homem com a máquina, apercebemo-nos de tudo o que é importante nas nossas vidas. Nesse sentido, descobrimos tudo o que é único no ser humano. A máquina é um espelho fabuloso, porque nos permite descobrir a verdadeira essência do ser humano.

Vivemos numa sociedade em que a utilidade é uma prioridade e não podemos negar que a máquina é muito útil. Não podemos concluir que, atualmente, a máquina é muito mais valiosa do que o homem?

- Temos de compreender que uma visão baseada na utilidade é errada. Não coincide com o verdadeiro ser do homem. Se não nos apercebermos disso, a Inteligência Artificial tornar-se-á um grande risco para a humanidade. Mas, ao mesmo tempo, temos uma oportunidade. Podemos finalmente compreender que a visão utilitária do mundo não nos serve de nada.

A Inteligência Artificial pode ser utilizada para fazer coisas corretas ou incorrectas. Se a utilizarmos mal, aprofundaremos a nossa visão utilitarista e fechar-nos-emos como sociedade. No entanto, a sua chegada pode ser um ponto de reação para ver que não nos podemos definir apenas pela nossa utilidade, mas que há coisas intrínsecas à dignidade humana que se transferem da utilidade. Está nas nossas mãos decidir o que fazer.

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