Evangelização

Um ano após a encíclica 'Fratelli tutti', o que mudou?

Um ano após a assinatura da encíclica Fratelli tutti e ainda há muito a construir antes de podermos falar da existência de uma verdadeira fraternidade universal", diz o autor, que nos encoraja a dar passos em frente com esperança.

P. Miguel Ángel Escribano Arráez ofm-3 de Outubro de 2021-Tempo de leitura: 4 acta
fratelli tutti

Foto: O Papa assina Fratelli tutti em Assis em 3- X- 2021 ©CNS

Quando há um ano vimos o Papa Francisco assinar uma encíclica aos pés do túmulo de São Francisco de Assis, muitos de nós pensamos que, com tal bênção, tal documento teria de ser ouvido pelo mundo. À primeira vista, no entanto, não parece que o mundo tenha mudado muito.

Foi a segunda vez que o Papa Francisco usou a terminologia franciscana para mostrar, a partir das fraquezas do nosso mundo, que a leitura do santo de Assis poderia ajudar-nos a superar o individualismo e o egoísmo que parece mover o nosso mundo, especialmente na política e na economia, e que faz sofrer os homens e mulheres na rua, que acordam todas as manhãs a querer construir as suas vidas e se vêem limitados.

A novidade franciscana é recuperar a ideia que sempre assombrou São Francisco de Assis: que ou éramos irmãos uns dos outros, ou dificilmente poderíamos construir um mundo de paz. E para isso precisávamos de nos conhecer a nós próprios para sermos filhos do mesmo Deus e para termos uma relação directa e honesta uns com os outros. E quando falamos do outro, devemos pensar no diferente, o último da sociedade, o descartado do mundo e aquele que tem uma cultura diferente da nossa, mas que, através do acolhimento e respeito, podemos dialogar, procurando pontos de convergência, sem cair no relativismo moderno.

A vida é conquistada todos os dias

Imagens da Campanha Online do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral

Uma das coisas importantes que a encíclica nos lembra, e que as pessoas comuns sabem, é que a vida é ganha todos os dias. Não é algo que seja ganho de uma vez por todas. As relações humanas, como os grandes acontecimentos da história, não são conquistadas e pronto, ou são nutridas todos os dias ou acabamos por voltar aos nossos velhos maus hábitos. E a nossa sociedade esqueceu que devemos viver em fraternidade para encorajar a busca dos nossos próprios desejos e egoísmo.

Construímos uma sociedade onde termos como "abertura ao mundo", que por vezes interpretamos como "ouvir e acolher", significam agora não ter medo de nos lançarmos num mundo de mercado diferente do que nos rodeia, de sairmos do nosso mundo de conforto para conquistar novos lugares e expandir o nosso mercado, e assim alcançar quotas de poder, mesmo que seja na solidão de quem alcança o topo.

Além disso, descobrimos que a política, que deveria ser o motor das relações e o construtor da vida em sociedade, é manipulada e gerida por interesses económicos, de tal forma que a política só serve para se desqualificarem mutuamente, sem ser um construtor de relações, e o que é pior, constrói uma cultura de egoísmo que quebra as tradições culturais que têm sido capazes de construir uma sociedade em relação.

No meio deste mundo sem uma cultura de enraizamento, nasce o populismo, o que nos torna mais virados para o interior daqueles que são diferentes, e estas novas organizações não pensam nos outros, mas apenas em si próprias. De tal forma que aqueles que têm de deixar a sua pátria não só não são bem-vindos noutros países, como também são utilizados como armas de guerra para promover uma cultura descartável, tentando eliminar socialmente aqueles que não pensam como nós.

A figura do Bom Samaritano

Da nossa fé, a figura do Bom Samaritano é essencial, não só para ver como devemos agir na nossa relação com Deus e com os outros, mas sobretudo porque nos leva à necessidade de construir uma antropologia que tenha a pessoa e a sua relação com os outros e com a criação no seu centro.

Quando esta antropologia leva à aceitação, então somos capazes de integrar tantos exilados, que não vêm necessariamente de outros países, mas que se estabeleceram na nossa cidade fugindo da pobreza rural, na comunidade social e religiosa, para que sejam capazes de criar cultura e não se sintam desenraizados, com todas as consequências negativas que isso implica para todos.

A encíclica 'Fratelli tutti' faz-nos compreender que, embora seja verdade que devemos construir o nosso mundo sobre liberdade e igualdade, não devemos esquecer que a liberdade não se baseia no individualismo de fazer o que todos querem, e que não somos todos iguais, mas que a diversidade é riqueza.

É por isso que o Papa Francisco nos convida a procurar o diálogo e o encontro como o melhor instrumento para ultrapassar o egoísmo. Diálogo não significa aceitar tudo o que nos é proposto como válido, mas sim procurar pontos de convergência entre sociedades e pessoas. Este diálogo não é aquele em que os políticos se empenham atirando os defeitos do adversário à sua cara, nem aquele que tem lugar nas redes sociais. O diálogo é face a face com a pessoa, reconhecendo-a como tal e no interesse de alcançar um bem comum.

Família e perdão

Tudo parte da simplicidade da família, que sofre alegrias e insipidez, mas que também sabe perdoar e reconciliar, e devemos ser capazes de trazer esta alegria que aprendemos a viver em família à sociedade. Perdão não significa esquecer o que aconteceu; aqueles que esquecem correm o risco de cometer novamente os mesmos erros, e por isso não devemos esquecer, a fim de construir um mundo de reconciliação e paz a partir das cinzas.

Como assinalámos no início, o Papa Francisco lembra-nos que a economia não é má em si mesma, quantos empresários neste tempo de crise, a partir de uma mentalidade cristã de compromisso e partilha, cuidaram dos seus trabalhadores para que as suas empresas e a vida das famílias de cada um deles pudessem ir em frente. No entanto, há uma economia que devemos denunciar, é a economia globalizante que anula as pessoas, que manipula os governos e não tem em conta os mais desfavorecidos, destruindo o lugar comum de cada pessoa para construir fins egoístas.

Passou um ano desde a assinatura da encíclica e ainda há muito a fazer antes de podermos falar da existência de uma verdadeira fraternidade universal. Mas não podemos esquecer que devem ser dados passos, que a esperança é um elemento fundamental na vida de um cristão e que, perante a adversidade, não nos podemos deixar levar pelos ritmos estabelecidos por uma sociedade doente que precisa de relações humanas para curar e construir um mundo onde somos todos irmãos e irmãs.

O autorP. Miguel Ángel Escribano Arráez ofm

Sacerdote franciscano. Instituto Teológico de Múrcia OFM. Centro de Estudos Teológicos da Ordem Franciscana em Espanha.

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