Educação

Educar no sofrimento

O problema da sociedade de hoje não é que ela não valoriza os doentes ou que não respeita a morte porque é "o fim", o problema da sociedade de hoje é, antes de mais, que ela não valoriza a sua própria existência. Temos de mudar o valor que damos à vida, a fim de aprender o valor do sofrimento e da morte.

Lucía Simón-26 de Janeiro de 2022-Tempo de leitura: 9 acta
sofrendo

Foto: Polina Zimmerman / Pexels

Graciano acelerou o seu ritmo ao fixar o seu lenço. Como estava frio naquela madrugada. Pôs a mão no bolso para verificar se tinha levado a chave de casa à saída. "Tudo é esquecido à pressa", pensou ele, recordando o tempo em que, também a meio da noite, tinha deixado a sua chave lá dentro. Uma noite tão fria como essa não seria para ser passada ao ar livre. Ele pensou em Petra. Talvez tenha sido ela, na noite passada. Aquela velha senhora enérgica. Quantas vezes ela tinha levado a sua comida à sacristia: "Graciano, se eu for descuidado, não comerás durante dias", costumava ela dizer-lhe.

Quando chegou à casinha com luz, foi até à porta e bateu à porta. A pequena filha de Petra, Clara, abriu a porta.

- Obrigado, Padre. A esta hora não sabia se lhe devia ligar, mas ela foi tão insistente... Ela mal fala há dias e tem-me pedido que lhe ligue toda a tarde.

- Fizeste bem, minha filha. Não tenho dias ou noites próprias. Todos eles são do Senhor.

Clara olhou para ele com gratidão, e depois de lhe tirar o casaco grosso, levou-o para o quarto onde a sua mãe se deitou.

Petra era uma mulher velha minúscula. Ela parecia perdida entre tantos cobertores e almofadas. Agarrou firmemente um rosário na mão e olhou fixamente para a porta. Quando ouviu os passos e viu a sua filha entrar, ficou cheia de vida. Como se ela concentrasse toda a vida que lhe restava nos olhos.

- Trouxe o Graciano?

- Sim, mãe. Aqui está o Padre Graciano", um sorriso aliviado iluminou o seu rosto enrugado e ele parecia encher-se de paz. Graciano entrou na sala e aproximou-se cuidadosamente da mulher doente. Clara saiu, fechando a porta.

- Olá, Petra. Boa noite, Petra. A sua filha disse-me que ela está pior e eu vim aqui para administrar os últimos ritos e dar-lhe a comunhão", Dom Graciano administrou piedosamente o sacramento e, depois de lhe ter dado a comunhão, sentou-se ao seu lado. Petra parecia feliz e agarrou-lhe a mão.

- Quantas coisas desde que chegou à cidade, lembra-se? Recém-ordenado e proveniente da cidade. Aqui disseram que não se adaptariam a uma vida tão dura e reformada", sorriu Graciano.

- Aqui encontrei a família que Deus queria para mim. Cada um dos meus paroquianos e aqueles que se recusam a ser paroquianos", Petra acenou com a cabeça.

- Tenho sido muito feliz, Graciano. Agora que o fim está a chegar, compreendo que Deus faz tudo bem. Casei-me jovem e perdi quatro filhos antes de ter tido Manuel e Clara. Pensei que nunca iria superar tanta dor. Depois o trabalho árduo, conseguir que os meus filhos estudem no estrangeiro e a doença de Antonio.

- Lembro-me dele na sua cadeira de rodas com o seu taco na mão. Quando alguém lhe bloqueava o caminho ou o incomodava, ele batia-lhe com ele", Petra ria suavemente.

- Sim, que grande sarilho tivemos com aquele feliz garrote. Até dormi com ela.

- Está com muitas dores, Petra?

- Muitos, mas não me interessa. Tenho muitos anos e uma grande fé. Deus ensinou-me o que não está nos livros: viver e, portanto, morrer quando Ele quer - Graciano olhou para ela com afecto e sem esconder as lágrimas que lhe começavam a molhar o rosto. Esta mulher, como toda a sua geração, era uma mulher forte. Quantas lições lhe continuaram a ensinar. Foi uma geração sábia, nascida para sustentar.

- É possível ser feliz no sofrimento, Graciano. Os meus filhos não o compreendem e é possível que seja por terem tido tudo tão fácil. E a vida também ensina através da dor. Talvez lhes falte a experiência de não saberem nada. Eles pensam que podem fazer tudo. Acreditam que a ciência e a sua inteligência podem consertar tudo.

- E, não é assim", sorriu Graciano. Ele gostava que ela falasse. Ele aprendeu com ela. Ele nunca se cansou de ouvir.

- Não, claro que não. Nesta vida, só dá sentido e valor às coisas que trazem felicidade.

- Qual é o sentido da dor, Petra?

- Ah... Graciano, tu conheces bem, mas tu fazes-me falar. Não, não sorria. Já nos conhecemos há muitos anos. Já comeu em minha casa mais vezes do que eu me lembro. Acompanhou-me ao funeral de vários dos meus filhos e do meu marido. Nunca esqueci uma coisa que disse no funeral do menino: "Em vida e na morte pertencemos a Deus".

- Isto é da Escritura.

- Não sei, não aprendi a ler. Mas quanta verdade existe. Não há medo para quem sabe que é o filho d'Aquele que mais o ama.

- Sente-se amado por Deus, Petra?

- Sim. Em cada dor gritei com ele e zanguei-me. Mas eu sempre soube que ele estava ao meu lado. A sofrer comigo. Ele dá sentido à falta de significado. Ele molda-nos de certa forma. Tal como o meu marido fez com as esculturas. Com golpes, com dureza. Para nos libertar.

- Grátis?

- Sim, grátis. Agarramo-nos a tantas coisas que acontecem. Pomos o nosso coração em tantas coisas que não valem a pena. E no entanto, na desgraça, apercebemo-nos que a única coisa que conta é o amor a Deus e o amor aos outros. Isso é o que significa ser livre. Não estar ligado a nada no seu coração. Hoje irei em paz. Com os meus defeitos, sei que a minha vida tem sido o que Ele queria que fosse. Só me preocupo com os meus filhos e o meu neto. Os meus filhos estão tão ocupados com coisas que não valem nada. O meu mais velho, com a coisa do vírus, enlouqueceu. "Mãe, a única coisa que importa é a saúde", disse-me ele no outro dia.

- E o que é que lhe disse?

- Eu disse-lhe que ele era um mendigo. Imagine, colocando a sua felicidade e confiança em algo que sabe que vai perder. E a outra, Clara, é uma boa rapariga, mas ela própria quer gerir tudo. Ela não compreende que o caminho para a felicidade é obedecer a Deus e fazer a Sua vontade. Ela preocupa-se apenas com dinheiro e conforto. Ela deveria ter-lhes ensinado melhor quando eram crianças.

- Aprender o sentido da vida é uma aprendizagem de alguns anos, Petra.

- Achas que alguma vez compreenderão", suspirou ela, "eu estava errada como mãe nisso. Eu nunca os ensinei a sofrer. Sempre que tinham um revés, eu fazia tudo o que podia para o tirar. E quando a dor veio, deixei-os olhar para o outro lado. Nunca lhes ensinei como lidar com isso. Devia tê-los ensinado. Porque depois bateram em buracos e não sabiam a que se agarrar. Para eles a oração é recitar pequenas palavras a toda a velocidade. Eles não sabem quem é Jesus. Eles não sabem o que significa a Cruz. Eu não os ensinei a oferecer, como a minha mãe me ensinou. Pensei que era um ensino demasiado difícil. Pensei que não iriam compreender até que tivessem uma fé mais forte. E no entanto, até onde foram.

- Eles ainda têm tempo para conhecer Deus, Petra. Vamos rezar por eles e pelo seu neto. Quando se forem embora, eu continuarei a acompanhá-los. Mas podeis ajudar do céu, pois a tarefa é grande", sorriu Petra.

- Obrigado, Graciano. Graciano começou a rezar e Petra acompanhou-o. Primeiro suavemente e depois do céu.

Depois de confortar a sua filha e prometer regressar logo pela manhã, Graciano voltou a sair ao frio. Mas agora esqueceu-se de arranjar o seu lenço e até de apertar o seu casaco.

Educar no sofrimento... educar e dar razões, pensou ele. Mas como? Como explicar o grande mistério do amor e sofrimento de Deus? A sociedade não compreende a dor e a morte porque não compreende a vida. O pensamento graciano sobre o aborto. Ele pensou na eutanásia. Ele pensava no materialismo que via com tanta frequência e na frieza em relação a tudo o que é transcendente. Ele pensou em tantas pessoas para quem uma vida como a de Petra, sem qualidade, não tinha sentido. Ele pensou naqueles que pensam que Deus é como um génio na lâmpada que deve conceder tudo o que desejamos e, se não o desejarmos, sair. Em vez de compreendermos que Ele é Deus e nós somos criaturas fracas. Como podemos mostrar tudo isto aos outros quando eles não perguntam nem se preocupam com isso? Graciano sentiu-se muito pequeno e depois o sino da igreja tocou. Ele sorriu como os amantes e mudou o seu caminho. Ele já não regressaria a casa nessa noite. Ele iria para a casa do seu pai. Para a igreja onde, num pequeno tabernáculo, habita o Senhor de todas as coisas. Ele pedir-lhe-ia a graça, a ajuda e o conforto para enfrentar no dia seguinte com alegria a imensa tarefa que Deus lhe tinha confiado.


Sociedade sem sofrimento?

Numa sociedade em que não se atribui qualquer valor à vida humana que não goza de "qualidade" pelos padrões modernos, há uma necessidade crescente de holofotes, de faróis que iluminem e dêem sentido à falta de significado. Encontrar sentido no sofrimento ajuda-nos a vivê-lo da forma mais humana possível. É por isso que é importante mergulhar mais fundo nesta realidade. Quantas vezes ouvimos os nossos anciãos "oferecer" quando tivemos um contratempo. Será que compreendemos o que isso significa?

Na nossa sociedade está a tornar-se cada vez mais necessário educar para o sofrimento. Ensinar às crianças, de acordo com a sua capacidade, que o sofrimento faz parte da vida. Seria ingénuo pensar que podemos privar os nossos filhos da experiência da dor e é importante mostrar-lhes como se devem comportar nesses momentos, a que se devem agarrar e como lidar com isso. Há uma grande frustração em não saber como lidar com a própria dor ou com a dor daqueles que nos rodeiam. Falar com as crianças, de acordo com as suas circunstâncias e capacidade de compreensão, sem lhes esconder o que vão encontrar mais cedo ou mais tarde, significa dar-lhes a capacidade de enfrentar estes momentos. É também surpreendente como as crianças compreendem o mistério da dor e como se tornam fortes e empáticas quando as ajudamos a enfrentá-la, e a não a negar como se ela não existisse. É muito positivo educar nesta área. Por outro lado, é triste ver quantos crentes não querem ensinar os seus filhos pequenos sobre a cruz, por medo de prejudicar a sua sensibilidade. É mesmo hipócrita numa sociedade onde os jogos de vídeo e os filmes são invadidos por uma violência sem sentido. Ensinar a oferecer a nossa dor, a confiar na oração, a rezar o terço e os sacramentos, no amor e no apoio dos nossos entes queridos. Todas estas ferramentas que Deus nos deixou para que possamos encontrá-lo em sofrimento.

O sofrimento cristão

É possível encontrar alegria na dor. É possível encontrar esperança onde parece não haver mais nada a fazer. E isso é possível porque Cristo existe. Porque Cristo ressuscitou e nos libertou da morte e do sofrimento, assumindo-os no seu plano de redenção. E fê-lo através da obediência. Pois ele foi obediente até à morte, mesmo a morte numa cruz. De facto, existe uma relação entre obediência e sofrimento. E não a obediência como mero cumprimento ou aceitação passiva. Mas a obediência como afirmação. Como acção positiva que afirma algo maior, mesmo que por vezes não seja claro: o amor de Deus em todas as circunstâncias e o seu cuidado amoroso por cada uma delas. Cristo foi obediente até à morte porque amou os seus até ao fim. A sua obediência foi perfeita, nascida do Amor. Não se limitou a aceitar "o que vinha no seu caminho" mas foi mais longe, vendo no sofrimento uma oportunidade de afirmar algo maior: amor pelo seu Pai apaixonado pela Humanidade.

Cristo aprendeu a obediência pelo sofrimento. Esta declaração é muito reveladora. A obediência que nasce do amor, que afirma, exige sofrimento da nossa parte. Exige uma morte para nós próprios. Exige que deixemos de olhar para nós próprios e que olhemos para Ele. Isto, paradoxalmente, é "mais fácil" para nós em sofrimento. É mais fácil para nós quando não temos mais nada. Quando somos apenas nós e Ele. Precisamos de ser "destruídos" para O deixar reconstruir-nos.

Só nos tornamos como Cristo quando permitimos que Ele aja em nós. E só O deixamos agir pela experiência de morrer para nós próprios. Se tivermos tido esta experiência, compreenderemos. Para aqueles que nunca experimentaram o seu próprio colapso, é incompreensível. É quando nos falta tudo o que nos parecia importante que podemos verdadeiramente ver o nosso coração. O quê ou melhor, de quem precisamos acima de tudo.

O sofrimento, em si mesmo, é um mal e o mal é a ausência do bem. O sofrimento é a ausência do bem físico e/ou espiritual. O verdadeiro e maior sofrimento é a ausência de Deus, uma vez que sem Ele não pode haver bem algum. Foi por isso que Jesus Cristo venceu o sofrimento na cruz. Porque Ele tomou-a sobre Si de tal forma que em cada dor nos podemos identificar com Ele. Em cada dor estamos com Ele. Já não há ausência completa. A falta de significado pode ter significado, valor.

Cristo não eliminou o sofrimento do homem porque ele respeita a liberdade humana e também a natureza danificada pelo pecado. Até a hora da Justiça e o fim dos tempos chegar, viveremos com dor e morte. Jesus Cristo não eliminou o sofrimento, mas transformou-o na sua raiz mais profunda. Participou no sofrimento ao extremo, ao ponto de o invadir com a sua Presença.

Quem nunca se interrogou sobre o valor da sua própria vida, é muito difícil compreender o significado do sofrimento e da morte. Morre-se como se viveu. O problema da sociedade de hoje não é que ela não valoriza os doentes ou que não respeita a morte porque é "o fim", o problema da sociedade de hoje é, acima de tudo, que ela não valoriza a sua própria existência. Encontramos pessoas endurecidas que vivem como se fossem mera matéria e é muito difícil abrir um horizonte de esperança para elas. Para eles, está tudo acabado. A estas pessoas devemos primeiro perguntar-lhes qual é o significado da sua existência, a fim de as abrir para encontrar um significado no seu fim.

Por vezes pensamos que Deus é um génio da lâmpada que tem de nos conceder o que queremos, se pedirmos com força suficiente. Hoje em dia quase não há pregação sobre fazer a vontade de Deus, seja ela qual for. Toda a Bíblia está cheia de passagens que convidam o povo de Deus a fazer a vontade de Deus. A nossa vida é para Deus, para fazer a vontade de Deus. É verdade que podemos rezar pela remoção deste ou daquele sofrimento ou por uma solução para os nossos problemas. Mas a oração e a confiança em Deus devem ser sempre orientadas para a aceitação da Sua vontade. A ira contra Deus, quando o sofrimento vem, reside em não querer largar as rédeas da nossa vida porque o queremos à nossa maneira, ou em compreender erroneamente que o sofrimento é uma ordem de Deus.

Como sociedade, podemos ajudar muito. Em primeiro lugar, como já salientámos, educando os nossos filhos desde tenra idade para compreenderem o significado do sofrimento. Mas também promovendo a solidariedade, cuidando dos doentes, investindo na formação do pessoal de saúde, nos cuidados paliativos... Temos de mudar a imagem que muitas vezes é retratada dos idosos, dando-lhes o seu espaço e a importância e valor que têm perante uma cultura de juventude e materialismo. Precisamos de mudar o valor que colocamos na vida, para aprender o valor do sofrimento e da morte.

O autorLucía Simón

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