A relação entre a ciência moderna e a religião cristã parece estar rodeada por uma auréola de conflito que condiciona tudo o que se diz sobre ela. É assim que é vista por aqueles que estão convencidos de que há algo de fundamentalmente errado com uma ou outra: os cientistas pensam que a ciência moderna monopoliza a verdade, pelo que todas as religiões têm necessariamente de ser falsas, exceto, em todo o caso, uma versão científica delas, como a "religião da humanidade" que Augusto Comte tentou estabelecer no século XIX. Ao mesmo tempo, há cristãos que contra-atacam recordando a falta de sucesso de tais tentativas: vêem na ciência, no máximo, um punhado de verdades secundárias, que devem ser bem amarradas para não as absolutizar, uma tentação que está sempre à espreita.
Dediquei a maior parte do meu esforço a examinar a história da relação entre a ciência moderna e a religião cristã. Devo dizer que discordo de ambas as posições. Não me baseio num mero palpite: dei-me ao trabalho de coordenar um grupo de especialistas para analisar a atitude pró, anti ou a-religiosa de uma seleção de 160 personalidades de todos os domínios do conhecimento positivo, desde o início do século XVI até ao final do século XX. As nossas conclusões são categóricas: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, praticamente todos eles foram pró, anti ou a-religiosos. todos os criadores da nova ciência eram crentes. Não eram apenas ao mesmo tempo cientistas y Cristãos, mas o trabalho que realizavam era quase sempre motivado pela religião, pelo que conseguiram tornar-se investigadores de alto nível. porque eram cristãos (o mesmo se pode dizer, em geral, dos académicos de segundo e terceiro nível).
No século XIX, período em que a descristianização dos intelectuais europeus (sobretudo dos filósofos) tinha avançado muito significativamente, os cientistas continuavam a ser maioritariamente homens de fé: 22 em 32 da nossa seleção. E os que aderiram à religião não eram propriamente os menos representativos: incluíam nada menos que Gauss, Riemann, Pasteur, Fourier, Gibbs, Cuvier, Pinel, Cantor, Cauchy, Dalton, Faraday, Volta, Ampère, Kelvin, Maxwell, Mendel, Torres Quevedo e Duhem: os melhores entre os matemáticos, astrónomos, físicos, químicos, biólogos, médicos e engenheiros da época.
Todos sabemos que, no século XX, o desinteresse espiritual se tornou um fenómeno de massas. No entanto, a opção religiosa continua a ser a mais popular entre os grandes cientistas: 16 dos 29 cuja filiação não é posta em causa. Mais uma vez, os cristãos não são de modo algum um grupo marginal: Planck, Born, Heisenberg, Jordan, Eddington, Lemaître, Dyson, Dobzhansky, Teilhard de Chardin, Lejeune, Eccles...
Iluminismo e secularização
Os dados são sempre passíveis de interpretação; podemos apresentá-los de uma forma ou de outra e dar-lhes as voltas que quisermos. No entanto - sofismas e retórica à parte - é difícil evitar as conclusões que se seguem:
1ª. A ciência moderna nasceu e cresceu na Europa cristã e não precisamente por obra de minorias dissidentes, mas pela mão de pessoas firmemente ligadas a essa tradição (Copérnico, Képler, Galileu, Descartes, Huygens, Boyle, Bacon, Newton, Leibniz, etc. etc.).
2ª. Não existe um único "Iluminismo", isto é, um único movimento determinado a promover o desenvolvimento da razão e o aperfeiçoamento da humanidade através do livre uso das faculdades intelectuais de acordo com um ideal emancipatório. É verdade que existe um iluminismo antirreligioso (a de Diderot, La Mettrie, d'Holbach ou Helvetius) e também uma iluminismo anti-cristão (a de Voltaire, d'Alembert, Frederico II ou Condorcet). Mas, a par destes, há também um outro Iluminismo cristão, a única que levou a ciência moderna à sua maturidade definitiva, tanto em Espanha (Feijóo, Mutis, Jorge Juan...) como no estrangeiro (Needham, Spallanzani, Maupertuis, Euler, Herschel, Priestley, Boerhaave, Linnaeus, Réaumur, Galvani, von Haller, Lambert, Lavoisier...).
3ª. O processo de secularização que se está a verificar no mundo ocidental ao longo da modernidade. de qualquer forma foi causada pelo surgimento da nova ciência, mas sim pela atrasada para isso. A comunidade científica, tanto na esfera dos grandes criadores como na dos modestos trabalhadores do conhecimento, sempre foi (e continua a ser) mais piedoso do que o seu ambiente social.
4ª. Se quisermos encontrar as causas histórico y sociológico do processo moderno de secularização (deixando de lado, de momento, as espiritual), há alternativas muito mais credíveis do que atribuí-la ao desenvolvimento da racionalidade científica. A primeira delas é a divisão das igrejas cristãs após a Reforma Protestante e o escândalo das subsequentes guerras religiosas. Paul Hazard e muitos outros sublinharam a crise de consciência que ocorreu em todos os países onde a perda da unidade religiosa minou as próprias bases da convivência social (sobretudo em França, Inglaterra e Alemanha). Uma anedota num milhão ilustra o fenómeno: em 1689, Leibniz atravessava a lagoa de Veneza. Os barqueiros (que não esperavam que o alemão percebesse italiano) planearam assassiná-lo, uma vez que, como herege, não viam nada de mal nisso: pelo contrário, era uma ação louvável e lucrativa. Leibniz salvou a sua vida tirando um rosário do bolso e começando a rezar, uma prática que dissuadiu os rufiões das suas más intenções: a história do Bom Samaritano não era então considerada um modelo a seguir.
A descristianização dos filósofos, dos literatos e dos intelectuais está intimamente ligada à perda de uma base religiosa comum. Tragicamente, foram impotentes para remediar os inegáveis males que afligiam a Igreja e para impedir a fragmentação da Reforma em inúmeras confissões. Mais uma vez, ilustro isto com um exemplo: o grito desesperado de Erasmo de Roterdão perante a incapacidade dos seus contemporâneos de se unirem em torno dos mistérios da fé, em vez de exacerbarem os ódios: "... a fé da Igreja não era um mistério.Definimos demasiadas coisas que poderíamos ter ignorado ou negligenciado sem pôr em perigo a nossa salvação... A nossa religião é essencialmente paz e harmonia. Mas estas não podem existir enquanto não nos resignarmos a definir o menor número possível de pontos e deixar cada um ao seu próprio critério em muitas coisas. Muitas questões foram agora adiadas para o Concílio Ecuménico. Seria muito melhor adiá-las para o momento em que o espelho e o enigma forem desvendados e em que veremos Deus face a face"..
O fracasso dos teólogos da época é patético. As soluções propostas pelos filósofos puros, tais como a definição de uma religião puramente natural, o apaziguamento dos ânimos através de uma "abertura de espírito" pura e simples ou a procura de valores laicos alternativos para sustentar a vida individual e colectiva, revelaram-se inviáveis ou catastróficas. Em comparação, os pioneiros da nova ciência tiveram uma atitude muito mais construtiva e eficaz: mantiveram-se fiéis aos artigos fundamentais da fé, sem procurar distorcê-los ou transformá-los numa arma a utilizar contra os outros. Consideraram - com razão - que a tarefa de decifrar os enigmas do universo fomentava a piedade, remediava as misérias materiais da existência e, não menos importante, unia as almas em vez de semear a discórdia.
O ecumenismo manifestado por estas personagens desde o início é notável: um bom ecumenismo, não baseado na rejeição dos dogmas em disputa, mas no empenho em acrescentar novas verdades aos preâmbulos da fé, que alimentava a admiração pelo poder e pela sabedoria de Deus, ao mesmo tempo que aumentava o respeito pelo homem, a criatura mais elevada do universo. Há exemplos verdadeiramente comoventes: o cónego Copérnico manteve-se fiel à Igreja Católica no meio da turbulência; só decidiu publicar a sua grande obra astronómica por insistência do seu bispo, dedicou-a ao Papa reinante (que apreciava o pormenor), recorreu aos serviços do jovem astrónomo reformado Rhaetius para a concluir e encontrou um editor na Nuremberga luterana. As autoridades teológicas locais não tiveram qualquer problema em autorizar a impressão do livro que um católico polaco oferecia ao pontífice romano. É surpreendente que o também católico Descartes tenha vivido e composto a sua grande obra científica na Holanda protestante, ou que o luterano Kepler tenha estado sempre ao serviço dos monarcas católicos.
Sob o patrocínio católico
Não se trata de casos isolados: as primeiras academias de ciências europeias serviram de refúgio a minorias religiosas perseguidas. E não se trata certamente de uma atitude indiferente em relação à religião: Descartes mantinha uma correspondência cordial com Elisabeth da Boémia, a princesa que tinha dado origem à terrível Guerra dos Trinta Anos. Quando esta se atreve a atacar as convicções do matemático e filósofo francês (mencionando um caso de conversão ao catolicismo, supostamente por interesse), ele reage com firmeza e tato: "Não posso negar-vos que fiquei surpreendido ao saber que Vossa Alteza foi incomodado [...] por algo que a maioria das pessoas considerará bom [...]. Porque todos aqueles da religião a que pertenço (que são, sem dúvida, a maioria na Europa) são obrigados a aprová-lo, mesmo que tenham visto circunstâncias e motivos aparentemente repreensíveis; porque acreditamos que Deus usa vários meios para atrair as almas para si, e que aquele que entrou no claustro com uma má intenção levou depois uma vida extremamente santa. Quanto àqueles que são de outra crença, [devem considerar] que não seriam da religião que são se eles, ou os seus pais, ou os seus antepassados, não tivessem abandonado a romana, [de modo que] não poderão chamar inconstantes àqueles que abandonam a sua".
O já referido Leibniz não só foi bem recebido quando visitou o Vaticano, como lhe foi oferecida a direção da sua biblioteca se regressasse à sua fé ancestral. Leibniz recusou a oferta, porque não achava correto mudar de religião para obter vantagens mundanas, mas sobretudo porque estava a trabalhar arduamente (primeiro com o bispo Rojas Spinola e depois com Bossuet) para conseguir a reunificação de luteranos e católicos num concílio ecuménico, que não se realizou apesar do apoio papal, porque era contrário aos interesses do rei de França, Luís XIV.
Este último exemplo leva-nos ao ponto crucial: os conflitos que surgiram entre as instituições eclesiásticas e os estudiosos da natureza, como os casos de Galileu e da Inquisição romana, ou de Servetus e Calvino.
O "caso" Galileu
Sobre elas (sobretudo sobre a primeira) e sobre a tese de um conflito inevitável entre a esfera religiosa e a esfera científica, já se derramou muita tinta. Não é possível aprofundar o assunto, mas vale a pena fazer algumas observações que são partilhadas por quase todos os estudiosos grave. Em primeiro lugar, foram acontecimentos muito marcantes, tanto na Igreja Católica como nas outras confissões cristãs.
A historiografia positivista/científica do século XIX (bem como as sequelas que ainda hoje tem em todos aqueles que escrevem em obediência a slogans ou mediados pela ideologia) tomou a disputa de Galileu como bandeira para demonstrar uma suposta guerra (certamente não "santa") entre a ciência e a religião. Esta é a forma de indução mais abusiva que conheço: salta diretamente do um para o infinito. Para que houvesse uma tal guerra, seria necessário aumentar a lista dos cientistas de renome (mesmo que simplesmente solventes) que foram oprimidos. para as teses científicas que defendiam. Apenas a título de contextualização, vale a pena recordar que, ao longo do século XVII, a lista de cientistas famosos, apenas no seio da ordem dos jesuítas, inclui, entre outros, os seguintes nomes Stéfano degli Angeli, Jacques de Billy, Michal Boym, José Casani, Paolo Casati, Paolo Casati, Louis Bertrand Castel, Albert Curtz, Honoré Fabri, Francesco Maria Grimaldi, Bartolomeu de Gusmão, Georg Joseph Kamel, Eusebio Kino, Athanasius Kircher, Adam Kochanski, Antoine de Laloubère, Francesco Lana de Terzi, Théodore Moretus, Ignace-Gaston Pardies, Jean Picard, Franz Reinzer, Giovanni Saccheri, Alfonso Antonio de Sarasa, Georg Schönberger, Jean Richaud, Gaspar Schott, Valentin Stansel e André Tacquet.
Além disso, é incontestável o facto de tanto Galileu como Servetus terem sido, ao mesmo tempo que homens de ciência, homens de fé, tão apegados (ou mais) às suas próprias convicções religiosas como aqueles que os condenavam. Em terceiro lugar, investigações mais recentes e autorizadas, como as de Shea e Artigas, estabeleceram sem margem para dúvidas que estas "perseguições" muito específicas e limitadas se deveram a considerações tácticas relacionadas com o exercício do poder e com a estratégia política, quando não pura e simplesmente a rancores pessoais. Os membros da Igreja, mesmo nas mais altas esferas, nunca estiveram isentos de vícios e pecados, e ainda mais numa época como aquela em que os principais hierarcas detinham um poder e uma riqueza de que eram felizmente (seria melhor dizer, "a Igreja") não só os mais poderosos mas também os mais ricos: providencialmente) foram sendo despojadas ao longo do tempo. No entanto, há que dizer que, durante a ascensão da modernidade, pecaram muito mais frequentemente e de forma muito mais grave contra as exigências da religião a que estavam vinculados do que contra os interesses da cultura, da arte ou da ciência.
Em suma, argumentar, a partir do processo de Galileu (apesar de lamentável), que a Igreja é alegadamente hostil à nova ciência seria mais ou menos como afirmar que os Estados Unidos se opõem à física, uma vez que os seus dirigentes encenaram uma espécie de julgamento do pai da bomba atómica, Oppenheimer, para questionar o seu patriotismo.
A tese continua a ser a de que a ciência moderna nasceu e floresceu com o encorajamento e a inspiração de indivíduos que, numa proporção esmagadora, eram cristãos fervorosos. Terá sido uma coincidência? Penso que não. Na Antiguidade tardia, os sábios pagãos de Alexandria poderiam muito bem ter iniciado o caminho que, mil anos mais tarde, foi trilhado pelos cristãos do Ocidente. Mas não o fizeram. Porquê? Há várias razões convergentes:
1) O desprezo olímpico pelo trabalho manual, manifestado pelos gregos e romanos, foi contrariado pelo princípio "quem não trabalha, não coma", formulado por Paulo de Tarso, apóstolo da nova fé, enquanto fazia tendas com as suas próprias mãos. Desde o início, o cristianismo patrocinou todas as ocupações honestas. Desde o escravo ou o operário até ao rei, toda a gente podia integrar-se nele.
2. Os pagãos nunca conceberam uma plus ultra do universo: as suas próprias divindades eram cósmicas. Uma condição de possibilidade indispensável para o aparecimento da ciência era a desmistificação do universo, ou seja, a subjugação da natureza a uma legalidade superior. Embora tenham sido necessários quinze séculos para completar a tarefa, foram os cristãos os primeiros a realizá-la e a tirar as devidas consequências.
3. Ao contrário das concepções cíclicas do tempo que dominavam as primeiras civilizações europeias e as culturas exóticas, a ciência moderna teve de partir de uma conceção linear. Foram também os cristãos que a proporcionaram.
4. A noção de direito natural é indispensável para o desenvolvimento da nova ciência. A ideia de um Deus transcendente, criador e legislador, foi a matriz de onde ela emergiu.
5) Os pitagóricos já tinham concebido o mundo em termos de formas e estruturas matemáticas. No entanto, a maior parte das equações matemáticas são demasiado complexas para serem resolvidas pela mente humana. Deus poderia certamente ter criado um universo muito mais complicado do que este, mas nesse caso estaria para além da nossa compreensão. Ou um mais mecanicamente perfeito, mas nesse caso seria inabitável. Não é a menor contribuição da religião ter dado aos investigadores a convicção de que o mundo é relativamente simples de compreender, apesar de ser suficientemente complexo para conter seres tão sofisticados como nós.
Se a história que contei fosse verdadeira, porque é que os cientistas cristãos são hoje uma minoria? A razão é muito simples: o nascimento da nova ciência exigiu uma coragem intelectual e espiritual que só o cristianismo podia proporcionar. Uma vez posta em marcha e provadas as suas enormes potencialidades, já não era necessário estar imbuído do espírito fundador. Para além dos grandes criadores, os homens de ciência não são de uma raça especial: filhos do seu tempo, partilham geralmente os valores e as crenças dominantes. São apenas um pouco mais trabalhadores, mais realistas, menos cínicos e desencantados do que a média dos seus contemporâneos: é esta a herança que resta das raízes cristãs da ciência, uma herança que, no entanto, pode perder-se se a civilização atual persistir no niilismo gerado pelo seu afastamento de Deus. Não menos triste é o facto de muitos cristãos se terem afastado da ciência como se esta lhes fosse estranha ou hostil. Isto só pode ser explicado pela ignorância de como nasceu esta grande empresa e qual continua a ser a sua vocação mais profunda. Como superar este afastamento? Sair da indolência e assumir de uma vez por todas as exigências que decorrem do compromisso com Cristo.