Dossier

Mindfulness e fé: uma contradição ou um complemento?

Oferecemos uma análise da natureza do mindfulness, dos seus riscos e da sua compatibilidade com a fé cristã.

Javier García Herrería-10 de janeiro de 2025-Tempo de leitura: 8 acta
atenção plena fé

Quando se pesquisa se a Igreja recomenda ou desaconselha o mindfulness para os católicos, constata-se que a maioria das referências nos poucos documentos magisteriais em que é mencionado varia entre a desaprovação total e um apelo sincero à prudência na sua aplicação. O mesmo acontece se procurarmos opiniões sobre o assunto em sítios Web de informação religiosa fiéis ao Magistério da Igreja, uma vez que são evidentemente alimentados, antes de mais, pelas opiniões dos pastores.

Problemas graves

É verdade que há muito boas razões para que muitos bispos, padres e pessoas com discernimento desencorajem o mindfulness. Não faltam motivos de preocupação: por exemplo, em algumas instituições eclesiásticas, os exercícios espirituais tradicionais (baseados no silêncio exterior, na receção dos sacramentos e na pregação) foram substituídos pelo ioga, pela meditação zen ou por retiros de mindfulness.

Por outro lado, há escolas e universidades católicas que oferecem actividades sobre estes temas como se fossem o substituto natural ou "moderno" do modo cristão de rezar. Só com base nestes dois factos, há que reconhecer que a confusão gerada tem sido muito notória e até particularmente grave em alguns contextos, pelo que é natural que muitas pessoas tenham dado o alarme.

A admiração pelas práticas orientais tem andado de mãos dadas com o aparecimento de muitas crenças pseudo-religiosas, esotéricas, mágicas ou fantasiosas. É claro que não afectou apenas os cristãos, mas todos os cidadãos, ao ponto de podermos encontrar clínicas que apresentam a fisioterapia ou o reiki (uma prática de cura japonesa baseada na ideia de que a energia vital flui através do corpo e pode ser canalizada pelas mãos do terapeuta; os seus pressupostos são incompatíveis com a fé cristã) como terapias de eficácia semelhante.

O crescimento da celebração do Halloween (o segundo maior evento de despesa depois do Natal) ou a normalização de muitas práticas supostamente "espirituais" (horóscopos, tarot, Ouija, Santeria e um longo etc.) são outros exemplos deste fenómeno de diversidade de crenças não científicas ou irracionais.

A relevância da abordagem destes assuntos foi de tal forma desvalorizada que mesmo os temas diretamente relacionados com o diabo não são encarados com um mínimo de credibilidade. Por isso, não é de estranhar que uma das maiores cadeias comerciais de Espanha tenha posto à venda há dois meses um jogo, para maiores de 14 anos, intitulado "O Diabo".Invocar demónios". Os protestos que gerou nas redes sociais levaram à sua retirada das prateleiras, mas mostra bem até que ponto estas questões são banalizadas.

Apesar deste contexto preocupante, vale a pena considerar em profundidade se a atenção plena pode ser considerada uma prática terapêutica distinta das suas antecessoras. A fé cristã não deve ter medo de recorrer a tudo o que é verdadeiro e bom em todas as coisas. Acrescente-se a isto o facto de a atenção plena ser cada vez mais recomendada por muitos psicólogos e psiquiatras para lidar com o stress ou a ansiedade, e seria bastante contraproducente para a Igreja opor-se a ela sem razões bem fundamentadas.

A fé cristã defende a compatibilidade da fé e da razão, pelo que o crente não deve ter medo de analisar as coisas com calma e profundidade.

A ocidentalização do ioga

A atenção plena é uma prática que tem as suas raízes na filosofia budista, sendo uma parte fundamental da roda do Dharma, que resume os ensinamentos fundamentais do Budismo. Especificamente, a atenção plena faz parte do "Nobre Caminho Óctuplo", um dos passos do ioga para tentar eliminar o sofrimento.

Esta perspetiva budista é, sem dúvida, incompatível com a fé cristã, pois pretende atingir um estado de felicidade completa que não necessita de ajuda divina. A sua herança gnóstica é evidente, pois o conhecimento pessoal e a ascese são as principais causas do desenvolvimento pessoal.

Há cinquenta anos, as sociedades ocidentais eram muito menos crédulas e sincretistas do que são atualmente, pelo que não foi fácil para o ioga e todas as ideias religiosas e culturais que o sustentam penetrarem na opinião pública. No entanto, um grupo de médicos considerou que algumas das suas práticas.

poderiam ser benéficas para a saúde mental, independentemente de as suas hipóteses serem aceites. Um deles foi o Dr. Jon Kabat-Zinn, doutorado pelo MIT, que nos anos 70 desenvolveu nos Estados Unidos um programa de redução do stress baseado no mindfulness. Para ganhar aceitação, retirou a componente religiosa da prática oriental, o que facilitou a sua aceitação em contextos de saúde e bem-estar.

O que é a atenção plena?

A atenção plena é uma prática que pode ser feita de várias formas. Para começar, basta estar bem sentado numa cadeira, fechar os olhos e tentar prestar toda a atenção à sua respiração. Outra possibilidade é tentar reparar noutras percepções dos diferentes sentidos de que normalmente não estamos conscientes.

Ao tentar concentrar-se durante alguns minutos nas sensações corporais, é fácil distrair-se com outros pensamentos que provavelmente também ocuparam a sua atenção noutras alturas do dia: uma compra ou um telefonema a fazer, um assunto de trabalho, um problema familiar, etc. Muitos destes pensamentos podem ser negativos ou stressantes, especialmente se estivermos constantemente a pensar e a remoer neles.

O Mindfulness convida as pessoas a deixarem os pensamentos de lado, especialmente se forem stressantes ou negativos, mas quando isso não é possível, tenta levar o praticante a reparar nos aspectos positivos de um mau pensamento. Será que é assim tão mau? Será que ajuda se eu ficar stressado ou deprimido? Será que posso ser feliz apesar das más notícias?

Quando o praticante de mindfulness tiver relativizado a importância dos seus pensamentos e das suas emoções, tentará voltar a prestar atenção às sensações corporais. Fazer isto uma vez de pouco serve, mas se o repetirmos diariamente e adquirirmos um certo hábito, a nossa capacidade de estarmos atentos ao momento presente aumentará e deixaremos de nos distrair continuamente com outros pensamentos hipotéticos que produzem stress. Como seria de esperar, um dos efeitos da prática da atenção plena é um aumento da capacidade de concentração.

Atitudes que se desenvolvem

Como vimos, o mindfulness visa prestar a maior atenção possível ao momento presente, facilitando que os pensamentos negativos não colonizem a mente e a esgotem. A prática regular da terapia mindfulness tem como objetivo promover uma série de atitudes nas pessoas, nomeadamente

-Aceitação: aceitar o momento presente mesmo que seja mau ou, na medida do possível, realçar o lado positivo.

-Não julgar: muitas vezes não se pode mudar as circunstâncias, mas o que se pode fazer é decidir que atitude tomar em relação a elas, tentando não fazer julgamentos duros ou negativos que não resolvem nada e só produzem insatisfação.

-Não se torne obcecado: se não conseguir algo, não vale a pena alimentar inutilmente a sua ansiedade por não o conseguir. É mais positivo tentar apreciar o caminho percorrido até atingir um objetivo.

-Paciência: não estar sempre à procura do que nos agrada, não tentar fazer as coisas na perfeição. O importante é melhorar pouco a pouco.

-Confiança: acreditar que se é capaz de alcançar o que se pretende fazer, pelo que é importante não desistir.

Avaliação

Analogamente a ir ao ginásio regularmente, ao praticar 15 a 30 minutos de atenção plena todos os dias, pode desenvolver bons "músculos mentais" para lidar com a vida quotidiana. No entanto, tal como no desporto, pode lesionar-se se

Também na atenção plena há um equilíbrio entre a aceitação das nossas limitações e uma atitude proactiva para tentar mudar o que pode ser mudado. É bom lembrar a máxima de Aristóteles de que a virtude está no meio termo entre os extremos viciosos. 

Este artigo não tem por objetivo estabelecer um juízo médico sobre a atenção plena, avaliando até que ponto é eficaz, para que problemas é mais útil recomendá-la, etc. Essa é uma questão que cabe aos profissionais de saúde avaliar.

O que é interessante notar é como esta terapia é cada vez mais recomendada por um número crescente de terapeutas (também alguns que são bons católicos) e muitas pessoas admitem que tem efeitos positivos nas suas vidas.

Assim, tendo em conta em que pode consistir exatamente a prática da atenção plena e como é perfeitamente separável das raízes religiosas e sincretistas do ioga, vale a pena perguntar se há nela algo que ofenda diretamente o dogma ou a moral católica.

Mindfulness e cristianismo

Se o que precede foi corretamente entendido, não parece haver algo intrinsecamente errado com a prática da atenção plena. Outra coisa é quando se frequenta cursos, livros ou terapias que misturam mindfulness com outros assuntos esotéricos. Nesse caso, porém, é importante ter consciência de que essas propostas seriam desvios do que a maioria dos terapeutas entende por mindfulness.

Outro risco que pode surgir para um crente é que a prática da atenção plena desperte uma certa curiosidade ou atração por métodos orientais de meditação (yoga, zen, etc.) ou métodos naturais alternativos (como o reiki). Se uma pessoa tem pouco conhecimento e prática da fé e uma tendência para a credulidade, pode ficar fascinada pelo desconhecido e pensar que há tanta sabedoria noutras culturas como no cristianismo; que a falta de provas noutras tradições religiosas é comparável à falta de provas para um cristão aceitar o relato do Génesis, e assim por diante. Ora, este tipo de questões deveria incentivar os líderes católicos a encorajar a formação sobre este tipo de questões. Não é uma boa atitude não fazer o esforço de discriminar quais os aspectos que podem ser positivos e quais os que não podem. 

Mindfulness não é oração

A primeira razão pela qual a atenção plena é muitas vezes confundida com a oração cristã prende-se com o facto de a mesma palavra ser frequentemente utilizada para descrever ambas as práticas: "meditação". Por exemplo, por um lado, fala-se de "meditação" num contexto cristão como uma forma pessoal de rezar, distinta das orações vocais formais (como o rosário ou o breviário). Por outro lado, quando se pratica a atenção plena, também se diz que se vai passar algum tempo em "meditação". Utiliza-se o mesmo conceito, mas o significado é muito diferente.

Mas os paralelismos entre as duas práticas não terminam aqui, pois do exterior as duas podem ser indistinguíveis. Uma pessoa não consegue perceber se outra está a rezar em silêncio, a tentar falar com Deus, ou a tentar concentrar-se nos seus sentidos e pensamentos. No entanto, estas duas actividades são, na realidade, muito diferentes. A oração é um diálogo do homem com Deus, enquanto a atenção plena é uma introspeção psicológica consigo mesmo. Na oração, tenta-se procurar a vontade de Deus e identificar-se com Ele, enquanto a atenção plena procura encontrar o bem-estar físico e psicológico.

Compreender estas diferenças é essencial para entender a diferença entre uma prática de meditação saudável para a saúde e a meditação cristã. A primeira pode desenvolver atitudes positivas para o bem-estar pessoal, enquanto a segunda abre uma relação pessoal com Deus através do diálogo. As recomendações dos pastores da Igreja sempre sublinharam este aspeto nos seus comentários ao longo das duas últimas décadas.

Posições problemáticas

Sem querer citar nomes, é bom saber que alguns sacerdotes com grande influência mediática têm promovido certas práticas de meditação em que não é claro para onde conduzem as suas metodologias. Algumas destas posições são preocupantes porque não esclarecem se a introspeção pessoal é um fim em si mesmo ou, pelo contrário, apenas um meio para melhorar a concentração e afastar-se do ruído da azáfama quotidiana, procurando depois desenvolver uma relação pessoal com Deus.

Outras propostas, ainda mais desviantes, defendem que é preciso transcender as limitações dos dogmas e sacramentos cristãos para entrar numa relação direta com Deus. Naturalmente, tais ideias, defendidas por padres ou outras pessoas proeminentes na Igreja, despertaram a preocupação da hierarquia e provocaram os seus pronunciamentos.

É, naturalmente, positivo que estas chamadas de atenção tenham ocorrido, embora, por vezes, possam ter sido feitos juízos demasiado prescritivos contra a atenção plena. A este respeito, talvez seja ainda melhor investigar mais aprofundadamente se a meditação defendida por muitos praticantes de psicoterapia é sempre problemática para um crente ou se pode ser aceite como um meio de melhorar a saúde emocional e o bem-estar (sabendo que estes são sempre limitados).

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