Da varanda de São Pedro, logo que foi eleito e depois da bênção apostólica, fiquei comovido com as suas simples palavras: Bom dia (que traduziríamos em espanhol como "que aproveche"), uma vez que estamos perto da hora do almoço.
Um Papa realista, concreto, simples, humilde e com carácter. Um Papa que está a sofrer muito por causa da sua doença e que está a oferecer todas as suas dores. Os meios de comunicação apressaram-se a falar de um conclave, quando já sabemos que ele está estável e fora do hospital.
Uma eleição surpresa
Nunca pensou vir a ser Papa e admite, na sua autobiografia, que a sua nomeação o apanhou de surpresa e sem estar preparado para ela (se é que alguém pode estar preparado para ser Papa).
Tinha ido a Roma com uma mala leve para o conclave e teve de ficar lá, porque o Espírito Santo (que anima a Igreja até ao fim dos tempos) assim o quis.
O Papa Francisco tem sido caracterizado como um Papa "diferente", que rompe com os moldes ao querer apresentar-se não como um homem poderoso da terra, mas como um pastor de ovelhas.
A Igreja está em perene transformação, e alguns aspectos externos mudam com o tempo. Jesus manifestou-se, mas a revelação descobre-se ao longo da história e os símbolos que representam o sagrado mudam de acordo com a mentalidade da época.
Hoje, um papa deve ser visto como um mensageiro do Evangelho, não como um homem poderoso da terra.
Em 1964, Paulo VI vendeu a sua tiara e doou o dinheiro para obras de caridade, um gesto que fez o povo compreender que o Papa não deve ser um modelo dos poderosos da terra. O papado não deve afirmar-se perante os poderes temporais.
O Papa Francisco, ao longo do seu pontificado, deixou isso claro desde o primeiro minuto. Francisco vê a Igreja como um hospital de campanhaNo meio de um campo de batalha, onde, quando se está gravemente ferido, é preciso tratar as feridas e não olhar para o nível de glicose. É por isso que tem surpreendido constantemente as pessoas com os seus gestos diretos e concretos, como telefonar ao pároco de uma igreja católica em Gaza.
Devoção à Virgem
É um Papa que tem uma grande devoção à sua mãe, a Virgem Maria. Uma vez conheceu uma família que educou os seus filhos com valores cristãos, mas que se esqueceu de Maria porque a considerava uma coisa do passado, e teve muita pena deles.
Uma manifestação do seu amor por Maria é o facto de, na manhã de fumata biancaO Cardeal Jorge Mario Bergoglio tinha ido rezar no Santa Maria la Maggiore, onde se encontra um ícone bizantino: "Salus Populi Romani"que, segundo a tradição, foi pintado por São Lucas.
A maioria dos Papas é sepultada sob a Basílica de São Pedro, mas o Papa Francisco optou por seguir o exemplo do Papa Leão XIII, que em 1903 foi sepultado por sua livre vontade na Basílica de San Giovanni in Laterano. Pio IX, antes dele, também tinha escolhido uma basílica para além do Tibre, San Lorenzo fuori le mura.
Francisco vai repousar no local onde foi rezar centenas de vezes pelas suas necessidades e onde foi rezar na manhã em que foi eleito. Trata-se, portanto, de uma escolha sentimental.
Vida comunitária
A vida em comunidade é essencial para ele, razão pela qual não quis viver nos edifícios do Vaticano, mas em Santa Marta, junto dos seus irmãos e irmãs na fé. É um Papa "rocker", que gosta de estar em contacto com outras pessoas.
O Espírito Santo sopra como quer e quando quer, e se antes tínhamos um Papa teólogo, que se contentava com os seus gatos e em tocar órgão nos tempos livres, este Papa foi (enquanto a saúde lhe permitiu) um daqueles que andava na rua e no metro para ver a cara das pessoas.
Um novo estilo
A simplicidade que o caracteriza também se aplica ao seu funeral, e introduziu alterações nos seus ritos fúnebres: simplificou o serviço fúnebre. No dia 20 de abril de 2024, na nova Ordo Exsequiarum Romani Pontificis, que foi atualizado após vinte anos. O Papa comentou, em tom de brincadeira, que o rito fúnebre precisava de uma modificação para o simplificar e ele próprio será o primeiro a experimentá-la. As novidades concentram-se em quatro aspectos: a língua, as principais fases da cerimónia, a modificação dos textos e da música das orações, a celebração litúrgica após a morte do Papa.
Os títulos solenes darão lugar a termos mais simples como PastorO falecimento assumirá um carácter mais espiritual. A confirmação do óbito terá lugar na sua capela pessoal e o corpo será exposto num único caixão, eliminando a utilização de três caixões diferentes.
De todos os contributos deste Papa pastoral, resta-me a sua pregação sobre a família. Todos nós sonhamos com uma família bela e perfeita. Mas a perfeição, Francisco deixou claro, não existe.
A família
Para Francisco, a família é sagrada, um lugar de crescimento. O Papa aconselhou a telefonar aos pais (se os tiver). Os homossexuais precisam de compreensão: "São filhos de Deus e têm o direito de estar numa família. Não se pode expulsar ninguém da família, nem tornar a vida impossível para eles. Para o Papa, todas as famílias têm os seus problemas e as suas grandes alegrias. Numa família, todos são diferentes uns dos outros, cada pessoa é única e as diferenças podem levar a conflitos e a feridas dolorosas.
O remédio para curar estas feridas é o perdão e, com a ajuda de Deus, podemos ganhar a força para o fazer de coração. Deus também nos perdoa, nós é que não deixamos que o perdão de Deus nos encha e nos cure. Deus nunca se cansa de perdoar. Esse perdão liberta-nos do ressentimento e traz-nos a paz. Palavras de um Papa que nos desarmam, mas o que é interessante nele é que é o coração que desarma.
Um Papa para todos, todos
O Papa brinca com a sua própria morte. "Alguém está a rezar para que o Pontífice vá para o Paraíso, mas o dono da seara pretende deixar-me aqui", brincou com Meloni quando este o foi visitar em nome do povo italiano no décimo andar do Hospital Gemelli.
Houve ondas de conclave, apesar de a vida do Papa estar nas mãos de Deus. Velas, missas, orações: os fiéis parecem estar em suspenso, com o Papa no hospital.
Os ateus, os agnósticos e as pessoas que professam outras religiões não escondem um certo choque perante um Pontífice que abriu novos caminhos e reduziu o fosso num mundo pós-moderno.
Um Papa que chegou a todos, a todos, a todos (reproduzindo o "todos, todos, todos" que o Papa disse aos jovens em Lisboa).