Um mestre em "fazer confusão"

Álvaro, um mestre da "desarrumação": apesar de a ELA lhe ter retirado o movimento, nunca perdeu a capacidade de fazer barulho, de espalhar sorrisos e de viver com um amor inabalável pela vida. O seu legado é um hino à alegria e à fé, mesmo nos momentos mais difíceis.

9 de fevereiro de 2025-Tempo de leitura: 4 acta
Álvaro Granados

O Álvaro era um desordeiro. Sempre o foi, mesmo antes de estar doente. A esclerose lateral amiotrófica (ELA) retirou-lhe os movimentos, mas não a capacidade - parafraseando o Papa Francisco - de "fazer confusão". Diga isso a Don Enrico! Para gravar os vídeos das suas homilias semanais - intituladas "O Evangelho aos doentes" - com a ajuda dos seus amigos Mariano e Marco, prepararam o melhor "local" e todo o cenário para a encenação, sem ter em conta que, mais tarde, o pároco enlouqueceria à procura da imagem de Nossa Senhora que tinha sido deslocada ou da casula azul sem a qual não podia celebrar a missa. 

Estava decidido a redecorar o salão anexo à igreja onde passava a maior parte do dia a receber pessoas e pediu a um amigo que lhe desse um quadro. Deviam ter visto a cara dos outros padres quando a senhora apareceu com "O Beijo" de Gustav Klimt. Noutra ocasião, quando uma simpática paroquiana se ofereceu para lhe trazer algo do sul de Itália, não lhe ocorreu nada melhor do que pedir "sanguinaccio", pensando que seria semelhante à morcela espanhola, sem suspeitar que a boa mulher teria de negociar no mercado negro, porque a venda deste macabro subproduto de porco está proibida desde 1992. 

Não me esqueço de quando o fui ver em pleno ferragosto romano e, quando lhe perguntei o que queria que eu levasse para o lanche, pediu-me umas azeitonas recheadas com anchovas. A doença - como se pode ver - não lhe tirou o apetite.

Levante a mão quem foi visitá-lo e descobriu que ele tinha marcado um encontro à mesma hora com duas outras pessoas. Ou quem ficou a vaguear pelos corredores da igreja porque um amigo inesperado chegou para se confessar ou para uma conversa de consolação. 

No passado dia 1 de novembro, fui ao hospital onde ele estava internado para uma operação médica e ele pediu-me para lhe dar uma boleia empurrando a cadeira no terraço. Era proibido, mas divertimo-nos os dois com essa pequena brincadeira. Ele pôde então contemplar os prados verdes que rodeiam o hospital e o horizonte, enquanto a luz do sol e a brisa lhe batiam no rosto. 

Quando não podia apreciá-las no seu estado natural, punha no YouTube vídeos de pastores turcos a viajar pelas montanhas com os seus rebanhos, ou imagens de drone de Noja, a aldeia na costa cantábrica onde passou os verões da sua infância. 

Álvaro era um apaixonado pela vida. Na homilia que pregou à sua família no seu 57º aniversário, em 2021, disse-nos: "O amor é o coração do cristianismo. É preciso amar. Há que amar a vida". Foi uma pregação feita carne. E não uma carne qualquer, mas uma carne paciente, o que acrescenta ainda mais mérito à sua capacidade de gozo. Por vezes, não foi fácil. 

Na última época, quando a ELA já estava a afetar a sua fala e a sua capacidade de respiração, tinha mais dificuldade em sorrir. Chegou mesmo a ter a sua noite negra. Mas não desistiu. Disse à sua irmã, que veio de Madrid para o visitar em Roma, catorze dias antes de morrer: "Sinto-me tentado a deixar-me morrer, mas peço a Deus a graça de me agarrar à vida para lhe dar glória com a minha doença, enquanto Ele quiser". 

O emaranhado mais monumental foi, sem dúvida, pedir aos irmãos que levassem a mãe, doente de Parkinson e em convalescença recente, à Cidade Eterna, em julho passado, para se despedir dela. Perguntou se haveria 1% hipóteses de concretizar a viagem, e a esse 1% eles "agarraram-se". A capacidade de fazer barulho ou vem do berço ou torna-se contagiosa. 

Dom Santiago, que se dedicou de corpo e alma aos seus cuidados nos últimos meses, numa mensagem à família escrita no Natal passado, disse que "como Álvaro se dedicou a dificultar a sua vida e a dar-se aos outros, está agora a colher, no afeto do povo, um pouco dos frutos do que semeou".

A cabana dos irmãos Marx

Mariano, que além de cineasta das homilias de Álvaro é também cirurgião cardiovascular, comentou que, como médico, lhe era difícil aceitar o facto de a doença do seu amigo não ter cura. Por isso, propôs-se a fazê-lo sorrir, como a melhor terapia alternativa. Ele e o Marco atingiram esse objetivo na última vez que vi o Álvaro. Nessa manhã, o salão paroquial era o mais parecido com o camarote dos irmãos Marx: primeiro chegou Angelina, uma enfermeira, acompanhada por um podologista para lhe fazer a pedicura e a manicura. 

Alessandro, um outro enfermeiro, veio iniciar o soro, improvisando um gotejamento intravenoso com um cabide de cabeça para baixo num cabide de batina. Veronique, uma nova prestadora de cuidados, que estava de serviço, tentou ajudar, deslocando a garrafa de oxigénio. 

Uma outra paroquiana e amiga, Giuliana, faz-lhe companhia enquanto ela grava a cena com o seu telemóvel. Depois, Mariano e Marco chegam com a ideia fixa de lhe cortar o cabelo. Marco entrega-lhe a máquina de cortar cabelo, enquanto Mariano segura o respirador. Ao fundo, ouvia-se O Barbeiro de Sevilha. Giovanni, o sacristão, entrou com um espelho e colocou-o à frente de Álvaro para que ele visse como estava. Ali estava a sua irmã com o marido e o primo, sem acreditar no que víamos.

Quem nos visse de fora pensaria que éramos loucos. Mas, nesse dia, roubámos a Deus um pedaço do céu, daquele céu em que o Álvaro entraria - pela porta grande - apenas duas semanas depois. A partir daí, continuará a fazer o que melhor sabe fazer aqui na terra: fazer uma grande confusão. Tenho a certeza que Don Enrico tem alguns conselhos para dar a São Pedro. Já agora, temos uma paisagem de Monet para substituir a de Klimt. 

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