A uma doença segue-se a morte de um familiar e, quando ainda não recuperámos, chega o problema económico ou profissional. Por vezes, só nos resta exclamar: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Mas será que Deus nos pode abandonar, e seria essa a atitude de um bom pai, de um pai que ama os seus filhos?
Certamente, há situações na nossa história pessoal em que clamamos ao céu e não encontramos resposta. Por vezes, os problemas e as dificuldades da vida atropelam-nos e parece que nos encontramos sozinhos, desamparados, no centro do turbilhão que nos suga para as águas escuras do oceano mais profundo.
Compreende-se que Deus não é uma fada madrinha que vem tirar-nos de todas as dificuldades. A natureza, neste mundo imperfeito em que aguardamos os novos céus e a nova terra, tem as suas regras e actua sem pedir autorização ao seu criador em cada momento. É por isso que surgem as doenças, a morte ou as desgraças naturais. A isto juntam-se os males criados pelo homem: injustiças, disputas, desilusões...
Um a um, os golpes são ultrapassados, mas quando se sucedem, nem mesmo o melhor parceiro de treino consegue resistir-lhes, e surge naturalmente a questão: "Será que Deus nos rejeitou para sempre e não voltará a favorecer-nos? Será que a sua misericórdia se esgotou, será que a sua promessa terminou para sempre? Será que Deus se esqueceu da sua bondade, ou será que a ira fechou o seu coração?
Nada como os salmos - a citação acima é um excerto do Salmo 77 - para traduzir em palavras o sentimento de abandono, de solidão, de incompreensão do homem perante o mal e o aparente silêncio de Deus. Se és todo-poderoso, porque não ages, porque te calas, porque permites que isto me aconteça?
O próprio Jesus rezou com um deles, o número 22, quando experimentou a face mais amarga da sua humanidade, pregado na cruz. Aquele que disse "quem me viu, viu o Pai", aquele que não podia afastar-se de Deus porque era o próprio Deus, teve também sentimentos de afastamento, de abandono; até certo ponto, de dúvida, de incerteza. É esta a fragilidade humana que ele levou ao extremo.
O silêncio de Deus perante o sofrimento das suas criaturas fez correr rios de tinta e queimou milhares de milhões de neurónios dos mais sublimes pensadores, mas uma antiga lenda circula na Internet. Noruega -Não consegui confirmar se é realmente norueguês e se é realmente antigo - o que explica muito simplesmente porque é que Deus está tantas vezes em silêncio.
A personagem principal é um eremita chamado Haakon, que cuidava de uma capela onde a população local vinha rezar diante de uma imagem de um Cristo muito milagroso. Um dia, o anacoreta, cheio de zelo e amor a Deus, ajoelha-se diante da imagem e pede ao Senhor que o substitua na cruz:
Quero sofrer por ti, deixa-me tomar o teu lugar", disse ele.
A sua oração chegou ao Altíssimo, que aceitou a troca com a condição de que o eremita se mantivesse sempre em silêncio, como Ele fez.
Nos primeiros tempos, tudo correu bem, porque Haakon estava sempre em silêncio na cruz e o Senhor fazia-se passar por ele sem que as pessoas se apercebessem. Mas um dia, um homem rico veio rezar e, ao ajoelhar-se, deixou cair a carteira. O nosso protagonista viu-a e ficou em silêncio. Passado algum tempo, apareceu um homem pobre que, depois de rezar, encontrou a carteira, pegou nela e foi-se embora, dando saltos de alegria. Haakon continuou calado quando, pouco depois, entrou um jovem e começou a pedir proteção para uma viagem perigosa que ia empreender. Nisto, o homem rico voltou a entrar à procura da sua carteira. Ao ver o jovem a rezar, pensou que talvez a tivesse encontrado e exigiu-a. Apesar de o jovem lhe ter dito que não a tinha visto, o rico não acreditou e bateu-lhe.
-Pára! -Haakon gritou do alto da cruz.
Atacado e agressor ficaram atónitos e, assustados com a visão do Cristo que falava, fugiram cada um por sua vez, deixando o eremita novamente sozinho com Jesus, que lhe ordenou que descesse da cruz por não ter cumprido a sua palavra.
-Vês como não eras capaz de ocupar o meu lugar? repreendeu-o o crucificado ao regressar ao seu posto.
-Não posso permitir esta injustiça, meu Senhor! -replicou o eremita, já aos pés da cruz. Vós vistes que o rapaz era inocente.
Olhando para ele com misericórdia, Jesus explicou:
-Não sabias que o rico tinha dinheiro na carteira para comprar a virgindade de uma jovem, enquanto o pobre precisava desse dinheiro para não deixar a sua família morrer à fome. Foi por isso que o deixei levá-la. Com o espancamento do jovem viajante pelo rico, eu queria tê-lo impedido de chegar a tempo, como acabou por fazer por tua causa, de embarcar num navio em que acaba de encontrar a morte, porque se afundou. Não sabias de nada. Sabia, e é por isso que me mantenho calado.
E assim termina esta espécie de midrash que nos ensina a acreditar que a vontade de Deus é a melhor para nós, e a confiar naquele que sabemos que, no seu aparente silêncio, também nos ama muito.
Se conhece alguém que está a ser espancado pela vida, talvez queira ouvir esta história de Haakon para compreender os mistérios daquele que nunca nos abandona, especialmente quando estamos na cruz.
Jornalista. Licenciado em Ciências da Comunicação e Bacharel em Ciências Religiosas. Trabalha na Delegação Diocesana dos Meios de Comunicação Social em Málaga. Os seus numerosos "fios" no Twitter sobre a fé e a vida diária são muito populares.