A coincidência, este ano, da Quarta-feira de Cinzas com o Dia dos Namorados, gera, para além de piadas e memes, uma reflexão interessante sobre a necessidade de renovar as nossas relações, de as libertar daquilo que as mata.
O Dia dos Namorados tornou-se, como tudo o que toca a nossa sociedade de mercado, um novo pretexto para gastar ou, se o bolso não o permitir, pelo menos para querer gastar: gastamos em presentes para os nossos parceiros, em jantares ou viagens a dois, em filmes que idealizam o amor a dois... E, se não tivermos um parceiro, gastamos em roupas-acessórios-maquilhagem-perfumes para agradar à pessoa que queremos conquistar neste dia romântico. Vamos comer e beber, amanhã morremos!
A Quarta-feira de Cinzas é, portanto, o seu antagonista, porque é um dia de privação e de austeridade. De jejum, de abstinência, de oração e de esmola. Um dia para reconhecer, sim, que vamos morrer, que somos frágeis e inconstantes como o pó, e que, por isso, precisamos de nos reconciliar com Deus para que seja Ele a dar-nos a vida.
Esta Quarta-feira dos Namorados, este Dia de Cinzas, é uma oportunidade para refletir sobre o que são as nossas relações, sobre o seu significado, sobre o que esperamos delas. Porque os nossos casamentos também precisam da conversão que procuramos neste tempo de Quaresma que hoje inauguramos.
Que pena que tantos tenham reduzido o amor a um sentimento! Se eu "sentir" algo por ti (não sabemos qual dos cinco sentidos é aquele que nos permite "sentir" algo por alguém), amar-te-ei; e se deixar de o "sentir", deixarei de te amar. Referir-se a este tipo de magia dos sentimentos disfarça de espiritual o que é normalmente muito material.
Dizemos sentimento quando na realidade queremos dizer conveniência. Se a outra pessoa me convém (atrai-me, preocupa-se comigo, permite-me realizar o meu desejo de ser pai, contribui financeiramente, faz-me companhia, etc.), amá-la-ei; mas se a outra pessoa não me convém (já não tem os atractivos da juventude, os seus defeitos ultrapassam-me ou tem problemas de saúde), o meu sentimento de amor desaparece. A magia desaparece quando o facto de estar com a outra pessoa não me compensa.
Precisamente na homilia da Quarta-feira de Cinzas, o Papa Francisco recordou-nos que "a cinza traz à luz o nada que se esconde por detrás da procura frenética de recompensas mundanas. Lembra-nos que o mundanismo é como o pó, que basta um pouco de vento para o fazer desaparecer. Irmãs e irmãos, não estamos neste mundo para correr atrás do vento; o nosso coração tem sede de eternidade".
Porque o verdadeiro amor, quando não é apenas um sentimento de comédia romântica da Netflix, resiste não só ao vento, mas a qualquer vendaval: é eterno. Pode-se deixar de amar o filho? Pode-se surpreender que um viúvo sinta falta da mulher com quem celebrou as bodas de ouro, mesmo que ela tenha morrido há anos?
Amar não é procurar a conveniência, "o amor não procura os seus", como diria São Paulo. Amar é dar a vida pela pessoa escolhida. Assim, Deus escolheu-nos e amou-nos ao ponto de dar a sua vida por nós. Há uma vontade do amante para com o amado que não é sustentada apenas pelo sentimento, mas é apoiada pela compreensão, pela razão, pelo desejo de fazer o bem. E isso é por vezes difícil. É fácil deixarmo-nos levar pelo sentimento (por uma mulher mais atraente ou por um marido mais atento, por exemplo), mas isso não nos torna mais livres, mas mais escravos daquela mundanidade a que Francisco alude e cujas promessas de felicidade são levadas pelo vento.
Neste início amoroso da Quaresma de 2024, que coisas coloco à frente da pessoa que decidi amar livremente? Que egoísmo meu faz com que veja o outro como um obstáculo à minha felicidade? E, sobretudo, como poderia fazer o outro mais feliz ao meu lado?
Pode uma penitência ser romântica?
Como Jesus no deserto, as tentações virão até nós: "Se és o Filho de Deus, porque é que o outro não muda para se tornar mais do teu agrado?"; "Se és tão bom como és, porque é que o outro não te tem num altar?"... É essencial criar espaços de diálogo para nos colocarmos estas questões em conjunto e descobrirmos que o outro tem exatamente as mesmas dúvidas e tentações, e que também se sente incapaz de amar como nós queremos ser amados.
Sem nos conhecermos a nós próprios, sem descobrirmos a ferida do pecado que mina a nossa capacidade de amar e de nos sentirmos amados, é impossível sustentar um casamento, um namoro ou qualquer vocação cristã.
Uma boa maneira de celebrar o dia do padroeiro dos namorados, como casal, neste dia penitencial, poderia ser ir juntos à paróquia para impor as cinzas um ao outro e depois partilhar um jantar em casa ou fora dela, onde podemos pedir perdão um ao outro e reconhecer a nossa fraqueza, a nossa necessidade de conversão, porque somos cinzas, somos pó, mas pó no amor.
Jornalista. Licenciado em Ciências da Comunicação e Bacharel em Ciências Religiosas. Trabalha na Delegação Diocesana dos Meios de Comunicação Social em Málaga. Os seus numerosos "fios" no Twitter sobre a fé e a vida diária são muito populares.