Teologia do século XX

Legados e desafios teológicos

Temos um património formidável para estudar não só com a devoção arqueológica de quem admira o passado, mas como inspiração e apoio para os novos desafios na vida da Igreja.

Juan Luis Lorda-14 de Junho de 2021-Tempo de leitura: 7 acta
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Neste artigo recordaremos com que teologia do fermento é feita. Resumiremos então as contribuições da teologia do século XX. Iremos analisar os novos desafios. E a partir daí, vamos finalmente encontrar algumas linhas de trabalho. 

O fermento da teologia

A teologia tem quatro motivos que a fazem crescer em cada época.

1. A "fé que procura compreender", de acordo com a frase imortal de Santo Anselmo: fides quaerens intellectum. Não nos limitamos a repetir as palavras da mensagem, mas queremos compreendê-las de modo a alimentá-las e combiná-las com a nossa experiência. Os cristãos acreditam na unidade do conhecimento, porque o mesmo Deus que fez o universo se revelou na nossa história e usou as nossas palavras. 

2. A fé é ensinada. Isto requer ordenar o seu conteúdo e explicá-lo de acordo com o nível dos ouvintes, desde a catequese até à formação de futuros sacerdotes e cristãos a nível académico. Quando é ensinado, é aprendido. O esforço de ensinar, especialmente aos padres, moldou historicamente a teologia. 

3. A fé enfrenta dificuldades internas e externas. A história mostra as dissensões e a perda da comunhão, que são heresias. Normalmente requerem muito discernimento teológico. E o mesmo acontece com mal-entendidos e críticas externas: requerem clareza que deu origem a apologética cristã. Tem de ser combinado com as outras fontes, a fim de não focar a teologia apenas nas questões disputadas. 

4. As Escrituras devem ser autenticamente interpretadas. Por um lado, a Igreja já recebeu e possui a mensagem, e nós não estamos dependentes da última interpretação. Mas as Escrituras são uma testemunha fiel do Apocalipse, e a sua leitura atenta e piedosa é uma inspiração constante.

As grandes renovações da teologia do século XX 

No século XIX, a separação da Igreja e do Estado nos países católicos afectou e continua a afectar a vida da Igreja. Ao mesmo tempo, pela graça de Deus, teve lugar um renascimento espiritual e religioso, que no século XX deu origem a um grande número de teólogos entusiastas e a uma era dourada de faculdades teológicas. Assim, para além da grande teologia patrística dos séculos III a V e do clássico escolasticismo dos séculos XI a XIII, houve uma terceira grande época, abrangendo os séculos XIX (Newman, Möhler, Scheeben) e, acima de tudo, os séculos XX.

Quatro grandes fermentos inspiraram esta renovação: um melhor conhecimento da Bíblia, a recuperação da teologia dos Padres, a renovação litúrgica e a influência do pensamento personalista, entre outros.

1. Os estudos bíblicos contribuíram com imensa erudição sobre a história, linguagem e contextos da Bíblia; sobre os grandes conceitos bíblicos de enorme importância teológica (História da salvação, Pacto, Messias, Reino, Ruah....); e sobre as instituições hebraicas que são a base do sentido tipológico (Qhal Yahveh, festas, culto, templo, prática sinagógica...). Há ainda trabalho a ser feito para resumir esta riqueza, que tende a ser dispersa e também produziu uma certa confusão sobre o núcleo da mensagem bíblica. 

2. O regresso aos Padres, representado emblematicamente pela colecção Fontes: Chrétiennes e pelo trabalho de De Lubac e Daniélou, foi reforçada pelos contactos com a teologia russa no exílio (Lossky, Berdiaev) e com a teologia oriental (Congar). Tornou possível focar a teologia nos mistérios, como Scheeben tinha feito, e construir o tratado sobre a Igreja. Significou o fim do escolasticismo manualista, que foi apresentado como a única forma possível de teologia católica. E tornou possível a purificação da tradição tomística através do regresso às suas fontes perenes (a obra de São Tomás de Aquino) e um melhor conhecimento da sua história e contexto (Chenu, Grabmann) e da sua filosofia (Gilson). 

3. Paralelamente ao regresso aos Padres, e com sinergias frutuosas, desenvolveu-se a teologia litúrgica (Dom Gueranger, Guardini, Casel). Transformou a sacramentologia, contribuiu para a compreensão do mistério da Igreja e inspirou o Concílio Vaticano II. Mas esta renovação não deve ser confundida com a aplicação pós-conciliar, por vezes improvisada e espontânea, das modas litúrgicas. Em grande medida, a formação teológica autêntica dos cristãos, de acordo com a vontade do Concílio, continua pendente. 

4. A inspiração personalista destacou algo muito importante. A ideia de pessoa, que é tão cultural e juridicamente relevante, tem uma história teológica. Existe uma contribuição cristã sobre a dignidade do ser humano como imagem de Deus, chamada a ser identificada em Cristo, que ainda é muito relevante. Além disso, a ideia de que a pessoa implica uma relação, tanto na Trindade como nos seres humanos, permite-nos compreender a realização das pessoas no duplo mandamento da caridade, e inspira modelos de coexistência. Como a Trindade, existe a comunhão dos santos na Igreja e no Céu, e a das famílias, e a de qualquer comunidade humana autêntica. Ajuda também a aprofundar a relação pessoal do ser humano com Deus (Eu e Tu), e a renovar a ideia da alma como um ser amado pessoalmente por Deus, com uma relação eterna. 

Conselho e período pós-conciliar 

Este florescimento espectacular inspirou o Concílio Vaticano II que, promovido por João XXIII, procurou relançar a vida da Igreja e a evangelização. Estabeleceu as directrizes e renovou a vida da Igreja em muitos pontos, que são os princípios orientadores do nosso tempo. 

Infelizmente, seguiu-se uma enorme crise pós-conciliar que reduziu a prática cristã e as vocações nos países católicos ocidentais a pelo menos um sexto do que eram. A teologia menos focalizada desempenhou um papel na deriva (Holanda), mas a causa principal foi uma interpretação tendenciosa e uma aplicação precipitada e mal orientada dos desejos do Conselho. É necessário um julgamento calmo para compreender o que aconteceu e para revalidar a interpretação autêntica, como fizeram João Paulo II e Bento XVI.

Por outro lado, a enorme redução do número de candidatos ao sacerdócio deixou muitas faculdades europeias a um mínimo. 

Alguns desafios ambientais

A teologia encontra-se assim num contexto muito diferente do anterior. Em países com tradição católica, ainda vivem como "igrejas estabelecidas", ou seja, identificadas com os costumes, cultura, festas e ritmos de uma nação. Não são igrejas de missão, não têm tais instituições e hábitos, mas mantêm o culto e a catequese, com cada vez menos pessoas. A estrutura eclesiástica, com o seu património, é ainda enorme, mas está a esvaziar, o que também cria um problema financeiro. O clero encolhido pode ser sustentado pelos fiéis encolhidos, mas os edifícios não. Não é o problema principal, mas absorve muita energia. 

Na velha Europa cristã ainda vivemos o ciclo da Modernidade, com a separação da Igreja e do Estado. A par dos aspectos positivos de uma maior liberdade e autenticidade cristã, há uma secularização que está a ser prosseguida como um programa político. Na educação teológica, este processo precisa de ser devidamente contabilizado. 

Quase todo o século XX foi dominado pela espantosa expansão mundial do comunismo. Isto significava perseguição da Igreja nos países comunistas e críticas intensas em todo o mundo. Era também uma tentação para muitos cristãos, que sentiam que o comunismo encarnava aspectos do Evangelho de forma mais autêntica do que a própria Igreja. Outro aspecto permanece por estudar. 

O quase milagroso desaparecimento do comunismo, no tempo de João Paulo II, deixou o enorme vácuo pós-moderno. Mas o impacto da revolução russa de 17 foi substituído pelo da revolução francesa de 68, que falhou na sua utópica tentativa de transformar as sociedades burguesas, mas transformou os costumes sexuais, e provocou um novo motivo de alienação da fé, o que provocou uma crise na recepção de Humanae vitae. Além disso, deu origem à ideologia do género, que exerce pressão cultural e política sobre a vida da Igreja e contrasta com a mensagem cristã sobre sexo e família. Parece que nos encontramos no limiar de uma nova perseguição onde não haverá mártires. Temos de discernir sobre as objecções e encontrar a língua para nos exprimirmos. 

Desafios de formação e informação 

No passado, as famílias cristãs, a catequese nas paróquias rurais e as escolas católicas nas cidades conseguiram transmitir a fé cristã com um grau muito elevado de eficácia e identidade. Já não é este o caso. A irrupção da televisão em todas as casas e, mais recentemente, as redes sociais mudaram a educação familiar: o que aparece na televisão e nas redes torna-se a norma e o modelo social em vez dos pais. A fé só é transmitida em famílias muito empenhadas. 

Por outro lado, a catequese normal está fora de qualquer proporção ao volume de informação e formação que qualquer criança recebe noutras áreas do conhecimento. E tanto as escolas católicas, geralmente religiosas, como os seminários sofreram com a crise pós-conciliar com uma perda de pessoal e problemas de orientação. Há um paradoxo crescente de que a maioria dos cristãos são informados sobre a vida da Igreja nos meios de comunicação não cristãos. Este é um grande desafio para uma Igreja que é, por natureza, evangelizadora. 

Desafios específicos para a teologia 

O balanço não é muito encorajador, e a dimensão dos problemas é esmagadora. Mas a Igreja vive pela fé, esperança e caridade. E é conduzido na história pelo seu Senhor, que, em cada época, suscita os carismas necessários. A teologia não pode viver no limbo da inércia académica, mas deve ligar-se a estas exigências peremptórias. Recordando as quatro leveduras que assinalámos no início, é urgente:

1. compreender a fé também em relação à nossa cultura humanista e científica actual;

2. Formar novas gerações de sacerdotes para responderem às exigências da evangelização. Manter e sintetizar a riqueza do nosso património, acrescentando o melhor da teologia do século XX que se encontra ao nível do nosso tempo. E para superar a tendência acumulada que tem ocorrido nos tratados teológicos, tentando resumir todas as dificuldades do passado;

3. Responder às grandes objecções do nosso tempo. As que decorrem da crítica à Modernidade, as do materialismo científico; e hoje em dia, a ideologia do género, onde é necessário discernir e encontrar a linguagem certa para dialogar e apresentar a mensagem cristã sobre sexo e família de forma atractiva. Problemas internos como a contestação interna e o cisma de Lefevbre também precisam de ser abordados;

4. focalizar e resumir a teologia bíblica de modo a alimentar a teologia e a formação sacerdotal e cristã.

Outras tarefas mais concretas:

5. defender a interpretação autêntica do Concílio Vaticano II e alargar a sua aplicação;

6. contribuir para o compromisso ecuménico e para o diálogo inter-religioso que o Conselho encorajou;

7. estudar a história recente em pelo menos quatro pontos: o ciclo da Modernidade, com as suas inspirações cristãs e as suas distâncias; a crise pós-conciliar; a influência marxista; e o diálogo com as ciências;

8. enfrentar o enorme desafio da formação cristã. Embora a teologia se concentre no ensino académico, precisa de se abrir a outros espaços. E isto tem muitas exigências de estilo e linguagem. 

Conclusão 

Nem tudo são inconvenientes. Temos um património intelectual muito rico de compreensão do mundo e do ser humano, que contrasta com o imenso vazio deixado pelas ideologias do século XX ou com a trivialidade do consumismo global. Nunca estivemos numa situação intelectual tão forte, mesmo que seja tão fraca nos meios de comunicação social. 

Há pontos felizes de convergência com os nossos tempos. Primeiro, porque a mensagem do Evangelho se liga às aspirações humanas mais profundas de hoje e sempre (anima naturaliter christiana). Com os seus desejos de realização, conhecimento e salvação, que também se manifestam na busca de uma vida mais natural e humana, ou num ambientalismo saudável e no respeito pela natureza. As crises ambientais e sanitárias dão também origem a uma procura mais profunda do sentido da vida. 

E, em última análise, temos a presença do Senhor e a assistência do Espírito. A experiência da fraqueza é uma parte essencial do exercício da fé e da teologia. Isto supera a tentação nociva de a substituir pelas nossas ideias. Só é teologia se for "a fé que procura compreender", também para a transmitir alegremente. O que é necessário é uma teologia mais humilde, mais testemunhal, mais espiritual, mais litúrgica; ou, como von Balthasar escreveu, mais ajoelhado. Também uma teologia mais próxima dos pobres e simples, como pede o Papa Francisco. Em suma, uma teologia mais teológica.

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